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Memória

Rocha Martins, jornalista de Lisboa e da liberdade

Um monárquico a colaborar no diário sindicalista A Batalha? Um apoiante do golpe militar de 1926 que se torna destacado antifascista? Assim foi o jornalista e escritor Rocha Martins, quase sempre em rebeldia contra o poder instalado.

Abraçou a causa da monarquia constitucional quando esta declinava, após o assassinato do rei D. Carlos e do príncipe Luís Filipe, em 1908. Implantada a República, em 1910, permaneceu fiel ao último rei, D. Manuel II, ao longo dos 22 anos em que este viveu no exílio.

Nesta postura, Rocha Martins esteve na oposição ao poder republicano, inclusive em cargos eleitos como deputado e como autarca municipal de Lisboa. Ajudou “à propaganda e eclosão” do golpe militar que derrubou a 1ª República, em 1926, mas “não concordou com a sequência”. E “abandonou a política” quando D. Manuel II faleceu, em 1932 – segundo ele próprio explicaria [República, 20/05/1961, p.26].

Mas perante o fascismo, e quando já entrava na dita terceira idade, Rocha Martins acabou por tomar posição na linha da frente, em luta pela liberdade. A partir de 1945, torna-se um porta-voz da oposição à ditadura, no principal jornal anti-fascista (na legalidade), o diário República. Faz parte da junta consultiva do MUD (Movimento de Unidade Democrática), ao lado de figuras como Norton de Matos e António Sérgio. E até adere ao velho Partido Socialista Português.

Ao falecer, em 1952, deixa grande parte dos seus bens à A Voz do Operário.

No jornal A Batalha

Francisco José Rocha Martins nasceu na cidade de Lisboa, freguesia de Belém, em 1879. Começou a trabalhar aos 15 anos, como empregado de escritório. Ainda almejou tornar-se engenheiro naval e passou pelas oficinas do Arsenal da Marinha.

Mas foi pelo jornalismo que cedo enveredou. Colaborou em vários títulos da grande imprensa, entre os quais o Diário de Notícias. Fundou as revistas ilustradas ABC (em 1920) e Arquivo Nacional (em 1932). Foi presidente da associação mutualista dos jornalistas, a Casa da Imprensa.

Publicou vários livros, denotando uma paixão pela história de Portugal e também pela sua cidade. Integrou aliás, em 1936, a comissão organizadora da associação Grupo Amigos de Lisboa.

Pelo jornalismo se ligou ao movimento operário, em 1925, com a sua colaboração no diário sindicalista A Batalha, órgão da CGT (Confederação Geral do Trabalho). É bem um exemplo da diversidade ideológica presente nesse jornal – e no próprio movimento sindical.

Preso político

Um testemunho interessante sobre Rocha Martins foi deixado pelo sindicalista Manuel Joaquim de Sousa, antigo secretário-geral da CGT e diretor da A Batalha. Recorda que, em 1929, o seu filho, Germinal de Sousa, também ele um destacado sindicalista, foi preso pela ditadura militar. A “polícia exerce sobre ele os piores tratos”. E Rocha Martins “intervém para que o libertem, como já antes havia evitado a sua deportação para Angola, em 1927”.

Conhecedor, depois, das torturas a que aquele jovem foi submetido, Rocha Martins “protestou indignado junto do então presidente do ministério, o general José Vicente de Freitas, o qual quis ver o jovem martirizado e da sua própria boca ouvir o relato dos factos”. Mas “horas depois”, a redacção da revista ABC “era assaltada para de novo ser preso aquele jovem. E como este já não fosse encontrado, é, por sua vez, preso Rocha Martins sob o pretexto de lhe ter facilitado a fuga”.

Segundo Manuel Joaquim de Sousa, “o escândalo nos bastidores governamentais e policiais foi grande pois Rocha Martins, tendo tomado parte activamente nos preparativos do 28 de Maio”, foi inicialmente “considerado amigo da situação” [Sousa (1989), Últimos tempos de acção sindical livre e do anarquismo militante, pp. 54/5].

Legado à Voz do Operário

Outro antigo sindicalista a evocar a memória de Rocha Martins foi Joaquim Cardoso, destacado fundador do jornal A Batalha e do Partido Comunista Português, além de secretário-geral da federação sindical dos operários da construção civil. E fê-lo aqui, na A Voz do Operário:

“As suas conversas, a muitas das quais assisti, eram sempre interessantes na defesa dos oprimidos”. Rocha Martins “cumpriu a afirmação que uma vez me fez de que o pouco que possuía deixá-lo-ia aos seus camaradas proletários. Nobremente satisfez tal promessa, legando à Voz do Operário grande parte da sua volumosa e interessante biblioteca, assim como o prédio que possuía”, em coerência “com os princípios humanos que sempre defendeu” [A Voz do Operário, 01/08/1952, p.1].

O 1º de Maio em Lisboa

No seu livro Lisboa de ontem e de hoje (1945) Rocha Martins menciona A Voz do Operário como “benemérita instituição, o grande centro fraternal dos trabalhadores, grande associação escolar e de socorro mútuo”, que “está instalada entre o Bairro de S. Vicente e o da Graça na rua que tem o seu nome e bem merecidamente”. Aponta ainda que foi no tempo da monarquia que o chefe do governo de 1906 a 1908, João Franco, “concedeu ao baluarte proletário o terreno onde edificou a sua sede” [p.37].

Noutra obra de estudos olissiponenses, Lisboa – história das suas glórias e catástrofes (1947), Rocha Martins recorda como eram as primeiras celebrações do 1º de Maio nesta cidade. Havia um “grande cortejo” que “atravessava da Avenida da Liberdade para o cemitério dos Prazeres”, onde culminava com a colocação de flores na campa de José Fontana, “o suiço que, sendo gerente da livraria Bertrand, do Chiado, animara a ideia socialista em Portugal” [pp.1013/4].

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