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Descentralização

Transferência de competências ou um presente envenenado

Com a transferência de competências em áreas tão estruturantes como a Saúde, a Educação, a Assistência Social e a Habitação, a Associação Nacional de Municípios (ANMP) reivindica o reforço de verbas do Orçamento do Estado(OE). Mas as queixas dos municípios não deixam dúvidas: à transferência de responsabilidades não corresponde uma transferência de meios técnicos, financeiros e humanos. “É uma falsa reforma administrativa que reproduz as assimetrias regionais já existentes”, carateriza o geógrafo Luís Mendes, garantindo que tudo isto culmina “numa injustiça espacial”,  em que os cidadãos não acedem aos mesmos serviços de uma forma igualitária. Ou seja, “um Portugal com cidadãos de várias categorias em que nem todos vão ter acesso à Justiça, à Educação, à Habitação de uma forma equitativa”. A Associação Nacional de Municípios Portugueses reagiu, na última reunião, ao suposto estrangulamento financeiro das autarquias, sempre à espera da compensação financeira e de meios que permitam responder em nome do Estado Central. 

O receio que o OE 2022 seja demasiado conservador em matéria de transferências de verbas para os municípios, de resto em contraste com a transferência de competências, é o que se pode deduzir da conclusão da reunião do Conselho Diretivo da Associação Nacional de Municípios, realizada no início do mês de outubro. Desta vez é o simples cumprimento da Lei das Finanças Locais, que só no OE de 2023 implicaria uma transferência de 219, 73 milhões de euros. A perspetiva não parece nada animadora. 

Mas esta preocupação não é única porque, como refere a ANMP, o acordo assinado entre esta associação representativa das autarquias portuguesas e o Governo, que envolve a implementação de um conjunto de medidas nas áreas da Educação e da Saúde, vão ter um impacto financeiro “significativo nas contas dos municípios já no próximo ano”, avança a ANMP, exigindo por isso que o Orçamento do Estado para 2023 “assegure os recursos financeiros necessários à implementação dessas medidas”.

Às competências, já contratualizadas com os municípios, o Governo transferiu novas competências, particularmente nas áreas da Educação, Saúde e Ação Social, que vão ter, refere a própria ANMP, “enorme impacto”, o que fez com que as autarquias tenham avançado com “um conjunto de reivindicações”, às quais o Executivo nem respondeu.

O caderno reivindicativo dos municípios é um longo rol de dívidas acumuladas que o Governo tem por liquidar. Por exemplo, a dívida do Fundo Social Municipal é de 104 milhões de euros (18M€ de 2019, 35M€ de 2020 e 51M€ de 2021).

Só resultado dos gastos com a pandemia, os municípios reclamam 156 milhões de euros de gastos no combate à pandemia e no apoio às pessoas mais vulneráveis, responsabilidades que cabiam ao Governo e deviam por isso estar contemplados no OE de 2023. 

Ainda segundo a ANMP, “dos 211,4 milhões de euros de despesa validada pelo próprio Tribunal de Contas, os municípios ainda só tiveram acesso a 55 milhões de euros” cuja proveniência é atribuída ao Fundo de Solidariedade da União Europeia. Os efeitos desta dívida são mais dramáticos nas autarquias mais pequenas e com menos capacidade de endividamento. 

Para Vítor Proença, presidente da Câmara Municipal de Alcácer do Sal e membro do Conselho Geral da Associação de Municípios Portugueses (ANMP), “O país tem estado habituado a uma prática de subfinanciamento por parte dos sucessivos governos”, e, acrescenta “se este governo na transferência de competências quer transferir o subfinanciamento na área da Educação, da Saúde, da Ação Social e de outras, então devia ficar com esses setores subfinanciados, porque não são os municípios que vão ultrapassar ou resolver aquilo que é o crónico subfinanciamento da Administração Central”, Vítor Proença considera que “os municípios têm feito imenso pela qualidade de vida das populações, mas não podem fazer tudo e há uma responsabilidade do Estado Central e dos governos relativamente às políticas sociais, e as transferências e os envelopes financeiros não são suficientes para efetuar uma reviravolta” nessa matéria. O autarca de Alcácer considera que, por outro lado, “falta o patamar regional, porque nunca os municípios conseguirão, mesmo com comunidades intermunicipais, ultrapassar o défice das regiões administrativas”.

É, de resto, na União Europeia que, segundo o geógrafo Luís Mendes, reside a origem desta política de transferência de competências em áreas cuja responsabilidade caberia ao Governo. 

São já 20 as áreas sobre as quais há transferências de competências para o pode local. Desde a Educação, Proteção Civil, Bombeiros, Saúde Ação Social, Cultura, Habitação Policiamento de Proximidade, Justiça, Estradas, entre outras. 

“Trata-se de um projeto neoliberal que vem do Memorando da Troika”, sustenta: “Muito pensamento crítico, a nível da ciência regional, defende que, por princípio de subsidiariedade, os poderes que estão mais próximos do cidadão são aqueles que de uma forma mais eficientes conseguem resolver os problemas”. Porém, acrescenta, nesta “visão neoliberal, do planeamento e do ordenamento do território, esta suposta reforma não é descentralizadora, não dá poderes de tomada de decisão às autarquias, dá poderes executórios no cumprimento a uma série tarefas, a uma série de competências que são do foro do poder central, e muitas fazendo isto sem a participação das populações”. Muitas vezes, acrescenta “não conta com a participação das comunidades e tem grandes dificuldades do ponto de vista de recursos económico, humanos e técnicos”. E, conclui o geógrafo, “o que se está a fazer é a reproduzir desigualdades porque os municípios que respondem a estes apelos do Estado Central são os que têm capacidade para o fazer, o que significa que os outros não o podem fazer.”

Por exemplo, segundo dados da Direção Geral das Autarquias Locais, no que respeita à transferência de competências na área da Saúde, dos 278 municípios apenas 201 têm condições para assumir estas competências e destes apenas 25% as exercem. No que respeita à Assistência Social a situação é algo semelhante. Dos 278 municípios que podem exercer aquelas competências delegadas, apenas 26% dos municípios as exercem efetivamente. Na área da Cultura a única função que as 278 autarquias exercem a 100%, é o licenciamento de espetáculos de natureza artística, porque em matéria de Gestão, valorização e conservação dos imóveis classificados de âmbito local e de museus não nacionais, universo aplicável é de apenas 55 autarquias e mesmo assim só 41 exercem. 

“Esta reforma administrativa não é descentralizadora, é contra um projeto crítico de regionalização e o que está a fazer é a reproduzir desigualdades, porque os municípios que respondem a estes apelos do Estado Central são os que o têm capacidade para o fazer, o que significa que os outros não o podem fazer”, refere Luís Mendes. 

“Não pondo em dúvida a qualidade dos técnicos e dos trabalhadores nas câmaras municipais, “é um erro estratégico que interessa aos poderes difusos, ao tecido empresarial mais poderoso neoliberal”, a quem “interessa que este projeto falhe, para depois acusar o Estado de que não consegue cumprir a nível local os desígnios da educação, da ação social, da habitação, da saúde”, para propor “não só a privatização, mas também a gestão neoliberal dos serviços”, sustenta Luís Mendes e pergunta: “Não é para lá que caminha, em matéria de saúde, toda esta desagregação do SNS?”

Por outro lado, o exemplo da construção do novo Hospital de Sintra parece um caso paradigmático de como as autarquias, as que podem, se endividam, substituindo o poder central. Neste hospital, “que vai ter valências sub-regionais, portanto um âmbito quase regional”, refere o geógrafo, a autarquia vai “alocar do seu orçamento, cerca de 30 a 40% para comparticipar no custo desta construção”, o equivalente a “cerca de 50 milhões de euros”. Isto significa, refere Luís Mendes, que “as situações de endividamento municipal, que são extremamente desiguais no contexto nacional, só agravam as assimetrias regionais, não as resolvem, nem as combatem”. 

O pensamento “economicista”, como refere o geógrafo, preside à gestão do território, já que “todas estas engenharias financeiras que possam ser encontradas para descentralizar do Estado Central o ónus da dívida e conseguir cortar na despesa social dos principais setores estratégicos do Estado, não só cortar o financiamento, mas também privatizá-los, no sentido de permitir que deixem de ser encargos do Estado”, têm, em seu entender a justificação “das contas públicas certas para que não se agrave o défice”.

A Habitação é uma área em que a municipalização de competências passa pela definição das estratégias locais que derivam diretamente de um esforço das câmaras municipais de conseguirei contratualizar com o Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IRHU), que é quem concentra a figura do Estado Central na administração da Habitação. O contrato estabelecido permite, depois, a redistribuição do dinheiro do Plano de Recuperação e Resiliência, a sua injeção na estratégia local e na criação da oferta de habitação. 

Este processo, obrigou o IRHU a abrir 80 vagas para técnicos superiores “porque não tinha capacidade para vazar os apelos que vinham das autarquias”, refere Luís Mendes. Mas há, diz o geógrafo, “uma lógica concorrencial entre vários municípios”, ou, como refere, “a lógica de quem vai primeiro com a mão ao pote”. O Município de Loures, por exemplo, “estava atrasado com a sua estratégia local de habitação e mais de metade do dinheiro do PRR estava alocado. Ora, Loures é dos municípios com maiores precariedades e vulnerabilidades habitacionais. Não se pode começar a distribuir o dinheiro sem ter todas as estratégias locais de habitação aprovadas, para perceber por onde é que se pode alocar essa verba. Há uma reprodução das desigualdades a nível local”, conclui.

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