Opinião

Literatura

Nos 80 anos da publicação de Esteiros

O aparecimento de Esteiros, em 1941, de Soeiro Pereira Gomes (cumprem-se este ano 80 anos da sua publicação), numa edição que exibia a belíssima e expressiva capa desenhada por Álvaro Cunhal, vem aprofundar o caminho de descoberta e denúncia social, iniciado com Gaibéus, de Redol, incidindo a obra de Soeiro e a sua especulação político-social sobre os universos da exploração do trabalho infantil, cujas coordenadas mais abjectas escapavam às consciências burguesas e a grande parte da intelectualidade urbana.

Soeiro introduz no discurso literário deste exemplar romance, dados sociológicos novos, uma linguagem sensível e arguta que mergulha fundo nesse nicho de desprezível exploração, dado que exercida sobre os mais indefesos elementos da base social, levando o leitor a tomar consciência dessa realidade, da vida agreste desse núcleo sobre o qual a usura do capital exercia toda a sua inumana brutalidade. 

Essas vulneráveis ilhas humanas, ainda não inscritas no corpo diegético do neo-realismo: o mundo da infância e da pré-adolescência, da miséria que invade, desde o berço, esse território que queríamos de descoberta e construção do ser, invadido de forma violenta pela ganância que vai destruindo sonhos, capacidades, modos outros de crescimento e realização pessoal e colectiva; um mundo do desenrasca, da luta quotidiana por um naco de pão para enganar a maligna, do trabalho escravo nos telhais, da rebeldia, da ternura, do companheirismo, da aventura e da transgressão – esse universo épico, que o verbo dorido e sensitivo de Soeiro Pereira Gomes trata e percorre com objectividade e plena maturidade formal; a expressiva utilização do linguajar das gentes da beira Tejo, doseando de modo exemplar o drama e o jocoso popular com a agudeza de análise das contradições da burguesia, o gradual cinismo que os títeres em presença estabelecem entre si, para melhor definirem os campos e o espaço que lhes cabe na refrega da cupidez. 

Soeiro cria, com Esteiros, um fresco denunciador da sordidez que o fascismo luso exibia nas suas invisíveis margens, na análise que constrói, ancorado nos traços significantes da matéria social e histórica que dominava a Europa – o feroz capitalismo ungido no terror -, no modo como elabora, a partir das personagens principais (Gineto, Gaitinhas, Maquineta, Sagui) a representação realista e modelar desse período, das circunstâncias atípicas em que a sua acção (partindo do particular para o colectivo) nele se desenvolve, marcando as componentes teóricas que condicionaram o desenvolvimento do país nessa fase histórica (1930/40).

Um romance a vários títulos exemplar e actual. A ler ou a reler.

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