Estamos a viver tempos de grande imprevisibilidade, tanto política como económica. Acha que esta guerra antecipa a decadência económica dos EUA e da UE ou isto é simplesmente um mito?
Não diria que antecipa, eu acho que ela sinaliza uma tensão muito grande nos equilíbrios internacionais porque passámos de uma situação de um mundo bipolar para um mundo unipolar que parecia ter uma superpotência absolutamente dominante e, neste momento, estamos a terminar o ano de 2022 com a China a afirmar-se como uma economia muitíssimo robusta. A China já é o principal exportador mundial, já está a caminhar rapidamente para igualar os EUA no que respeita a níveis de rendimentos médios da população, em termos de poder de compra. No final de 2022 a China já vai ter mais exportações – não em termos gerais porque isso já tem mais exportações do que os EUA e a Alemanha juntos há já muito tempo – mas, no final deste ano, a China, pela primeira vez, já vai ter mais exportações em bens de alta tecnologia do que os EUA. E isto significa que a ideia de um poder dominante dos EUA como superpotência destacada e única está, claramente, a ser posta em causa, já o vem sendo há muitos anos mas, neste momento, torna-se muito claro que essa realidade está em transformação rápida.
Há cerca de um ano, afirmou numa entrevista ao Público que a situação que se vivia no país poderia dar azo a convulsões políticas e que havia um limite para aquilo que as populações eram capazes de suportar. Hoje, a situação está pior. Que leitura faz do momento atual?
Acho que os riscos são muito óbvios. Os últimos dados que saíram sobre a evolução económica mostram-nos que, por um lado, a evolução dos salários reais é francamente negativa, os salários nominais estão a crescer cerca de 4%, o que significa que em 2022, em média, os trabalhadores portugueses vão perder 5% do seu poder de compra. Um segundo dado que torna isto ainda mais preocupante é percebermos que a inflação não está, de facto, a afetar todas as pessoas de igual forma. O aumento dos preços nos bens essenciais, nos bens alimentares não processados, é, segundo os números mais recentes, de 18%. E isto são aqueles bens que ninguém pode deixar de consumir, significa que nós estamos a ficar com segmentos muito importantes da população que estão a enfrentar dificuldades reais. Não é simplesmente compararem-se com os outros e acharem que estão menos bem, é as pessoas passarem dificuldades sérias, crescentes. O governo tem feito uma política que, do ponto de vista simbólico, procura transmitir a ideia de que “não estamos a fazer muito mas estamos a fazer o que é importante para não deixarmos os mais vulneráveis para trás”, isso fez-se quer na política social, quer na política de salário mínimo. Apesar da crise, houve uma preocupação em garantir que o salário mínimo continuasse a aumentar a um ritmo bastante mais acelerado que a média dos salários. A verdade é que isto não é suficiente para fazer face à situação que nós estamos a viver e, portanto, é muito difícil numa situação destas, ainda para mais quando ela surge na sequência de uma pandemia, que isto não dê azo a níveis crescentes de insatisfação.
Apesar dessa evolução salarial, ainda assim, a maioria sindicatos exigiu aumentos mais consideráveis e houve quem defendesse que uma subida geral dos salários podia levar a uma espiral inflacionista. Isto é mesmo assim?
É bastante absurdo falar em espiral inflacionista. A espiral inflacionista é uma coisa que existe e que está estudada, e que consiste numa situação em que a tentativa de manter o poder de compra dos salários face a aumentos generalizados de preços, ou seja, face a certos níveis de inflação, faz com que se perpetue a inflação. Se eu perspetivo que venha a haver um aumento de preços de 10% e aumento todos os salários em 10% significa que, de certeza, ou com grande probabilidade, vai mesmo haver um aumento de 10% na inflação e isso significa que, em termos do poder de compra dos trabalhadores, fica na mesma, não se ganhou nada com isso. Agora, isto é mais verdade em certas situações do que noutras. É mais verdade, nomeadamente, quando as economias estão num momento de grande crescimento económico, em que qualquer aumento do poder de compra se reflete no aumento da procura, e o aumento da procura se reflete no aumento dos preços, decorrente desse aumento de procura. E tende a acontecer, também, numa situação em que o grosso do processo de inflação decorre do poder de compra das populações e não de outros fatores. Ora, o que nós estamos a assistir é a um aumento da inflação que é muito superior ao aumento dos salários, o que significa que aumentos superiores dos salários ao que estamos a assistir seriam, ainda assim, insuficientes para cobrir a inflação e, portanto, dificilmente seriam eles próprios motivos para que houvesse o tal impacto sobre o aumento dos preços. Mas, acima de tudo, em que a dinâmica fundamental que está por detrás do aumento dos preços não tem a ver com a dinâmica de procura das economias, tem a ver com o aumento dos preços energéticos e em parte também dos preços dos bens alimentares, portanto, não há motivo para, no contexto português, esperarmos que haja mais inflação agora de repente porque os salários são aumentados a níveis superiores àqueles que estão a ser atualmente.
E o que se poderia fazer de diferente para evitar que os salários caiam?
Há muitas coisas que se podem fazer, algumas que têm mais impacto do que outras, algumas são mais difíceis de implementar do que outras. Ao contrário do que neste momento se tornou numa espécie de consenso na bolha mediática, eu não vejo que possamos pura e simplesmente excluir o controlo de preços sobre determinado tipo de bens e serviços. O controlo de preços faz muito sentido numa economia planificada, faz muito pouco sentido quando nós esperamos que sejam os mecanismos de preços a determinarem a afetação dos recursos. E, portanto, estarmos a pôr controlos de preços generalizados é retirarmos ao sistema de preços essa capacidade que tem de ir orientando a alocação de recursos. Agora, isso não significa que qualquer controlo de preços seja sempre um erro, muito menos quando se vive em situações extraordinárias e quando não é por haver controlo de preços que vai haver grandes alterações nas decisões de produção. A generalidade do setor da energia é uma área onde o controlo de preços é efetivamente justificado. Depois há controlos de preços que têm a ver com a racionalidade global da economia, nomeadamente, seria um disparate, neste momento, nós deixarmos os preços dos transportes públicos aumentarem por pressão daquilo que são os custos energéticos que as empresas de transportes públicos têm.
Agora, também na política de rendimentos me parece que aquilo que se está a fazer em Portugal não faz sentido do ponto de vista económico. Isto é, nós estamos a fazer uma pressão brutal sobre os salários através de uma política de rendimentos que está a conduzir à estagnação salarial de forma muito generalizada. É, neste momento, muito maior no setor público do que no setor privado, portanto, no setor privado, em alguns segmentos, está a haver capacidade de negociação dos trabalhadores porque há escassez, em alguns segmentos específicos, de determinado tipo de mão-de-obra que permite que haja uma evolução salarial mais positiva do que no setor público. Só que o Estado, ao fixar aumentos salariais tão baixos para a generalidade do setor público, está a sinalizar, também, o tipo de aumentos salariais e padrões de negociação que há no setor privado. E, portanto, seria necessário que se tomassem medidas para melhorar a capacidade negocial dos trabalhadores no mercado de trabalho e isso passaria, nomeadamente, por ter uma política salarial, no setor público, de maior preservação do poder de compra mas também de ter medidas de verdadeiro reforço do processo de contratação coletiva que, neste momento, está pelas ruas da amargura.
Acha que há subidas de preços que não se justificam?
Parece-me mais ou menos evidente. Num momento como este é quase inevitável que haja oportunismo e abuso de poder de mercado. A justificação, às vezes, até parece ser uma justificação muito lógica que é dizer assim “bom, é verdade que estes produtos que eu tenho aqui em armazém, que agora estou a vender, quando os comprei custaram-me menos 30% do que o preço que eu estou a pedir por eles agora mas, se os tiver de comprar, eles vão-me custar mais 30% do que custavam então, e, portanto, eu tenho de praticar estes preços mais altos como forma de preservar o meu poder de compra”. Mas a verdade é que isso é, muitas vezes, extremamente especulativo, quer dizer, muitas vezes não há motivo para pensar que, daqui a um ano, vamos estar a pagar os mesmos preços. Portanto, por esta via nós estamos, efetivamente, a assistir a um alargamento das margens, de resto as estatísticas dão conta disso, que está a haver um alargamento substancial das margens e, em muitos setores, aumentos de preços que vão para lá daquilo que é estritamente necessário para compensar os aumentos dos custos.
Apesar da suspensão da regra do défice desde a pandemia, o governo continua a usá-la como bitola. Que consequências tem esta opção continuada na atual situação económica do país?
Da forma como eu percebo, a obsessão do governo neste momento não é com o défice, é com a dívida pública. Houve alguém que meteu na cabeça do primeiro-ministro, e entretanto do novo ministro das finanças também, de que Portugal estaria numa situação radicalmente diferente caso o rácio da dívida pública – ou seja, o valor da dívida pública a dividir pelo PIB – descesse abaixo dos valores que se observam para Espanha e para França. Existe assim uma teoria que é “bom, nós até agora fomos o terceiro país mais endividado, a seguir à Itália e à Grécia, se nós sairmos do campeonato da Itália e da Grécia e passarmos para o campeonato da França e de Espanha, e ficarmos ainda abaixo de França e de Espanha, Portugal vai sair dos radares dos especuladores internacionais e, quando houver uma nova crise financeira, Portugal vai estar muito mais protegido dessa crise financeira, portanto, aquilo que aconteceu há dez anos não vai voltar a repetir-se”. É um bocadinho estranha esta teoria, por uma razão muito simples. Quando olhamos para os países que, na última crise do euro de há dez anos, foram sujeitos a resgates, que encontraram uma situação de pré-incumprimento do pagamento das suas dívidas, a esmagadora maioria desses países tinham rácios de dívida pública muito inferiores à média europeia. Portanto, a Espanha, a Irlanda, o Chipre, Malta e outros países, todos eles tinham rácios de dívida pública muitíssimo inferiores àquilo que Portugal hoje tem e muitíssimo inferiores à média da UE. E isso não impediu que eles ficassem numa situação financeira extremamente instável, vulnerável. Porquê? Porque não é o rácio da dívida pública que determina a instabilidade, o que determina a instabilidade, no fundo, é a robustez do sistema financeiro e a robustez da estrutura da economia nacional. Portanto, de repente, toda a política orçamental vai no sentido de acelerar ao máximo a redução do rácio da dívida pública. Isto não seria um problema, a não ser pelo facto disto representar um enorme risco de recessão e representar perda de qualidade de vida da população porque quando nós estamos a querer acelerar muito a redução da dívida, o que nós estamos a fazer é a retirar muito dinheiro à economia sob a forma de ou impostos mais altos, ou impostos que poderiam descer e que não descem, ou apoios sociais que são inferiores àquilo que seria necessário. Os problemas de salários em Portugal também estão relacionados com isto, porquê? A forma mais fácil de poder em Portugal poupar, reduzir a despesa para acelerar a quebra do rácio de dívida é não aumentar muito os salários à função pública, portanto, o objetivo é esse, não tem nada a ver com a espiral inflacionista. Só que ao fazer isso, não só está a prejudicar brutalmente os funcionários públicos, alguns dos quais vão ter perdas de poder de compra de 6 ou 7%, mas está também, pelos motivos que eu já referi, a prejudicar a própria capacidade negocial dos trabalhadores do setor privado.
O que é que lhe parece esta opção do governo em apostar, por exemplo, nos nómadas digitais? Numa situação em que temos um setor da habitação liberalizado, não pode criar uma situação ainda mais dramática?
O governo teve uma posição muito contraditória. Por um lado, anunciou o fim dos vistos gold e a sua associação ao investimento imobiliário e, ao mesmo tempo, promove os nómadas digitais. Sejamos claros, nenhum deste tipo de atividades económicas traz grandes vantagens do ponto de vista do desenvolvimento das capacidades produtivas portuguesas. No caso dos vistos gold, trazem grande liquidez financeira para o setor imobiliário e, no caso dos nómadas digitais, poderia trazer eventualmente alguma sinalização para o mundo de que Portugal era um país onde este tipo de atividades, incentivos e conhecimento teriam muita saída. A verdade é que, do que sabemos até hoje, os nómadas digitais têm pouca ligação às economias onde estão a operar, onde vivem, deixam muito pouco do ponto de vista do conhecimento às economias onde operam, deixam relativamente pouco do ponto de vista de rendimentos. São pessoas que vivem aí, têm as suas despesas, mas não são pessoas que façam grandes investimentos na capacidade produtiva do país e têm esse efeito que referia, que é um efeito extremamente negativo na dinâmica da habitação. E, portanto, é difícil perceber que o governo insista em promover padrões de atividades económicas que têm um efeito marcadamente adverso nos preços da habitação, que se faça tão pouco para controlar essas dinâmicas especulativas desse setor da habitação, quando continuamos a assistir a uma saída em massa da população portuguesa dos centros das maiores cidades.
A secretária de Estado, quando falava dos nómadas digitais, dizia que Portugal era um país sexy. Que futuro pode ter um país que cada vez aposta mais em tudo menos em setores produtivos?
A acumulação de capacidades produtivas é, em qualquer circunstância, algo que demora muito tempo a ser feito. Ora, Portugal está numa situação que é delicada a todos estes níveis, isto é, nós partimos de níveis de capacidades produtivas muito frágeis, Portugal chegou muito atrasado à industrialização, industrializou-se num contexto de proteção do regime fascista a grandes grupos económicos que tinham muito pouca pressão para fazerem coisas verdadeiramente novas, tem um atraso enorme do ponto de vista da educação e, portanto, o ponto de partida é, à partida, frágil. Em segundo lugar, os instrumentos de política económica que foram utilizados por outros países foram relativamente bem sucedidos numa acumulação, não digo rapidíssima porque ela não existe mas, apesar de tudo, bastante veloz de capacidades produtivas. E podemos pensar em vários países do mundo, inclusive Inglaterra ou EUA, passando pelo Japão, Coreia do Sul, Taiwan e tantos outros… São países que utilizaram instrumentos de política económica que, neste momento, não estão, simplesmente, ao nosso alcance. Tinham moeda própria, controlavam taxas de juros, controlavam taxas de câmbio, controlavam as tabelas alfandegárias, as relações comerciais com outros países, controlavam o tipo de investimento direto estrangeiro que atraíam, apoiavam as empresas nacionais, recorriam muito a empresas públicas… E como se isto não bastasse, os poucos instrumentos, o pouco espaço de manobra que a política económica ainda permite para termos uma estratégia de desenvolvimento nacional, é sistematicamente posto em causa pelo facto de haver muito pouca clarividência e muito pouca persistência dos governos em relação ao desenvolvimento de capacidades produtivas, aquilo que referíamos há pouco, como a aposta no turismo, a aposta no imobiliário como estratégias de captação de capital, com impactos tremendos no desvio de recursos em relação ao setor produtivo revelam alta divisão estratégica sob o caminho que o país deve trilhar, portanto, as coisas assim ficam mais difíceis. Não quer dizer que fiquem paradas mas ficam mais difíceis.