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Conversa de insónias no Lavradio

Há uma Escola de petizes no Lavradio que a brincar constrói o seu futuro.

Chegados ao Lavradio, o sol cobre a manhã de luz intensa e contorna o casario que ora cresce dois ou três pisos, abrindo pedaços de sombra, ora baixa ao nível térreo, devassando todos os cantos sem tréguas no clarão do dia. Algumas casas lembram a sua origem rural e uma ou outra, caiada a branco, de amarelo nas ombreiras das portas e janelas, mais o rodapé, como se se assumissem alentejanas. E é assim também na Rua Cândido Manuel Pereira, o Candinho, como era conhecido essa figura do Lavradio, mais propriamente na Sociedade Filarmónica Agrícola Lavradiense, da qual foi sócio número um. Ora, a escola d’A Voz do Operário fica mesmo ao fundo desta comprida rua que, de tão extensa, quase une o Lavradio ao Barreiro, num exagero provocado pela canícula.

Eis como, ultrapassada essa imensa rua, chegamos ao nosso destino. A rua alarga num género de praça das boas-vindas. De um lado o mercado e do outro a fachada da escola, pintada e decorada de fresco. A letras garrafais lê-se: A Voz do Operário, Espaço Educativo do Lavradio, creche, pré-escolar. Mas num pequeno letreiro refere a história do edifício, antes designado a escola do Barquinho, mas que há dez anos navega com a Voz do Operário. E navega muito bem diga-se, sempre muito acarinhada pela população deste porto. Ainda recentemente, tendo a escola decidido pintar a fachada e, convém lembrar a todos, sobretudo ao mais incautos, que as decisões nesta escola são sempre tomadas democraticamente. Quero dizer então que são sempre discutidas por toda a comunidade escolar. Não é bem como eleger uma junta de freguesia, ou uma autarquia, cujos eleitos, uma vez recolhido o voto da maioria dos eleitores, ganham a legitimidade para decidir. 

Aqui, não! Com as devidas distâncias, do universo eleitoral ao alcance das decisões, aqui a legitimidade é renovada a cada decisão que envolva a comunidade. Mas regressemos à soberana e democrática decisão de pintar a fachada da escola. Foram feitas inscrições de quem decidiu integrar a equipa de pintores: alunos, professores, auxiliares, pais, avós, familiares, tutores, toda a comunidade escolar tinha a possibilidade de aderir, ou não, há sempre essa prorrogativa democrática. Só que, no dia da pintura, os vizinhos não resistiram ao apelo, e quem ali passava, zarpava da trincha e aí vai. Ora, como lembra a diretora de equipamento Ana Sofia, nesse dia a pequenada, os pais, os professores, auxiliares participavam na pintura, assumindo a obra como desígnio coletivo e, quando assim é, ninguém resiste, “até os vizinhos que aqui ali passavam juntavam-se à festa”. Ora aqui está como a escola, que acolhe 130 alunos do berçário ao pré-escolar, vai muito para além dos limites murados, com muitas portas e janelas escancaradas à comunidade que a rodeia. Não raras vezes a pequenada atravessa a rua em direção ao mercado municipal numa visita de estudo aos brócolos, couve, pera e maçã, distinguindo a fruta dos legumes, a carne do peixe porque o saber não vem só do sabor.

Vamos lá então abrir o portão da escola, desta vez não para a pequenada sair em visita de estudo, mas para fazermos nós a dita reportagem. Curioso, anotamos logo à entrada, esta escola tem mais espaço exterior que interior, mais espaços abertos que salas fechadas e com a curiosidade de as salas que existem desembocarem todos num recreio ou, se quisermos, como repetidas vezes refere o pedagogo e catedrático Carlos Neto, numa sala ao ar livre na aula da brincadeira. E como também diz, a brincadeira é a melhor sala de aula, porque “não é só um promotor do desenvolvimento sensorial, percetivo, motor e cognitivo, social e emocional, é também um construtor simbólico.” Na verdade, crianças que não brincam não têm infância e tantas que por aqui andaram em tempos, sem tempo nem espaço na fábrica, no campo, para brincar.

Ora chegados aqui, estamos nós em mais uma escola, e não são muitas, em que o esplendor não está na grandeza das suas instalações, embora não lhe falte espaço, mas sim no uso que lhe é dado. A próxima utopia, que a escola tem muitas, é a horta e uma cozinha para que as crianças lidem com essa magia de transformar legumes, peixe e carne numa saborosa refeição. E ambos vão acabar por nascer porque, como diz o narrador Saramago no Ano da Morte de Ricardo Reis, “só a noite é lúcida e o sono vence-a”. 

A curiosidade como ferramenta

Há uma magia que espalha o danado bichinho da curiosidade que vai aguçando o engenho. A inquietação é como um músculo exercitado e que tem efeitos devastadores na inércia de algum ensino. Nesta escola a solução do problema nunca é um mero resultado. Os alunos e os professores não são obrigados a pensar, são estimulados a aprender a pensar e a comunidade participa. “Os pais participam sempre. Às vezes trazem-nos assuntos, objetos, situações, temas suscitados em casa pelos seus filhos”. E, se o assunto envolveu o petiz “vai desencadear a curiosidade dos demais”, revela-nos Daniela, educadora. 

E até as velhas rotinas da escola são desafiantes confessa-nos Telma. “Na manhã de segunda definem as tarefas da semana, as coletivas e individuais, e à sexta fazem o balanço crítico”. A autoavaliação que os torna capazes de se conhecerem a si próprios. Há uma responsabilidade partilhada: O David e a Margarida distribuem o reforço da manhã; Tomás e Naima são meteorologistas, registam o tempo; acertar a data no quadro, para que todos saibam a quantas andam, é tarefa da Alicia e do Luís, enquanto a Mónica e o Lourenço ajudam os colegas a marcar a presença. Em suma, todos têm responsabilidade no bom funcionamento da escola, não para que as rotinas lhes retirem tempo de brincadeira, mas, pelo contrário, para que todos tenham mais tempo de brincadeira.

Aqui, a insónia persiste o momento de lucidez 

O almoço já lá vai. Os mais pequenos seguem sonolentos para os colchões reivindicando uma reconfortante sesta, mas há, porque há sempre, quem resista. Um grupo de miúdos reúne-se em círculo numa sala. Numa das pontas a auxiliar estica a conversa e, para que todos se ouçam, segura um tema livre dando a espaço para que todos falem sem atropelos. É uma moderação, mas tem a particularidade de ser uma conversa sem muros, como se corressem todos em campo aberto. Os assuntos tocam ora conflitos entre eles, ora apenas curiosas considerações sobre o comportamento dos adultos que mais os intrigam ou até mesmo constatações. E a todos a auxiliar dá resposta, ou, suscita a reflexão coletiva. A todos, Célia leva a sério. Todos são escutados com atenção. Os miúdos do pré-escolar (4, 5 e 6 anos) vão desinibindo, vão aprendendo a ouvir os outros que o escutam também com atenção. O tempo ali não é cronometrado, é ritmado pela maior ou menor desenvoltura. O esforço para se exprimir é um truque de Célia que os obriga a rebuscar palavras que conhecem, mas que precisam de consolidar no seu bornal de palavras. Não há, ao que parece, pressa no tempo de reunião ela de repente desfaz-se como uma curiosidade que se satisfez e voltam todos ao tempo de brincar, ou melhor, a outro brincar. 

Deixamos aqui um aviso a quantos passam no exterior desta Escola d’A Voz do Operário do Lavradio e não se apercebem do que ali acontece todos os dias. Não é só uma escola, é a vida de uma comunidade que felizmente cresce feliz e que será cívica e culturalmente muito mais saudável.

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