Entrevista

Comércio

“PS juntou-se à direita e os trabalhadores têm de dar resposta”

Em 2019, havia cerca de 800 mil trabalhadores no setor do comércio, marcado pela precariedade e pelos baixos salários. Com 34 anos, Filipa Costa é presidente da Direção Nacional do Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal (CESP), organização sindical em que está desde 2012. Defende que a luta tem um papel decisivo nas condições de quem trabalha.

Estamos num período habitualmente intenso no setor do comércio que se vai prolongar até ao Natal. Qual é o retrato geral destas mulheres e homens que nos vendem os presentes que vamos oferecer?

Cada vez mais cedo, começam as promoções dos brinquedos para apelar à compra dos presentes de natal. E cada vez mais cedo os trabalhadores são confrontados com horários completamente desregulados. Estamos a falar de um setor que pratica baixos salários, apesar dos lucros que todos os anos têm vindo a aumentar por parte destas cadeias de supermercado. Mesmo na altura da pandemia, o que se vê neste setor é um crescimento das vendas e dos lucros. Portanto, estamos a falar de um setor de baixos salários, salário mínimo nacional ou pouco acima, trabalhadores com 15 a 20 anos de carreira que não têm qualquer tipo de valorização. Depende de empresa para empresa mas estamos a falar de salários a rondar os 700 e tal euros, não foge muito do salário mínimo. Para ter uma ideia, em 2005, um trabalhador em topo de carreira ganhava mais de 100 euros acima do salário mínimo e a realidade é que, hoje, ganham mais 15 ou 20 euros. Portanto, ao longo destes anos houve mesmo uma grande desvalorização das carreiras, das profissões, da experiência…

Na maioria das vezes, são mulheres que estão do outro lado. Que tipo de obstáculos afetam o acesso destas trabalhadoras a uma maternidade digna?

É muita pressão. O trabalhador passa muito rapidamente de bestial a besta. Enquanto diz que sim, e que faz, e que pode, muito bem. Com esta situação da epidemia, tentou-se dar a ideia de que passou a ser normal ligar-nos depois do horário de trabalho, mandar mensagens, alterar o horário de um dia para o outro… Isto não é normal, nem nunca vai ser normal, porque estamos a falar de um direito do trabalhador, o trabalhador tem um contrato com aquela empresa para aquele período, fora daquele período o tempo é dele, não tem que estar a prestar contas ou a atender chamadas do patrão ou da chefia.

Mas somos um setor de mulheres e a pressão inicia a partir do momento em que decides ser mãe. A partir do momento em que decides ser mãe começa o problema porque tens uma licença – e ainda bem, é um direito nosso –, e a partir do momento em que tens o período de amamentação e de aleitação, a partir do momento em que tens de ir a consultas ao médico com a criança…aí começa essa pressão. Cada vez mais temos trabalhadoras a fazer o pedido às empresas do horário flexível para conciliar com a vida familiar. Porque têm conhecimento, porque sabem que é um direito. Ainda estamos muito longe de que esse direito seja exercido porque não é só um direito da mãe, é um direito essencial da criança, a criança não pode ser abandonada, eu não posso dizer “tenho de ir buscar o meu filho, [mas] não, vai lá o vizinho”. Isto não pode acontecer mas muitas mães são submetidas a isto porque há mesmo muita pressão no local de trabalho e a resposta é “a porta é ali, se estás mal vai-te embora”. E, claro, nós precisamos de pagar contas, precisamos de pôr comida na mesa, precisamos de trabalhar, e acabam por agarrar nessas fragilidades.

Por intervenção do CESP, o Pingo Doce foi obrigado a organizar um horário flexível que favoreça a conciliação da atividade profissional com a vida familiar e pessoal. As lutas e greves no setor do comércio têm surtido efeito?

A luta tem um papel decisivo e fundamental para que os direitos sejam cumpridos. Direitos, reivindicações, pode nem ser um direito consagrado, não interessa, a luta é aquela que decide e é fundamental para as reivindicações dos trabalhadores e temos vários exemplos. No setor da grande distribuição, estamos a falar de empresas com muito dinheiro que acabam por ter muito poder no nosso país e os trabalhadores e o sindicato, ao longo destes anos, têm travado lutas muito grandes. Há uma verdade concreta, todos os anos, numa boa parte das empresas, tem havido aumentos salariais, em que as empresas dizem ‘vamos aumentar’ como se fosse por mérito deles decidir aumentar salários. Não, é assim porque há pressão de base, há reivindicação, todos os anos apresentamos cadernos reivindicativos em que temos uma série de reclamações e reivindicações dos trabalhadores. Claro que esta pressão quando passa para o lado do patrão, no momento em que decide que é preciso fazer alguma coisa, não diz ‘foi por intervenção do sindicato’ nem ‘dos trabalhadores’, como é óbvio.

Temos também vários exemplos de combate à precariedade dos vínculos laborais em que foi através da intervenção do sindicato e da luta dos trabalhadores que conseguimos passar trabalhadores a contrato efetivo. Portanto, a resposta é esta. Precisamos de mais intervenção, precisamos de mais organização nos locais de trabalho, precisamos que os trabalhadores tenham confiança que estão do lado certo, que as reivindicações deles são justas e que os patrões só têm que corresponder a essas reivindicações.

Os dados divulgados pelo IEFP revelam que as atividades administrativas e serviços de apoio, o comércio a grosso e a retalho são alguns dos setores onde a oferta de emprego mais cresceu. Porquê?

Há falta de trabalhadores porque não é atrativo, não é? Imagine agora em pleno novembro ou dezembro, uma correria, em que se tem de dar resposta a tudo, se for preciso em várias secções, para ganhar o salário mínimo com horários que não permitem, muitas vezes, a conciliação.

O trabalhador entra sempre numa posição mais frágil, sem capacidade negocial, porque precisa de trabalhar e, muitas vezes, nos contratos individuais de trabalho, a questão do banco de horas já lá está. O trabalhador é submetido a isso, o trabalhador precisa de trabalhar, de pagar as contas.

Há poucas semanas, representantes de associações patronais dos setores do turismo e da agricultura vieram mesmo falar da contratação de imigrantes para suprir esta alegada falta de mão de obra. Esta é a solução?

Eu vou dar um exemplo em concreto. No armazém da Sonae, na Azambuja, há muita precariedade, com várias empresas de trabalho temporário ali metidas, tudo para a Sonae se poder desresponsabilizar dos trabalhadores. Há muitos que são indianos e paquistaneses. E claro que quem vem de um país com outras condições, às vezes até de uma situação de guerra, vir trabalhar para aqui será melhor. E o exemplo em concreto da logística da Sonae é este, é a tentativa de virar trabalhadores uns contra os outros. As empilhadoras que transportam as paletes – as melhores, porque a empresa parece que não tem dinheiro, então tem máquinas que estão em piores condições que outras – e o que é que acaba por acontecer? Trabalhadores que entram uma hora mais cedo para terem as melhores máquinas para trabalharem e para produzirem mais. “Vocês vêm de uma má condição, então isto já é muito bom” e tentam virar os trabalhadores uns contra os outros. Fazemos propaganda em inglês específica para contactar aqueles trabalhadores, para os informar dos direitos em Portugal e que esses direitos têm de ser aplicados, sejam de que país forem, não interessa, trabalham em Portugal têm de ser regidos pela lei portuguesa e pelos direitos que cá estão consagrados. Também da importância de lutarem, temos mesmo que unir e, em termos sindicais, temos que fazer também um trabalho de conseguir integrar estes trabalhadores na luta. Claro que a resposta do patrão é explorar mais, ‘eles vêm de uma situação de grande fragilidade, então vamos aproveitar para explorá-los ainda mais’.

A Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP) considerou inoportunas as diversas iniciativas de alteração à lei laboral que estavam em discussão no parlamento por iniciativa de vários partidos. Ana Vieira afirmou que a serem aprovadas significaria um retrocesso de avanços do período da troika. Que consequências tem esta legislação para os trabalhadores do comércio e serviços?

Não havendo impacto nenhum financeiro, porque é que o PS decidiu tomar esta decisão contrária relativamente à caducidade? Em relação ao trabalho suplementar e ao descanso compensatório, claro que os patrões não iam gostar porque quanto mais se reduzir e mais se mexer nos descansos, mais lucros vão ter. Precisariam de mais trabalhadores porque um trabalhador faz o trabalho de dois ou três que é o que está a acontecer. Os trabalhadores da grande distribuição têm um contrato coletivo de trabalho que tem o pagamento do trabalho suplementar e que foge àquilo que, neste momento, está na lei. Mas no processo de negociação de há dois anos com a Associação Patronal das Empresas de Distribuição esse era o ponto que queriam tocar. Diziam-nos ‘muito bem, vamos negociar, mas temos de introduzir no contrato coletivo o banco de horas e a redução do valor do trabalho suplementar’. Os milhões que têm de lucro não são suficientes para estes gananciosos, precisam de mais, e para isso precisam de agravar as condições de trabalho. O que é que esta alteração na lei iria permitir? Mais força e confiança porque ainda temos muitos trabalhadores que estão abrangidos pelo código do trabalho. Iam ter mais rendimento e viam o seu trabalho mais valorizado.

Entretanto, o PS juntou-se à direita para chumbar as propostas do PCP contra a precariedade, apesar de ter anunciado há meses que as ia aprovar. Que significado tem isto do ponto de vista político?

Sim, voltaram atrás. Acho que deixa bem claro, para quem ainda tinha dúvidas, da posição do PS relativamente à defesa e direitos dos trabalhadores. Se alguém ainda tivesse dúvidas, e não quisesse fazer um historial do passado dos momentos-chave relativamente à contratação coletiva, em relação aos direitos dos trabalhadores e às alterações que houve no código do trabalho, vai ver que o PS não está do lado dos trabalhadores nem pouco mais ou menos. E esta postura do PS só deve afirmar junto dos trabalhadores – e vamos ter eleições em janeiro – e nós, como sindicato, temos um papel de esclarecimento junto dos trabalhadores para dizer que devem votar naqueles que defendem os interesses deles, não devem votar no mesmo que vota o patrão. Que é algo que me faz alguma confusão. O PS, naquilo que é decisivo no mundo do trabalho, alia-se sempre à direita e os trabalhadores têm de dar uma resposta a isso.

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