Voz

Marcha Infantil

Os milagres de Santo António, o Operário!

Como três costureirinhas rapidamente viram modistas de alta-costura, uma secretária de direção vira sargento, transformando um batalhão desordenado de petizes, numa equipa de marchantes ritmados e afinados e tudo isto em regime de voluntariado. Só mesmo por milagre.

São cinco da tarde e a pequena imagem do Santo António, colocada numa prateleira da sala de costura, como se fosse um altar, é testemunha do tico-tico das máquinas de costurar que não param. Bom, em rigor, haverá pequenas pausas, para alinhar os pedaços de pano no trilho da agulha. Estão assim desde as 8h00 da manhã e o dia vai mesmo ser longo. É assim, todos os dias, um corrupio casa, emprego, Voz do Operário, casa, mesmo aos fins-de-semana e feriados, desde a Páscoa. Ainda assim o tempo aperta.

O Santo António é, na verdade, o grande responsável por este aperto da Manuela Alegre, da Inês Santos e da Helena Fernandes, para não falar da Sofia Cruz, que às seis da tarde despe a pele de secretária de direção e, com o apoio do dirigente Vítor Agostinho, se transformam em coreógrafos das mais de 70 crianças que juram pôr a desfilar, ritmadas e afinadas, dia 2 de junho.

Ora o Santo António, padroeiro de Lisboa, que se comemora a 13 de junho, sendo o principal responsável por toda esta mobilização, parece impávido, pelo menos a julgar pelo ar sereno daquela figura que tudo isto observa do alto da prateleira da sala de costura, como se fora um altar. E, como adiante veremos, se o Santo já era conhecido pelas eloquentes pregações e pela sua abnegação e desprendimento dos bens materiais, este Santo tem também um sentimento de solidariedade franciscana para com estas três operárias da costura que, ainda assim, como se diz, dão à perna na maquineta, para que o tico-tico não pare, cosendo as mangas ao corpo e este por sua vez à gola, centenas de vezes. E o tempo curto lá vai esticando para que estas três costureirinhas feitas modistas, sem que alguma vez tenham experimentado esse ofício, possam cumprir com êxito o compromisso, como se esse mesmo tempo fosse crescendo em função do tamanho da encomenda. Um género de milagre de multiplicação de horas, que, convenhamos, só o trabalho consegue. “Todos os anos é um desafio que nos dá um prazer imenso”, revela Inês, com um sorriso cúmplice das companheiras. 

“Em tempos, era a saudosa Fátima Neves que fazia o desenho, dizia-nos as cores, dava-nos amostras dos tecidos e nós íamos comprar”, revela a Inês, “Agora é o Nuno Lopes, figurinista de outras marchas que, voluntariamente, faz isso para nós”. Mas por lá já passaram “o Carlos Mendonça, depois o Paulo Miranda, o Hugo Barros e agora o Nuno Lopes”.

Falemos então ao Nuno Lopes para saber como concebeu o desenho das fatiotas: “Quer a cenografia quer o figurino assinala os 140 anos d’A Voz do Operário, a aprender e a ensinar, mas também homenageia o Parque Mayer”. 

E como fundiu essas duas ideias? 

“No figurino há um misto de fato colegial”, representando os alunos d’A Voz do Operário que são a grande maioria dos marchantes e, através deles, uma das principais funções desta instituição que comemora os seus 140 anos”. Por outo lado, diz-nos, “há no fato apontamentos do teatro revista”. Já na Cenografia Nuno Lopes colocou nos arcos da marcha “a capa de um livro em que o fundo é a boca de palco.”

Mas voltemos ao figurino, bem como à sala de costura. E como aprenderam o ofício? “Olhe, responde a Manuela, quando vim para cá não sabia, então desconstruímos uma camisa e ficamos a saber como se faz”. E lá está na mesa da Manuela, o figurino decomposto em moldes desenhados e cortados por estas nossas costureiras/modistas, que ora esticam ora encolhem o tamanho do molde. São punhos, pregas, costas, frente, mangas, cós, cintura, perna… tudo em tamanhos diferentes, em função das medidas tiradas a cada um dos miúdos marchantes, mais os padrinhos e mais o Santo António. 

O Santo António, questiona o leitor? É verdade, ao Santo António e ao menino jesus que segura nos seus braços, vestidos todos os anos com uma fatiota à semelhança do que é feito a todos os marchantes, mas que, como nos diz Manuela, “é sempre a última a ser confecionada”.

“Quando fazemos o fato do Santo é um momento de descompressão, de satisfação, de dever cumprido, porque o Santo António é o último a ser vestido exatamente como os marchantes, confessa-nos, com a concordância da Inês e da Helena. “Mas os padrinhos é obra nossa!” Vossa? “O Nuno que nos desculpe, mas a fatiota dos padrinhos, ele já sabe, é uma variação nossa da indumentária criada pelo figurinista”. Um género de interpretação jazzística da versão original, concluímos nós.

Então e o Santo António vai na marcha? “Não!” responde-nos a Inês, “o Santo fica aqui vestido a rigor, mas quando ele está vestido é porque está tudo pronto, e nunca falhamos desde 1988”, altura em que, pela primeira vez, as crianças d’A Voz do Operário, desfilaram nas marchas de Santo António. Nunca falhou? Bom, desfia, Helena Fernandes o rosário das memórias. Helena, tal como a Manuela Alegre está nisto desde o primeiro desfile: “Houve um ano em que, já em cima da hora descobrimos que quatro miúdos não tinham roupa.”

“Foi em 2018” precisa a Helena”. E Inês pega na história: “Era um quarto para as 20 e o figurinista vem-nos dizer que faltavam quatro fatos, dois de rapazes e dois de raparigas. Organizamo-nos e às 21h30 estavam todos vestidos.” 

As máquinas de costura voltam ao tico-tico agora um som abafado pela música que vem do recreio. Os miúdos em filas mais ou menos desordenados vão seguindo as indicações da Sofia. Há pouco mais de meia hora que Sofia Cruz abandonou a sua secretária n’A Voz do Operário. Agora vestiu a pele de coreógrafa de crianças que, à partida, diria, não a levam muito a sério. De vez em quando, os miúdos parecem estar mais interessados na brincadeira do que seguir as linhas imaginárias que a Sofia vai construindo no chão. Sofia não parece muito preocupada. Mas faltam meia dúzia de dias, dizemos nós. Ela sorri e responde-nos: “Já repararam que os miúdos já decoraram as letras das marchas e são quatros marchas diferentes?” E lá continua: “meninos façam fila aqui e aponta para um local revelando com a mão um trajeto imaginado por ela”. Uns estão sentados no chão, outros brincam com o colega do lado até que Sofia, sem elevar muito a voz diz: “Vamos lá repetir tudo de início”. E quando esperamos que a criançada dê à sola, os miúdos mais ordenados ou menos lá vão fazendo os passos que a Sofia ordenou, cantando e tentando manter o ritmo da música. Perante o nosso espanto diz-nos Sofia: “É preciso ter em conta que as crianças têm já um dia de escola por isso é natural que estejam cansadas e é por isso que só ensaiamos uma hora por dia”. 

No dia lá estaremos para ver mais este milagre de um Santo António que, depois de vestido a rigor ainda vai ter este milagre de pôr aquela pequenada toda a seguir religiosamente as indicações da Sofia. Pelo trabalho místico bem merece ser apelidado de Santo António, o Operário.

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