Opinião

Os universos temáticos de Modesto Navarro

O discurso literário de Modesto Navarro, a sua parte substantiva e a mais consequente ao longo da sua vasta obra ficcional, reside na memória, nesse acervo que recolhe as emoções, o júbilo, as dores de um percurso de vida e as suas singularidades. A autoficcionalidade dessa obra transporta no seu bojo temático, as origens, logo, a sua Vila Flor natal, a forja onde trabalhou com os irmãos e o pai, vertical e austero, a mãe, com a qual se fez sensível e atento às coisas do mundo, a biblioteca, quase interdita, da Câmara Municipal, as leituras iniciáticas por alguns livros, à margem dos consensos estreitos da época, os seus conterrâneos e os afectos, o café onde todas as notícias desaguavam, a dureza de uma existência sempre precária. Depois, a escrita do primeiro livro de contos, Libelo Acusatório (1968), a descoberta da cidade grande, a publicidade, a militância política, a guerra colonial, o convívio com grandes autores, Saramago, Manuel da Fonseca, Orlando da Costa, Augusto da Costa Dias, a prisão em Caxias.

Este vasto universo vivêncial de Modesto, percorrerá grande parte da sua ficção, desaguando nesse delta épico que é A Oitava Colina e, um romance formalmente menos conseguido, A Capital do Império, por onde as memórias de um jovem mancebo, aguardando guia de marcha para a guerra colonial, em Moçambique, percorre as margens de uma Lisboa fechada nos silêncios brumosos do salazarismo.

É ainda este envolvimento entre ficção e realidade, que Modesto Navarro traz para o seu mais recente título, Ronda. Trata-se de um livro em prosa poética por onde a memória sensitiva do autor de Contos Transmontanos, percorre a Lisboa dos dias resistentes, a evocação dorida e nostálgica das gentes do seu território afectivo (Trás-os-Montes), o júbilo e a desilusão do que foi a mais bela conquista do 25 de Abril, a Reforma Agrária, e os dias insanos, os verdugos e a insídia dos dias de cárcere em Caxias, o recordar das feridas: Daqui só se vai de três maneiras, dizia. Ou se fala a bem, ou se fala destruído, ou não se fala e então é ida para o manicómio e nunca mais se tem consciência.

Modesto Navarro, fez ainda uma incursão marcante pela literatura de género, pelo policial progressista, na senda do que acontecia em Cuba por esse tempo, com nomes como Alberto Molina. São de Modesto, sob o pseudónimo Artur Cortez, alguns estimáveis romances como Morte no Tejo, A Morte dos Anjos, A Morte do Artista, Morte no Douro e Condenada à Morte, que foi Prémio Caminho de Literatura Policial, em 1991. O romance O Deputado, uma das últimas incursões de Modesto pelo género, é uma corajosa denúncia de um dos políticos mais corruptos do pós-25 de Abril.

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