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Laços da Seara Nova e A Voz do Operário: o contributo de César Nogueira

César Nogueira já está com 85 anos de idade. Deve ser o último antigo dirigente socialista vivo, do tempo de Azedo Gneco (falecido em 1911).

Mas ainda é ele que vem a terreiro, na Seara Nova, para responder a uma ‘cacetada’ salazarista à história do movimento operário em Portugal.

Um jornalista do Diário da Manhã, o órgão oficioso da “União Nacional”, acabou de publicar um livro que destrata essa história como uma sucessão de desordens, violências e quezílias internas, instigadas por ideias e agentes estrangeiros.

Por outro lado, afirma o dito livro, que a “revolução nacional de 28 de Maio”, conduzida “pelas baionetas gloriosas de Gomes da Costa”, é que veio satisfazer as antigas reivindicações operárias, além de reatar a “tradição nacional” [Costa Junior (1964), História breve do movimento operário português].

I

César Nogueira alude ao conhecimento superficial que o livro revela e refuta alguns exemplos concretos dos muitos equívocos que veicula. Acusa-o de fazer “afirmações que não são a expressão verdadeira dos factos”. Mas é uma luta desigual. O outro lado está protegido pela censura prévia à imprensa. E César Nogueira conhece-a bem: nesses meados dos anos sessenta, é porventura o autor mais alvejado pelos cortes da censura na Voz do Operário – onde colabora desde 1908.

Outros títulos de imprensa onde colaborou foram há muito encerrados pela ditadura: como o diário sindicalista A Batalha (em 1927) ou a revista socialista Pensamento, do Porto (no final de 1940, na mesma altura que o semanário O Diabo).

Nos momentos em que o regime encena umas eleições falsificadas e abranda um pouco a censura, lá está César Nogueira a expressar a sua posição antifascista no diário República, onde também colabora há longos anos.

Desde 1947 que escreve para a Seara Nova, sempre com textos relativos à história do antigo movimento operário. Publicou, aliás, nesse tema, dois livros prefaciados por Luís da Câmara Reis, director da Seara Nova.

II

É um trabalho valorizado por antigos militantes de outras correntes ideológicas.

Aos 75 anos de idade, o anarco-sindicalista Alexandre Vieira, considera que César Nogueira “é dos homens da vanguarda que maior divulgação têm feito, em Portugal, dos princípios socialistas”, o que aliado “a uma modéstia inultrapassável e a um desinteresse monetário proverbial”, o torna “uma das prestimosas figuras das fileiras avançadas” [Alexandre Vieira (1959), Figuras gradas do movimento social português, p. 115].

Já o velho comunista portuense José da Silva, com 73 anos escreve a César Nogueira: “Leio sempre as suas intervenções jornalísticas, principalmente as que faz no diário República […] tenho os dois volumes que publicou sobre a história do Partido Socialista Português, que são dois documentos de muito valor para a história do movimento associativo dos trabalhadores” [José da Silva, “Carta a César Nogueira”, manuscrito, 12/06/1967, p.1].

III

Além destes elementos da “velha guarda”, César Nogueira tem ligações com intelectuais comunistas duma geração mais jovem como Alexandre Cabral e Victor de Sá. O primeiro considera-o como um “notável paladino dos ideais socialistas” [Alexandre Cabral, “dedicatória a César Nogueira”, manuscrito, 11/05/1961].

Já Victor de Sá prefacia nesse mesmo ano de 1964 um novo livro de César Nogueira [Notas para a história do socialismo em Portugal (1871-1910)]. 

Numa alusão ao contexto ditatorial de censura e repressão, que nessa altura já se prolonga há quase 40 anos, Victor de Sá realça o “acesso directo a fontes documentais que, pelo condicionalismo de circunstâncias políticas, se têm mantido recolhidas nas catacumbas dos segredos familiares, tantas vezes sujeitas à dispersão ou destruição pura e simples, mas que César Nogueira, pelas suas relações e pelo prestígio de que goza, pôde como ninguém consultar. Assim, reproduzindo inclusivamente muitos dos mais importantes documentos de que se valeu, torna-os não só acessíveis ao público, como até os salva do aniquilamento provável”.

IV

Victor de Sá não deixa de apontar algumas limitações: “poderá objectar-se que César Nogueira não é propriamente um historiador. Sim, pode ser que nem sempre se verifique no seu trabalho uma observância estrita da técnica metodológica. Mas, sem pretensões de historiador, César Nogueira tem as virtudes essenciais dum historiógrafo: a probidade mental que presidiu à recolha dos elementos e o respeito pelas fontes documentais”.

Seara Nova, assim como A Voz do Operário, foi um espaço onde César Nogueira pôde divulgar esse trabalho.

Depois do 25 de abril, a Federação Nacional dos Sindicatos dos Trabalhadores do Comércio e a CGTP reeditaram um livro de César Nogueira sobre as “Origens do 1º de Maio” – respectivamente em 1976 e 1986.

Centenário da Seara Nova

No próximo dia 15 de Outubro, cumpre-se o centenário da Seara Nova, uma das mais importantes revistas de pensamento crítico e antifascista em Portugal.

Entres os múltiplos aspectos da sua história constam os seus laços com A Voz do Operário, os colaboradores comuns que ambas têm partilhado ao longo do tempo. Um exemplo maior será Emílio Costa, professor anarquista que foi dirigente da Seara Nova e director escolar de A Voz do Operário. Mas há mais, desde Alexandre Vieira a Agostinho da Silva, passando por homens mais jovens como Sérgio Ribeiro e Modesto Navarro. E por mulheres, como Francine Benoit e Helena Neves.

O contributo de César Nogueira é mais um exemplo.

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