Entrevista

Política

Jerónimo de Sousa: “Uma grande força dos trabalhadores”

“A fábrica esperava-nos”, descreve, ao falar da sua geração, Jerónimo de Sousa, operário metalúrgico que começou a trabalhar aos 14 anos. Hoje secretário-geral do PCP, partido a que aderiu em 1974, defende que a organização comunista carrega um projeto de futuro sem esquecer as gerações e as lutas que a ergueram. A resistência está no ADN do único partido que resistiu aos 48 anos de fascismo e que pretende semear um porvir de justiça social.

Ao longo da história, fosse durante o fascismo, fosse nas últimas décadas, houve quem anunciasse a morte do PCP. O que significa para o partido chegar à marca dos cem anos?

Sim, é uma longa caminhada. Quantos e quantos vaticínios não se fizeram sobre a morte do PCP, já nessa altura, quando foi obrigado à luta clandestina? Depois, o fascismo situou como inimigo principal o PCP. Com a perseguição, com a violência e o assassinato, muitas vezes liquidando esta e aquela organização…quando conseguiam isso, proclamavam o fim, a morte do PCP. E ao longo de décadas, este partido afirma-se e transforma-se também num partido de resistência antifascista, um partido que assentava a sua luta, os seus objetivos, nas aspirações dos trabalhadores, que colocava no nosso país, nos 48 anos de fascismo, a necessidade de um alargamento de uma base identificada com este grande objetivo. Também aqui um PCP que se assumiu como vanguarda da luta dos trabalhadores e que, simultaneamente, foi um grande construtor da unidade antifascista, convocando democratas, patriotas, para essa luta até aos dias de hoje. É impressionante, de facto, ao fim de cem anos, ouvindo hoje os comentadores, que sistematicamente nos grandes órgãos de comunicação social vão anunciando o fim do PCP, porque eles têm a consciência, e não estão enganados, que o grande obstáculo aos seus objetivos de exploração e de repressão encontra sempre uma dificuldade objetiva que é o Partido Comunista Português e a sua luta. 

Entende que no fundo são estas as caraterísticas que fizeram do partido o que ele é hoje?

Em primeiro lugar, há uma razão funda que é a de ser um partido profundamente identificado com as causas, as lutas dos trabalhadores, e a luta contra essa exploração, em condições muito difíceis. Quando se formou em 1921, teve um curto período na legalidade, mas depois no 28 de maio de 1926 [golpe fascista] foi logo o único partido que, ao contrário de todos os outros que foram proibidos ou se autodissolveram, se manteve firme, tendo de passar obviamente à clandestinidade.

Esta causa funda da defesa dos direitos e interesses dos trabalhadores, no seu incentivo à luta, à luta organizada. Fundamental, depois porque tem um projeto de emancipação, com o objetivo supremo de eliminar a exploração do homem pelo homem e esse projeto, tanto antes como depois do 25 de Abril, foi sempre o rumo certo e seguro da necessidade dos trabalhadores de terem este instrumento poderoso que é o Partido Comunista Português. 

Na sua fundação, surge como uma necessidade dos operários, dos trabalhadores, até ali com uma grande influência do anarco-sindicalismo, que, para além da coragem, também dos sacrifícios que fizeram, das perseguições, consideravam que não interessava a luta política, apenas a luta económica e sindical.

O surgimento desta força [PCP] resulta de uma necessidade da classe operária, dos trabalhadores. Um partido que afirmando-se patriótico mas simultaneamente internacionalista sempre esteve na defesa da causa da independência, da soberania nacional, da afirmação de Portugal como um país livre, democrático, independente, mas que simultaneamente tinha esta dimensão internacionalista. Era o camarada Álvaro [Cunhal] que dizia que para se amar a nossa pátria, o nosso povo, em torno destas causas justas, naturalmente temos de ser solidários com outros trabalhadores e outros povos do mundo, que lutam pela sua emancipação, não há nenhuma contradição, antes pelo contrário, é esta harmonia, esta conjugação da luta na nossa e pela nossa pátria e pelo nosso povo e simultaneamente essa dimensão de sermos sempre solidários com outros povos. 

Fazendo o exercício ao contrário, Portugal seria um país profundamente diferente se em 1921 aqueles jovens, aqueles trabalhadores, não tivessem tomado a decisão de fundar um partido comunista?

Sim, sem dúvida. A história seria diferente, diferente porque nós estávamos a viver tempos difíceis. A repressão era cada vez maior, a própria guerra depois, a segunda guerra mundial, veio também dar uma contribuição para que essa repressão aumentasse, apesar de o governo de Salazar assumir uma falsa posição de neutralidade, e, de facto, não teria havido aquele 25 de Abril que houve, em que foi o nosso partido que ao longo de décadas proclamou a necessidade de liberdade, de democracia e de libertação dos trabalhadores da exploração brutal. Poderíamos dizer que a história talvez mais tocante é a forma como o partido resistiu durante o tempo do fascismo mas as páginas mais fascinantes da vida do partido foram escritas depois do 25 de Abril, pelo seu papel, pela sua intervenção. Poderíamos dizer de facto que este partido foi o partido de Abril.

O Jerónimo foi um jovem operário, cresceu nesse contexto, na cintura industrial de Lisboa. Um delegado de Bragança afirmou no último congresso do PCP que há partido até nos lugares onde não há gente. Parece que o PCP carrega nos ombros a memória de um tempo que foi destruído.

Em primeiro lugar, o partido de facto estava onde muitas vezes se pensava que não estava mas o António Aleixo dizia que o homem é sempre o produto do meio em que foi criado. Eu nasci na corda industrial, aqui em lisboa, e fui muito cedo para a fábrica. Aquele era o nosso destino profissional. Era ser ou serralheiro ou vidreiro ou cerâmico ou químico. A fábrica esperava por nós e nós facilmente contactavámos o partido, por exemplo, através do Avante! proibido em que os mais velhos nos davam esse pequeno jornal, às vezes em papel de seda por razões de segurança, em que lendo aquele avante, conhecíamos as lutas de outras fábricas e as posições do partido.

E é a esse chamamento que eu respondi. Logo em 1972/73, tomámos conta do sindicato dos metalúrgicos derrotando uma lista que o fascismo tinha construído à pressa. Eu tenho na memória uma assembleia geral de metalúrgicos n’A Voz do Operário, em que eram 500 metalúrgicos e 600 polícias, mas era assim que formávamos a nossa consciência sindical. E naturalmente aderíamos ao partido.

O partido contactava connosco, muitas vezes ainda sem um vínculo formal, e apontava-nos o caminho unitário da luta para tomar conta dos sindicatos, conquistar os sindicatos ao fascismo e isso aconteceu, e é exemplo a CGTP-IN que logo se funda em 1971 mas era a luta sindical que nos atraía ao próprio partido e com o 25 de abril foi o partido que mobilizou os trabalhadores para concretizar objectivos concretos.

Eu lembro-me, em 1974, estávamos a preparar, um grande 1º de maio no Rossio, se não se tivesse dado o 25 de Abril. Aliás, as forças repressivas já tinham orientações para prender os dirigentes do sindicato dos metalúrgicos no dia 30 de abril. Acabaram eles por ser presos e fez-se aquele grande, grande 1º de maio com objetivos muito marcantes. Os objetivos desse 1º de Maio proibido no Rossio tinha como palavras de ordem o direito à greve e o fim à guerra colonial que constituía um anseio profundo de grandes massas. Esse 1º de Maio [legal] demonstrou como se encetou num processo de conquistas de direitos que durante 48 anos foram pura e simplesmente negados, reprimidos, e que levou a que este partido se afirmasse como uma grande força dos trabalhadores.

Falou na guerra e o Jerónimo foi também um dos jovens que foi obrigado a combater nas colónias. Como é que olha para este voto de pesar aprovado na Assembleia da República a propósito de Marcelino da Mata?

Eu creio que é um caso individualizado, que não é confundível com o sentimento geral de quem ia para a guerra. Em primeiro lugar, éramos obrigados e essa grande massa de jovens que teve de ir para a guerra foi também um elemento de alerta e consciencialização. O partido tinha essa orientação sobre a importância da libertação dos povos das colónias e foi importante a consciencialização de milhares e milhares de jovens forçados a ir para a guerra, percebendo que estavam numa guerra injusta e que estavam a servir de arma de arremesso para combater a luta dos povos das colónias.

Esse caso concreto onde a pessoa se gabou de ter cometido crimes de guerra, não pode ser confundido com a luta de milhares e milhares de homens e mulheres, jovens,  angolanos, moçambicanos, guineenses, são tomenses, cabo-verdianos, que construíram a sua independência a pulso, com a compreensão de muitos jovens que andavam ali, e uma solidariedade permanente do nosso partido. É uma evidência que lá receávamos ser colocados numa situação extrema de defender a vida. Acresce que estávamos lá obrigados. Nós tínhamos e temos a tese de que um povo nunca é livre se oprime outros povos e essa visão levou a esta posição de fundo da necessidade da independência das colónias. Na altura, o fascismo considerou até o PCP como terrorista devido a esta posição solidária e internacionalista.

Quase cinco décadas depois da revolução de Abril, o que é que faz alguém hoje aderir ao PCP?

Muita coisa mudou, de facto, nestes cem anos, particularmente depois de Abril, mas há coisas que não mudaram. Designadamente, a exploração dos trabalhadores, as políticas sociais e laborais profundamente injustas, em que o direito ao trabalho, à segurança no emprego, a salários mais justos, à proteção social, tudo aquilo que a Constituição da República e as leis inscreveram e tiveram retrocessos muito grandes.

As coisas mudaram no plano da ciência e da técnica mas não alterou a natureza das coisas. Um jovem como eu, que fui trabalhar aos 14 anos para metalúrgico, e um metalúrgico fazia a sua carreira profissional, em conformidade com o desenvolvimento da sua própria consciência política e social, e hoje um jovem não vai trabalhar aos 14 anos mas quando ingressa no mercado de trabalho conhece formas de exploração violentíssimas. Com o sistema de precariedade são os jovens que são fundamentalmente atingidos pelos contratos a prazo, pelo período experimental, pelo trabalho de 15 em 15 dias, milhentas formas que o capital encontra para explorar hoje um jovem trabalhador. 

Depois, tendo em conta a situação que vivemos e a liquidação sistemática do aparelho produtivo, hoje um jovem sai da escola ou da universidade e descobre que afinal a sua história não é muito diferente, salvo em termos da idade, da violenta exploração a que éramos sujeitos. Não é com uma ferramenta na oficina mas dão-lhe o computador, reconhecem-lhe capacidades nesse plano mas geralmente com salário mínimo nacional, com emprego inseguro.

Esses vínculos precários dificultam a sua organização e unidade com outros trabalhadores. Hoje, um jovem está aqui neste centro de contacto e amanhã está numa empresa ou na administração pública com um vínculo precário e sai dali e pode ir para outra empresa. É uma grande insegurança, uma grande volatilidade que faz tardar mais a sua própria consciência social. Nós na fábrica, mesmo antes de Abril, fazíamos plenários para discutir reivindicações, afirmando ali a força da unidade e a força da massa que ali estava a reivindicar. 

É uma dificuldade mas não é uma impossibilidade. Por exemplo, há lutas em centros de contactos. São jovens na sua maioria, na luta pelos seus direitos, hoje de uma forma diferente, mas a causa é sempre a mesma e por isso é que este partido é tão necessário. [A revolução de] Abril foi muito atacada, muitas das suas conquistas liquidadas, é verdade, mas os seus valores continuam perenes e presentes. No outro dia, numa escola secundária, falando de Abril, do que foram as conquistas e transformações, um jovem levantou-se e perguntou porque é que vocês nunca nos contaram isto. Hoje, olhamos para um livro de história e o 25 de Abril merece uma frase. Houve uma ditadura, um golpe militar e conquistou-se a liberdade, ponto. 

O PCP, que é dos que mais tem defendido a existência e o reforço do Serviço Nacional de Saúde, tem sido frequentemente acusado de desvalorizar o combate à pandemia porque votou contra os últimos estados de emergência. Qual é que é de facto a posição do partido?

Seja numa iniciativa, seja no quotidiano, seja na forma de estar, consideramos fundamental que as pessoas façam a proteção social necessária, que tomem as medidas que a Direção-Geral da Saúde aponta, desde as máscaras, desde a questão do distanciamento social, desde a limpeza. Não consideramos que esta nossa atividade política, no respeito pelas normas, como disse, seja incompatível com o combate à pandemia. O estado de emergência é uma exceção e não pode ser a solução. Naturalmente, toda a gente compreende isso. Há dois milhões de trabalhadores que continuam a trabalhar todos os dias, as pessoas têm de encontrar formas de fazer frente à vida e às imensas dificuldades, e simultaneamente nós consideramos importante combater o medo. 

As forças mais reacionárias sempre exercitaram o medo como arma para conseguir os seus objetivos e não há nenhuma contradição entre tomar medidas a peito, todas aquelas que são enunciadas e decididas, como já se verificou na Festa do Avante!. Foi um bombardeamento brutal [contra o PCP] e, hoje, demonstra-se cientificamente que não houve nenhum problema relacionado com a festa. Nós tínhamos um grande comício no Campo Pequeno a propósito do centenário e reconsiderámos. Não vamos fazer o comício no Campo Pequeno mas vamos fazer ações por todo o país, naturalmente diferentes na dimensão. Isto do confinamento pode resolver momentaneamente, mas ao mesmo tempo consideramos mais grave tomarem as medidas resultantes do estado de emergência sem terem em conta a situação dramática que, hoje, centenas de milhares de portugueses vivem, em relação ao seu salário, aos seus direitos que estão a ser vilipendiados nas empresas e nos locais de trabalho, a situação dramática dos micro e pequenos empresários, particularmente da restauração, a situação em que se encontra o sector da cultura, do desporto, um conjunto de situações gravíssimas a que o estado de emergência não dá resposta.

Perante um cenário social e económico que pesa sobre a vida dos trabalhadores e da população qual deve ser a resposta?

Em primeiro lugar, é importante não calar as injustiças que resultam desta situação preocupante em termos de saúde pública e não deixar as pessoas ao abandono porque as consequências, incluindo do plano psicológico e mental para além do plano social de haver milhares e milhares de pessoas que não sabem o que hão de fazer à sua vida, é um problema a que tem de ser dada resposta que o estado de emergência não resolve. Por isso o nosso partido, por exemplo, continua com reivindicações e com propostas na Assembleia da República. Por exemplo, em relação aos trabalhadores em teletrabalho e ao acompanhamento dos filhos o governo não dava resposta e nós tomámos iniciativa. Apresentámos o projeto de lei e travámos uma luta no terreno, realizando iniciativas, ouvindo os pais, ouvindo os trabalhadores nessa situação e, de repente, toda a gente descobriu agora as injustiças que se estão a passar com os trabalhadores em teletrabalho, no acompanhamento familiar. Muitos nem sequer dizem que foi o PCP, Estivemos sozinhos neste combate durante meses. Deu-se um passo adiante, embora insuficiente, mas por mérito do PCP que não baixou a guarda, que não baixou a bandeira e reuniu com muitos pais, muitos trabalhadores e podemos dizer que se conseguiu um largo consenso daqueles que há poucas semanas atrás achavam isto um disparate.

Logo depois do fim da União Soviética surgiu aquela célebre teoria de que o capitalismo era o fim da história. Entretanto, há inúmeros protestos pelo mundo e também o perigo do crescimento de forças de extrema-direita. Que leitura faz deste contexto em que vivemos?

Em primeiro lugar, confirmou-se que o capitalismo não era o fim da história nem era o fim da humanidade. Aliás, nunca mais vi grandes referências por parte desses teóricos que anunciavam isso. E por uma razão singela, é que enquanto existir exploração, o capitalismo não será o fim da história da humanidade porque mesmo em condições muito difíceis, num quadro compelxo de relações de forças, os povos continuam a lutar, os trabalhadores continuam a intervir e a proclamar a necessidade dessa justiça social.

Entretanto, verificamos no nosso país, mas podíamos estar a falar de outros países da Europa, de uma evolução em termos da rearrumação de forças como o Chega e a Iniciativa Liberal, que são meros sucedâneos do PSD e do CDS que procuram explorar as dificuldades, as contradições e os erros do atual governo que, naturalmente, não é difícil. O PS tem dificuldade em assumir uma política que responda aos problemas nacionais. Portanto, essas forças capitalizam o natural descontentamento que existe no plano económico, no plano social, para causas profundamente reacionárias, de forma proclamatória, procurando que o discurso verbal violento atraia pessoas descontentes fazendo ressurgir novamente problemas em relação a povos, a países, a comunidades existentes no nosso país, explorando o que de pior tem o ser humano. E a melhor forma de combater estas forças é responder às necessidades objetivas dos trabalhadores e do povo, se não se responde, naturalmente alguém capitaliza, e quem capitaliza fundamentalmente são essas forças reacionárias, que ainda por cima estão engajadas nesse processo de rearrumação.

Que papel podem ter os comunistas nessa luta?

Primeiro, é continuar a lutar, a intervir e a propôr para que os problemas sejam resolvidos, esse é o chão mais seguro, que pode impedir esse crescimento, depois também é evidente que é preciso que os democratas e os patriotas se sintam preocupados e procurem dar uma resposta desmascarando o que são essas forças. Como digo, a direita sempre andou por aí.

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