Entrevista

Brasil

Frei Chico: “A democracia mais plena no Brasil foi nos governos de Lula e Dilma”

José Ferreira da Silva é conhecido como Frei Chico no Brasil, apesar de ser ateu. Um dos oito filhos de dois camponeses do interior rural de Pernambuco. Apesar de ter crescido num ambiente pobre, a consciência de classe só veio com o trabalho como operário metalúrgico em São Paulo, para onde migrou com a família aos sete anos. Ativista sindical, foi perseguido e torturado devido à resistência contra a ditadura. Frei Chico convenceu o irmão e companheiro de casa a juntar-se ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. O irmão é o ex-presidente Lula da Silva.

Porquê Frei Chico?

Com 22 anos, eu era meio gordinho e trabalhava de soldador. O soldador usa um avental de couro, capacete e máscara. Quando eu terminava um trabalho, de longe, você via só a carequinha, então o pessoal me apelidou de padre. Completando isso, eu era ativista sindical e militante político. A nossa atividade política era clandestina, a gente não tinha organização legal. Mas na vida sindical havia, no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, uma organização de esquerda chamada AP – Ação Popular Católica. A Ação Popular Católica era um braço da esquerda católica muito radical, na época. Uma vez fiz um discurso mais radical e o Dr. Maurício Soares, que era advogado do sindicato e depois virou prefeito de São Bernardo do Campo, me apelidou de Frei Chico. Naquele período, tínhamos os frades franciscanos brasileiros, especialmente aqui em São Paulo, onde foram presos bastantes.

Porque foram dos que mais apoiaram a resistência.

Sim, eles apoiaram bastante. Então, o meu apelido foi um pouco disso. Em 1975, eu já militava clandestinamente no Partido Comunista Brasileiro e fui preso. Numa ocasião, fui sequestrado [pela polícia]. Eu estava andando na rua, para ir na minha sogra buscar meu filho. Ia andando de chinelo e aí os caras me pegaram.

Quando chegou o meu julgamento, depois de um período em que fui solto, depois de oitenta e poucos dias preso, o juiz queria que eu continuasse preso porque reconheci a minha alcunha, Frei Chico, e eles achavam que Frei Chico era um pseudónimo. Isso contradizia todo o depoimento que estava no papel. Eles alegavam que como eu assumia o apelido Frei Chico então estava a assumir que era um pseudónimo. Eles achavam que eu estava mentindo. Aí o meu advogado, José Carlos Dias, que depois virou ministro da Justiça do governo de Fernando Henrique Cardoso, pediu ao juíz para me liberar. Fez um abaixo-assinado com as personalidades que me conheciam com aquela alcunha e assim ficou, Frei Chico. 

Um Frei Chico ateu.

É, um Frei Chico ateu, mas ficou o nome. O meu nome é José Ferreira da Silva.

Viveu uma infância muito pobre com a sua família. Isso influenciou, de alguma forma, a sua trajetória e a do Lula?

Eu tenho um ‘pouquinho’ de consciência de classe, mas aí já foi meio adulto, eu tinha vinte e poucos anos. A nossa infância era um fogão a lenha, um fogão em cima de tijolo, duas ou três panelas de ferro em que você cozinhava. Fora isso, você tinha uma mesa, imagina uma mesa feita de barranco e aí tinha uns bancos em que sentava do lado. Você tinha um armarinho que era uma coisinha assim meio [faz um gesto meio desengonçado]… Tinha [cama de] rede em que você dormia na sala. Eu lembro-me que o quarto da minha mãe tinha uma cama, um guarda-roupazinho simples e tal… Isso era o que nós tínhamos. Você imagina? Eu tenho um neto, de vez em quando ele perguntava “como é que você brincava?” Eu não tinha brincadeira, não existia isso. A gente não tinha noção do sapato, imagina… O Lula deu uma entrevista esta semana aqui num live e diz “eu vim comer pão…” Ele veio comer pão praticamente para São Paulo, com sete anos de idade… pão! Porque a nossa cultura é uma cultura indígena! A minha mãe, mesmo maravilhosa como ela era, não sabia fazer bolo direito. Ela fazia bolo de cuba que é de mandioca, fazia bijou, fazia tapioca… Agora, você tinha um milho, quando dava época do milho, você tinha o caju que é natural da terra. Imagina horta… Não existia isso. O mundo lá mudou muito, nos últimos 30 anos houve um avanço tremendo daquilo ali, com a luz elétrica, não é? Através da televisão o pessoal aprendeu para diabo, e está aprendendo ainda, tem muita coisa para ser feita.

Meu pai veio embora para outra mulher e aí a minha mãe ficou com seis filhos…Quando o Lula nasceu, o meu pai já não estava mais, o meu tio Sérgio, irmão da minha mãe, arrumou uma vaca emprestada, alguém tinha uma vaca e emprestou. Para dar o leite diário. Bom, foi uma infância muito triste. Viemos para São Paulo e depois Santos, e voltámos para São Paulo e aí, meu filho, ‘tamo vivo.

Como é que entram no sindicato?

Eu era operário metalúrgico e naqueles anos de 1960, com a guerra fria, Cuba em evidência, os comunistas eram muito fortes na região do Ipiranga e de São Paulo, lá onde eu morava. E aí eu conhecia alguns comunistas, tinha admiração por eles. Fui trabalhar numa fábrica metalúrgica, chamada Pontal, na vila carioca, no Ipiranga, e nessa fábrica tinha lá uns dois ou três comunistas e aí eu fui para o sindicato de São Paulo, aos 18 anos. Nesse processo a gente tentou levar o Lula para o partidão mas o Lula é um caso à parte, sempre teve o instinto de não querer nada ilegal. Consegui convencê-lo para o sindicato, mas não foi fácil. Primeiro porque ele namorava, segundo porque quem ia para o sindicato era perseguido. Para o convencer teve muita rodadinha de cachaça, através de um companheiro nosso, Paulo Afonso Monteiro da Cruz, e outros companheiros lá do sindicato. Então, ia haver eleições e eu não pude entrar porque na minha empresa já tínhamos o Paulo Vidal. O Afonso Monteiro da Cruz, que era uma figura maravilhosa, me convenceu a indicar alguém e aí eu falei “tem um cara na Villares, vamos ver se ele topa?” 

Era o Lula.

Sim, ele acabou entrando no sindicato. Nós [comunistas] estávamos muito perseguidos na época. Ele casou com a Lurdes já no sindicato, teve a primeira criança, só que a Lurdes e a criança morreram no parto. Aquilo foi um baque para ele. Foi depois disso que o Paulo Vidal, que era o presidente do sindicato, fez uma carta para a empresa e levou-o para dentro do sindicato. Ele era suplente da diretoria. 

Conheceu a ditadura e passou por este processo de transição democrática, como é que se justifica que Jair Bolsonaro se mantenha no poder ainda?

Ai…[risos], é o seguinte, eu tenho 78 anos, então eu já vivi bastante nesse país. Esse país é muito complexo, muito complicado. Você tem um povo maravilhoso, um povo simpático. Aparentemente não tem problema, a gente dá risadas com as nossas próprias misérias, a gente se diverte até, entende? Mas a nossa história é muito complexa. A democracia mais plena no Brasil foi nos governos de Lula e Dilma. No resto dos governos tinha mas não tinha. O Lula nunca penou pela lei de segurança nacional, o Lula nunca ameaçou prender jornalistas, ele e a Dilma nunca usaram leis de repressão contra alguém, pelo contrário. E eles governaram o país no chamado republicanismo, nós temos de obedecer às leis. Então eu acho que foi um dos motivos que a gente… Eu não vou dizer que é só isso mas, às vezes, deviam ter sido duros com o setor da imprensa. Você não pode ter uma imprensa, dentro da chamada lei democrática, destruindo pessoas e a gente sempre esbarrava no poder judiciário, ou então não ligava, achava que estava “tudo bem”. Não aperfeiçoámos o controlo da democracia, errámos aí. 

Quais são as forças que permitem que o Bolsonaro se mantenha no poder atualmente?

Eu não queria dizer que é essa elite podre que nós temos no Brasil. Nós temos uma elite podre, agora não a vamos culpar só. O Lula se elegeu Presidente da República. Eu mais três companheiros, um deles já falecido, estavamos tomando uma cachacinha no lado do sindicato de São Bernardo do Campo, dos metalúrgicos, e aí um deles levantou a seguinte questão: “Nós temos de criar grupos de apoio ao mandato do Lula. Lula vai ser derrubado, esses caras vão derrubá-lo, então nós temos que nos preparar”. Aquele papo ali, era papo de boteco mas era um papo sério, com a incumbência de falar com algumas personalidades do PT. Um outro falou o seguinte, “nesse momento interessa é governar, não interessa a gente ficar criando problema”. Moral da história: havia uma visão, nos setores do PT também, de que havia uma aliança para governar e que estava tudo bem. Nada ia ser rompido. Nós não fizemos nada disso, nós não preparámos nada e deixámos a coisa correr frouxa. Na política externa, o Brasil, no geral, começou a ter um apoio político independente, uma visão de Estado de fato. 

A elite brasileira não é patriota. Nós tínhamos respeitabilidade, não é? Hoje não. Então, com essa elite brasileira, junto com esses caras, com esses setores da mídia brasileira… Porque se existe uma mídia podre no mundo… E como você não podia fazer mais uma campanha anticomunismo… O nosso golpe de 1964 foi dado em cima dos comunistas, os comunistas comiam criancinhas, os comunistas não sei quê, havia guerra fria, havia Cuba a lutar pela independência. Nesse processo agora, não. O que é que eles fizeram? Foram para a judicialização para desmoralizar o poder político e transformar as pessoas em corruptos e ladrões. Fizeram isto em várias partes do mundo.

No Paraguai, na Argentina, no Equador…

Você trabalha, por exemplo, num setor lá da tua empresa, aí eu sou um cara conhecido, e chego lá e cochicho no ouvido que você roubou um negócio não sei aonde. Se o cara confia em mim, ele vai acreditar mais em mim do que em você, você está ferrado a partir daí. Você fica como ladrão, não tem como se defender. O nosso caso foi muito mais sério do que isso. Quando parte do poder judiciário apresenta uma acusação, o que é que o povo entende? A justiça é que falou, então existe uma prova concreta e é duro você desmanchar isso, viu? É duro e, até hoje, eles conseguiram com isso derrubar Dilma, desmoralizar o Lula… O Lula ainda teve a coragem de fazer um enfrentamento. Como ele nunca tinha roubado nada, ele não roubou nada, apesar de que algumas pessoas ainda achem que roubou…

Sim, há pessoas que ainda acham que roubou, independentemente das condenações estarem a cair.

Foi Presidente da República e não levou nada de ninguém. “Tem de levar” porque é a prática, é a cultura de quem está no poder, tirar proveito.

Como é que de repente o Frei Chico vê o seu nome associado à Lava Jato e às propinas da Odebrecht? Como é que viveu isso?

A Lava Jato foi criada para destruir as principais empresas que o Brasil tinha, destruir porque interessava aos concorrentes destruir. Destruir a energia elétrica, destruir o poder político, destruir o Lula, que era uma personalidade que dava uma certa credibilidade ao poder político ligado ao operário, ao pobre. Eles fizeram isso de uma maneira tão cretina e tão estúpida que o prejuízo é incalculável e vamos sofrer muito para recuperar isso. 

O Lula, neste momento, está à frente nas sondagens, quase com 50% da intenção de voto. Acha que Lula vai ser presidente? Os militares vão deixar que ele assuma um poder que tanto lhes custou a conquistar?

Tem uma coisa que mudou um pouco. Por exemplo, esse golpe na América Latina é montado pelos americanos, pela elite dominante do planeta Terra. O mundo hoje é dominado pelo setor financeiro, não é? Mais o produtivo. Esse pessoal também não quer ditadura, não. Não interessa para eles. Eles querem ir para uma democracia onde eles possam influenciar. O Brasil não tem primeiro-ministro, o Brasil é o Presidente e o parlamento, normalmente com uma maioria conservadora. Normalmente não se consegue governar sem acordos. Você tem que fazer uma ponte com a oposição.

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