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Heterogeneidade em creche: um passo para a autonomia

A Creche da Ajuda foi inaugurada em 2016 e foi pioneira na heterogeneidade dos grupos de creche n’A Voz do Operário. Isto é, as salas sempre funcionaram com crianças de idades compreendidas entre os 12 e os 36 meses.

Esta heterogeneidade etária reflete-se na diversidade das famílias, das crianças e das vivências e interesses, o que tem demonstrado contributos a diferentes níveis no desenvolvimento das crianças.

A nível emocional, destacamos a estimulação da empatia, que promove a entreajuda; o sentimento de pertença e proteção; a autoconfiança e a autoestima que se desenvolvem a partir da exploração de um espaço preparado para desafiar crianças em diferentes fases do seu desenvolvimento.

A nível social, as crianças mais capazes tornam-se o modelo, o exemplo, para as outras e a partilha de uns suscita novos pontos de interesse nos outros, por exemplo, o gosto pelos livros e pela leitura. Esta interação entre crianças de diferentes idades estimula a linguagem e a comunicação, a curiosidade, o espírito crítico e o respeito pelo outro.

Com a entrada da criança na creche, o meio que a rodeia deixa de ser apenas os familiares mais próximos (pai, mãe, avós e irmãos), passando a existir outros adultos e outras crianças com os quais irá interagir. Nestes grupos heterogéneos, a interação social com os pares e os adultos, estimula, por exemplo, a autonomia e é nesta competência que nos vamos focar neste artigo.

A autonomia é fundamental no desenvolvimento da criança, no seu dia-a-dia, e advém da vida em sociedade. Com a experiência que temos vivido na creche, podemos observar que o desenvolvimento da autonomia acontece por fases. As crianças começam por desenvolver competências nos cuidados básicos de higiene e alimentação, como agarrar a colher e comerem sozinhas, recusam ajuda do adulto e afirmam a sua autonomia dizendo “eu consigo”. Posteriormente, começam a ser capazes de fazer escolhas do que querem ou não querem fazer, se querem ou não mais comida ou para onde querem ir. Mais tarde começam a olhar para os pares e a ajudá-los no que precisam, por exemplo, dar-lhes a sua chucha quando estão a chorar.

Com o desenvolvimento da autonomia, as crianças começam a querer participar nas tarefas e responsabilidades do grupo e, ao realizarem estas tarefas, sentem-se mais “crescidas” e reforçam a sua autoestima, autoconfiança e autonomia. Muitas destas ações de autonomia são reflexo do que observam ao longo do tempo na creche. Quando uma criança está preparada e demonstra interesse em ir à sanita, muitas vezes observou anteriormente outras crianças a fazê-lo, portanto, quando chega a sua vez, é algo que já viu como fazer e já sabe como é. A aprendizagem por observação de crianças já com certas competências adquiridas, é outra característica fundamental na promoção da autonomia, nos grupos heterogéneos. 

Esta forma de ver a criança como um ser capaz, competente e de ter um adulto que permite este espaço de liberdade à criança, demonstra também um grande respeito por ela. Tudo isto, fomenta a autonomia e transmite confiança necessária à contínua exploração do mundo.

E qual o papel do adulto neste processo? O adulto tem um papel fulcral no reforço positivo que dirige às crianças; em estimular, apoiar a criança a fazer por si própria; em criar oportunidades para que isso aconteça e em criar um espaço de liberdade e de livre acesso aos materiais. 

Apesar de tudo isto, desde o início da creche que os adultos enfrentam o desafio de responder às necessidades de cada umas das crianças; a dificuldade em balancear-se entre os mais pequenos que precisam de colo e atenção e os mais autónomos que requerem grande disponibilidade do adulto, porque estão interessados, curiosos, com o sistema cognitivo mais desenvolvido e que precisam que o adulto lhes provoque novos estímulos. A gestão entre estes dois polos é talvez a grande inquietação que os adultos sentem na prática com grupos heterogéneos.

Heterogeneidade ainda no berçário…

A heterogeneidade e os seus benefícios estão presentes ainda antes da creche, no berçário. Se por um lado, recebemos crianças que ainda não se sentam e pouco interagem com os outros, por outro lado, existem crianças que já gatinham para chegar onde querem e que conseguem, à sua maneira, fazer-se entender. Rapidamente se cria um afetuoso espírito de grupo e um sentimento de proteção em relação aos mais pequenos, que ajuda na manutenção de seu bem-estar. 

Também acontece uns magoarem outros, de forma não propositada, e estas situações favorecem a sensibilização para o desconforto que podem provocar e ajuda-os a perceber que um pedido de desculpas, traduzido por um abraço ou um miminho, pode ter um efeito muito benéfico. Assim, vão-se apercebendo que os gestos de carinho ajudam a ultrapassar as situações mais desagradáveis.

Existem inúmeras vantagens na convivência entre as crianças crescidas, aqueles que já comem “sozinhas”, que já são capazes de ajudar a arrumar o que desarrumam, que já se deslocam autonomamente para conseguir os seus objetivos, que já conseguem fazer-se entender, ainda que de forma não verbal, e os bebés mais pequeninos, que acabam por adotá-los como modelo e que os motiva a evoluir.

Esta “mistura” de fases do desenvolvimento, ajuda a despertar nas crianças a noção do valor da empatia, do respeito pelo outro, pelo diferente, pelo aparentemente menos capaz, sempre dentro de uma perspetiva em que a cooperação é valorizada.

Concluímos assim que os aspetos positivos na prática com os grupos heterógenos superam todos os desafios que possamos encontrar, por isso continuamos a acreditar que faz todo o sentido a heterogeneidade mesmo com crianças tão pequenas, pois a importância dada ao desenvolvimento pessoal e social, o investimento na cooperação e entreajuda é fundamental para as etapas seguintes da vida da criança.

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