Passou agora, no dia 18 de Abril, o 120º aniversário do nascimento de uma grande figura da cultura e da resistência antifascista em Portugal: o professor Bento de Jesus Caraça.
Não podíamos nesta ocasião deixar de render homenagem à sua memória e à ligação que ele teve à Voz do Operário, da qual era associado.Recordamos também sua mulher, Cândida Ribeiro Gaspar, que foi nossa professora.
É aliás curioso como vários destacados resistentes antifascistas foram casados com professoras d’A Voz do Operário. Foi também esse o caso, por exemplo, do sindicalista Mário Castelhano e do professor Cansado Gonçalves.
Museu do Trabalho
Uma iniciativa que A Voz do Operário concretizou em janeiro de 1945 foi a criação do primeiro Museu do Trabalho em Portugal.
Além da exposição propriamente dita, a sua atividade incluiu uma série de conferências culturais em torno do tema do trabalho. Ainda se realizaram várias, até que no dia 5 de Novembro, a ditadura proibiu, já no próprio dia, uma conferência sobre cultura popular que iria ser proferida pelo professor Ferreira de Macedo (o fundador da Universidade Popular Portuguesa). No mesmo ‘golpe’ foi também proibida a conferência seguinte, prevista para dois dias depois, em que Aquilino Ribeiro falaria sobre “o escritor e a sua época”.
Revoltada, e considerando por certo que não havia condições para prosseguir, a direção d’A Voz do Operário decidiu suspender o programa de conferências do Museu do Trabalho. Para o dia 12 desse mês estava prevista uma conferência de Bento Jesus Caraça, com o título “O problema do ensino nos últimos anos”.
MUD
É preciso compreender que a ditadura estava num momento de alguma fragilidade. A Segunda Guerra Mundial tinha terminado há poucos meses, com a derrota dos regimes fascistas da Alemanha e da Itália. Salazar sentiu necessidade de vestir a pele de democrata e convocou eleições. Acabaram sendo apenas um simulacro, umas eleições falsificadas a todos os níveis. Mas um abrandamento momentâneo da censura revelou um grande descontentamento popular e um grande apoio à oposição. Nasceu então o MUD (Movimento de Unidade Democrática), em cuja fundação participou Bento Caraça e também o então presidente da direção d’A Voz do Operário, Raul Esteves dos Santos.
A proibição de duas conferências do Museu do Trabalho constituiu uma represália a esse processo.
Mas apesar das dificuldades, e numa situação de semi-legalidade, o MUD continuou por algum tempo. E foi no salão d’A Voz do Operário que um ano depois, a 30 de Novembro de 1946, promoveu uma sessão. Bento de Jesus Caraça, vice-presidente da comissão central do MUD, foi um dos oradores, proferindo um discurso sobre “Aspectos do panorama cultural português”.
Preso político
Quando discursou n’A Voz do Operário, nesse dia do Outono de 1946, já estaria fraquejando a saúde a Bento de Jesus Caraça. Veio a falecer um ano e meio depois, com apenas 47 anos de idade. Mas há outro aspeto a salientar na cronologia desse discurso: tinha sido preso pela PIDE no mês anterior e voltou a ser preso no mês seguinte.
Foi preso no dia 13 de Outubro e passou então quatro dias incomunicável numa esquadra. E foi de novo preso no dia 13 de Dezembro, passando uma noite na cadeia do Aljube – no mesmo edifício onde hoje funciona o Museu da Resistência e Liberdade.
Sofreu também outra forma de repressão, que colocou em causa a sua sobrevivência económica: foi demitido do seu lugar de professor do ensino superior. Já tinha acontecido o mesmo, onze anos antes, ao professor Aurélio Quintanilha, na Universidade de Coimbra. E aconteceu a outras mentes brilhantes que o fascismo expulsou das universidades portuguesas, com grave prejuízo para o desenvolvimento da ciência e do conhecimento neste país.
Funeral
Bento de Jesus Caraça faleceu em 25 de Junho de 1948.
Sob as restrições da censura prévia a que a imprensa era submetida, muita coisa ficou por dizer. Mas A Voz do Operário não deixou de lhe prestar homenagem nesse momento, com uma notícia na primeira página do seu jornal. É um documento histórico, do qual recordamos o seguinte excerto:
«O acontecimento – embora esperado na roda dos seus mais íntimos amigos – impressionou as camadas populares, onde Bento Caraça era querido pelo seu saber e pelo seu belo carácter.
Logo que tivemos conhecimento desta triste notícia, o sr. Raul Esteves dos Santos foi a casa do ilustre extinto apresentar em nome de A Voz do Operário sentidas condolências.
Filho de humildes camponeses alentejanos, a sua carreira é um alto exemplo do valor da sua força de vontade, favorecida por uma grande inteligência.
No seu funeral, que A Voz do Operário realizou, o povo que ele estimou e para o qual vivia, esteve presente acompanhando-o numa comovente atmosfera de respeito.
Acompanhado por milhares de pessoas, o seu corpo coberto com a bandeira de A Voz do Operário, de que era sócio, seguiu até ao cemitério dos Prazeres.
Não houve discursos.»
Centenário
Em 2001, A Voz do Operário teve um papel central nas comemorações do centenário do nascimento de Bento de Jesus Caraça, organizando uma exposição que esteve patente na sua sede e promovendo uma conferência com o historiador Alberto Pedroso.