Há tempo, no Verão.

“A infância mede-se pelos sons, cheiros e olhares, antes da hora negra da razão crescer.” – John Betjeman

Fanzines de parede criadas pelas crianças do ATL

Numa das cartas escritas a Engels, Marx falava do relógio como sendo o primeiro autómato, uma máquina que viabiliza o tempo linear, o tempo cronológico, que mesmo medido de forma concreta, se impõe no abstracto enquanto propriedade: uma coisa que se tem, ou que não se tem. Isto são coisas dos adultos e também terreno de uma das mais importantes disputas entre eles e as crianças. Elas habitam o tempo e nós fomos aprendendo que, como o resto, esta é apenas mais uma unidade acumulável, dependendo do ponto onde nos encontremos em relação ao mundo.

Aquilo que para nós, adultos, se perde, se ganha, se poupa, se tem, é para as crianças um espaço sem rédea – trata-se de um privilégio de atenção, este vínculo especial com o tempo, e dele resulta a percepção ampla de um mundo feito para brincar. É através do tempo de brincadeira e da liberdade que este exige que as crianças nos recordam da importância de arredar o relógio.

Por isso, no Verão, mesmo que continuemos a ser adultos constrangidos pelo tiquetaque das coisas que têm que acontecer, esforçamo-nos para dar tempo ao tempo – usando para isso a brincadeira como engenho.

Entre a praia, a escola e os espaços verdes e de brincadeira na vizinhança, descobrimos novos amigos, propomos jogos maiores e mais pequenos, aprendemos uma canção pelo caminho.

Nas semanas passadas na praia, temos oportunidade de aproveitar o calor com os amigos, construir fortalezas de areia (quase maiores que nós), de entrar no mar e fingir que somos peixes, às vezes baleias, às vezes sereias.
Mas quando ficamos na escola não nos aborrecemos.

Gostamos de começar o dia com uma reunião: dizemos “bom dia!”, reflectimos sobre o dia anterior, resolvemos colectivamente qualquer assunto pendente que alguma das crianças sinta necessidade de explorar. Mas não se passa muito tempo sem que surja a vontade de irmos brincar para o parque. Ficamos por lá, perto das árvores, de esconderijos e de passagens secretas, algumas não tão secretas assim – mas será que isso importa?

À tarde organizamo-nos por oficinas. São momentos de trabalho em grupo que permitem às crianças explorar novos territórios do conhecimento e da experiência, mantendo a liberdade de neles se posicionarem num espaço entre os seus próprios interesses e aqueles revelados pelo grupo como caminho a ser visto, cheirado, percorrido.

Até agora, desde o início do Verão, já pudemos perceber que, se quisermos, existem muitas formas de publicar alguma coisa que tenhamos para dizer. Dividimo-nos por grupos pequenos, explorámos o nosso bairro e aquilo que havia pelas paredes, escolhemos um tema e debatemo-lo, dividimos tarefas, ilustrámos, escolhemos o título, fomos até uma oficina de impressão manual (O Homem do Saco) para o imprimirmos e depois recortámos, colámos e construímos a publicação. Tratámos de fotocopiá-la e aprendemos a fazer cola para parede. Voltamos às paredes do bairro, desta vez com alguma coisa para dizer nelas.

“Habitar o tempo é também empurrar-lhe os limites sobre o que nos dizem que cabe ou não cabe.”

Numa outra semana, tomámos tempo para pensar de onde vêm os nossos pensamentos, e procurámos fazer silêncio suficiente para distinguir a voz que eles têm. Com a preciosa ajuda do Miguel Cardoso (poeta) passámos os olhos por Fernando Pessoa, a quem, pelos vistos, os poemas aconteciam, pela Sophia de Mello Breyner, a quem uma voz dentro da cabeça lhos costumava ditar, pelo Matsuo Bashô, que de um dia no qual nada aconteceu fez um poema. E pela Adília Lopes que, no escuro do cinema, descalça os sapatos.

Fomos para o jardim, para ouvir e para ver. Atribuímos novas funções à cara, à electricidade, aos trovões, ao escuro. Depois baralhámos e voltámos a dar, como uma construção com lego:

“A pele é para arrancar e construir uma casa
Um bolso é para guardar a alegria para o dia a seguir
(…)
Uma coisa que não serve para nada é para deitar ao lixo
Ir à lua é para ver o mundo todo.”

A esta oficina ainda se juntou Susana Matos (ilustradora), que nos ajudou com a forma visual como podemos comunicar. Com técnicas de pop-up construímos a capa de um livro, o nosso livro de poemas. Chamámos as famílias à escola, preparámos limonada e lemos em conjunto.

Habitar o tempo é também empurrar-lhe os limites sobre o que nos dizem que cabe ou não cabe.

Até ao fim do Verão ainda haverá tempo para passar pelos direitos humanos, a astronomia, o xadrez espalhado pelo bairro e a culinária, mais concretamente pela autonomia das crianças na preparação da sua comida.

Sabemos, como disse Baudelaire, que a criança se constrói pela “faculdade de se interessar vivamente pelas coisas, mesmo pelas mais triviais em aparência” e que a experiência infantil se realiza como reconhecimento e imersão em tudo o que está ao nosso redor. O esforço e o compromisso, como adultos que as acompanham enquanto, com tempo, desdobram essa faculdade, é o de lhes desimpedir caminho, afastar obstáculos, contrariar o relógio, sempre que possível.

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