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Heterogeneidade na creche: construção da resposta nas escolas d’A Voz

A creche é uma resposta de natureza socioeducativa dirigida a crianças até aos 3 anos. Apesar da legislação em vigor não estabelecer uma organização única, habitualmente as crianças encontram-se distribuídas pelas salas por faixa etária. A sala de berçário acolhe crianças até aos 12 meses, uma sala – geralmente denominada por “sala de aquisição da marcha” – acolhe as crianças até aos 2 anos e outra sala junta as crianças até aos 3 anos.

A idade é, neste caso, o fator orientador podendo levar à conceção determinista que as crianças dentro de uma determinada faixa etária têm todas as mesmas competências, as mesmas necessidades, experiências e referenciais similares. É esta a realidade que podemos observar na maioria das instituições.

Contudo, é consensual que a heterogeneidade que caracteriza estes grupos de crianças é enorme e resulta quer de fatores individuais como de fatores contextuais. Em cada sala podemos encontrar crianças com quase um ano de diferença. Cada criança é o produto da sua própria realidade, do seu contexto familiar, das suas experiências e interesses.

Neste sentido, se estamos perante uma realidade na sua natureza heterogénea, por que razão mantemos em muitos casos a organização da creche em salas por faixa etária sem questionar os pressupostos que lhe estão subjacentes?

Foi a partir da análise desta perspetiva paradoxal que temos vindo a refletir sobre o modo como organizamos a resposta de creche na Voz do Operário.
A interação entre crianças com diferentes níveis de desenvolvimento cognitivo, social e moral é potenciador do desenvolvimento. Se por um lado as crianças mais novas vêem aumentadas as suas oportunidades de aquisição de novas aprendizagem e competências por via da interação continuada e estruturada com as crianças mais velhas, estas últimas têm nesta relação a oportunidade de solidificar aquisições previamente realizadas experienciando de forma mais consistente processos metacognitivos fundamentais, isto é, revivendo e integrando aprendizagens.

Ao longo do ano letivo que passou levámos a cabo uma reflexão profunda sobre a realidade das creches d’A Voz do Operário na margem sul (Laranjeiro, Baixa da Banheira e Lavradio). A partir da experiência já em curso nas creches d’A Voz do Operário na Ajuda e no Restelo procurámos criar condições para iniciar este ano letivo com a creche organizada de outra forma. As crianças passam a partir de agora a estar distribuídas por salas não em função da sua faixa etária. As salas integrarão crianças dos 12 meses aos 3 anos. O berçário (crianças até aos 12 meses) continua a ser – por razões de natureza logística – uma sala separada sendo, no entanto, suposto que estas crianças interajam com os colegas de forma mais objetiva, isto é, sempre que possível (uma vez que uma importante parte do tempo é dedicado à satisfação de necessidades básicas), estas crianças partilhem o mesmo espaço físico e participem nas atividades da creche em conjunto e de forma estruturada com as crianças mais velhas.

Foi um processo de reflexão coletiva que envolveu educadoras, independentemente da resposta social a que se encontram afetas, pessoal auxiliar, outros técnicos e famílias. Deste processo resultou a assunção que a organização das crianças por idades conduz, mesmo que de forma inconsciente, à sobreposição do nível de desenvolvimento do grupo em detrimento do nível de desenvolvimento individual levando a que, em alguns casos, a planificação e organização das atividades e o estabelecimento de objetivos possa ser enviesado pela perspetiva pré-determinada de que as necessidades do grupo são definidas pela faixa etária que o caracteriza. Desta reflexão resultou a re-conceptualização do trabalho em creche procurando-o alinhar de forma mais objetiva com os princípios e filosofia preconizados pelo modelo pedagógico adotado pel’A Voz do Operário.

Da reflexão coletiva surgiu também a necessidade de tornar mais consistente a comunicação, procurando que o processo de mudança fosse claro para todos. Foram realizadas diversas sessões de discussão coletiva envolvendo todos os trabalhadores independentemente das suas funções. A partir dos contributos gerados foi possível complexificar o processo de construção da mudança tornando-o então mais sólido e claro.

O envolvimento das famílias foi igualmente fundamental. As preocupações apresentadas já eram esperadas. O receio de que as crianças mais novas possam ser “esquecidas” no contexto de uma dinâmica de trabalho que inclui crianças com níveis de desenvolvimento tão diferente ou que as crianças mais velhas possam ter menos oportunidades de desenvolvimento porque o grupo possa caminhar ao ritmo dos mais novos foi facilmente ultrapassado. Para isso contribuiu o grande entusiasmo dos trabalhadores.
Procurou-se igualmente analisar as condições físicas existentes e as necessidades de intervenção nos espaços de modo a torná-los mais adequados. Neste sentido foram realizadas pequenas obras de adaptação do e adquirido algum mobiliário e materiais.

Neste momento coloca-se um desafio enorme à Voz do Operário. É essencial que a reflexão coletiva se mantenha, que se continuem a questionar as opções e decisões, problematizando-as tendo em vista ações que potenciem de forma real a oportunidade que agora se gera com a recusa da normatividade e determinismo da organização virtual e fictícia das crianças por idades, ciclos ou mesmo anos de escolaridade. Por outro lado, envolver, apoiar, acompanhar e integrar as famílias neste processo continua a ser fundamental para o sucesso.


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