Entrevista

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“Eu não era capaz de viver outra vida que não fosse esta”

Marília Villaverde Cabral tem 79 anos e aderiu ainda adolescente ao PCP, em plena ditadura. Foi uma das fundadoras do Movimento Democrático de Mulheres, foi dirigente sindical e coordenadora da União de Resistentes Antifascistas Portugueses, organização de que faz parte. Este ano, será homenageada como sócia honorária d’A Voz do Operário no aniversário da instituição.

Como foi a sua infância? 

Nasci em Lisboa, ali no bairro do Arco do Cego, numa família que não tinha nada a ver com a política. O meu pai tinha uma pequena loja e era católico praticante. A minha mãe era doméstica. A minha infância foi a de uma filha única. Nunca tivemos grandes dificuldades porque o meu pai vivia para a loja. Mesmo durante a guerra. Apesar de ter os mimos todos de uma filha única, era muito tristonha porque não gostava do que via à minha volta. 

E era ainda muito jovem quando despertou para a atividade política.

Sim, fui para o Liceu Filipa de Lencastre e aí é que tive a sorte de encontrar várias meninas. Uma era a Helena Rato cujo pai era do partido [PCP] e chegou a ser ponto de apoio a camaradas clandestinos. Por isso, tinha de ter muito cuidado porque não podia levar lá ninguém a casa. Outra era a Maria Luísa Tito Morais. O pai não era do partido mas era um homem da oposição. Também a Isabel Galacho. E foram estas amizades que me trouxeram até aqui. A Helena Rato fez uma coisa muito bonita que foi emprestar-me o livro A Mãe, do Gorki, que é um grande recrutador para o partido, e eu, que era uma menina toda católica, ao ler aquilo fiquei maravilhada e percebi que também aqui em Portugal havia luta, havia gente que lutava e não se submetia. Devia ter uns 15 ou 16 anos. 

E quando é que decide que tem de fazer alguma coisa?

É muito engraçado porque o Arlindo Vicente tinha a sede de campanha numa vivenda ali no bairro. Já tinha lido A Mãe e um dia insisti com a Luísa Tito Morais, que estava um bocado envergonhada, para irmos lá ver no que é que aquilo dava. Subimos as escadas e ficámos lá as duas. Estava lá um rapaz e ficou assim muito espantado com aquelas duas miúdas ali. Nós explicámos que queríamos ver se podíamos ajudar e ele depois foi comentar com a irmã da Luísa – que na altura estudava na universidade de medicina – que tinham ido lá bater duas miúdas novitas e que não nos tinham dado nada porque podia ser perigoso. Mas o irmão da Luísa – que na altura era do partido – ficou a saber disto e deve ter informado que estavam ali duas miúdas interessadas em juntar-se à luta. Em pouco tempo começou a reunir connosco e a dar-nos coisas para ler, entre o Avante! e alguns livros. Estamos a falar de 1958 ou 1959 porque eu já estava no partido quando o Aboim [Inglez] foi preso e ele foi preso em 1959. Entrei depois da campanha do Humberto Delgado. 

Passaram a ser oficialmente do partido.

Na altura, não havia fichas de inscrição, por isso pode dizer-se que sim. Começámos logo por formar a comissão pró-associação dos liceus, que não havia. Chamávamos os jovens que conhecíamos na altura e começamos a reunir de uma forma unitária. Chegámos a ter muitos jovens envolvidos. Fazíamos bailes para arranjar dinheiro, fizemos sessões de cinema, chegamos a alugar uma sede num compartimento de uma garagem grande ali para os lados do bairro de São Miguel. Nessa altura, comecei a namorar com o João Tito Morais e ele, para não ir para a guerra, fugiu para a Alemanha e depois foi ter com o pai dele ao Brasil. Então, a minha ideia era ir para Londres estudar umas coisas, arranjar trabalho no Brasil e ir ter com ele.

Mas o apelo da luta foi mais forte.

Na altura, eu já reunia com o José Bernardino, que foi o meu responsável em 59/60. Ainda antes, tinha reunido com o Armando Myre Dores, que andava em semiclandestinidade. Mas quando fui para Londres, quando se despediu de mim, o Bernardino disse-me: “nunca traias”. Foi uma frase que nunca mais esqueci. Ele não estava lá muito de acordo que eu fosse para o Brasil, mas eu tinha aquela paixão. Entretanto, fui para Londres aprender inglês. Só que em Portugal começa toda a movimentação a propósito do barco Santa Maria, do avião e por aí fora. Começam a prender muitos estudantes, entre eles jovens do partido. Naquelas circunstâncias, eu não consegui ir para o Brasil. Decidi voltar a Portugal porque a luta me chamava. Tive amigos que me disseram para não regressar porque nos interrogatórios perguntavam pelo meu nome, mas eu cheguei, tive algumas provocações da PIDE mas não me prenderam. Não sei se me estavam a seguir porque faziam muito isto de não prender pensando que a pessoa podia levar a outros.

Mais tarde foi levada durante a repressão contra os estudantes na Cidade Universitária, naquela que foi considerada uma das maiores operações policiais do fascismo.

Eu juntei-me à luta estudantil e depois acabei por ser presa com os 1500 na Cidade Universitária em 1962. Uns dias antes, no 1º de Maio, andámos a fugir à polícia. Foi um período muito movimentado. As pessoas começaram a juntar-se porque corria o boato de que os jovens fascistas iam atacar os estudantes que estavam a fazer a greve da fome. Nós começámos a juntar-nos para defendê-los. Éramos 1500 na Cantina Velha. Só que em vez de aparecerem os jovens, apareceu a polícia. O [Jorge] Sampaio, que na altura era o secretário da RIA – Direção Nacional de Associações – disse-nos: “Ninguém sai daqui sem nos irem buscar mesa a mesa”. Aquilo demorou… Eles chegaram à hora de jantar e saímos de lá de madrugada. As raparigas foram todas para o Governo Civil e nem havia espaço para tanta gente. Os rapazes foram distribuídos por vários outros sítios e nessa ocasião não nos interrogaram porque era tanta gente que eles já não tinham sequer papel para tirar as fotografias para o cadastro. Sei que só voltámos a sair na outra madrugada e que também aí fizeram uma provocação. Eles sabiam que o meu pai – o meu pai não era fascista, sei lá o que ele era na altura – era membro da União Nacional. Tinha sido um irmão dele a aconselhá-lo para não ter problemas com os fiscais. O PIDE chegou à cela e chamou-me pelo meu nome e eu achei que ia ficar lá. Levou-me por uma escada e disse-me ao ouvido: “o seu paizinho isto e aquilo”. 

Depois, envolve-se na atividade sindical.

Antes da atividade sindical, participei na fundação do Movimento Democrático de Mulheres. Foi no meu trabalho na Caixa de Previdência que comecei a atividade sindical. A direção do sindicato era fascista e depois tinha várias comissões consoante as áreas de trabalho: tínhamos os químicos, a construção, a previdência. E nós fizemos um trabalho muito bom mesmo com uma direção fascista. 

Ainda assim tinham de fazer reuniões clandestinas no âmbito do trabalho do partido, certo?

Sim, nem sabíamos bem onde é que era mas havia ali uma apartamento todo giro no Estoril ou em Cascais. Mas tenho a ideia de haver um apartamento de uma irmã de um dos meus controleiros. Nas nossas reuniões tínhamos sempre o ponto um, que era o minuto conspirativo que servia para combinarmos o que diríamos à PIDE se eles entrassem naquele momento. Se fosse uma reunião sem camaradas na clandestinidade podiamos sempre explicar que estávamos a comemorar não sei o quê, mas com camaradas clandestinos nenhuma reunião começava sem o minuto conspirativo. Se tocasse a campainha já tínhamos combinado todos o que é que havíamos de dizer. 

E com a chegada do 25 de Abril?

Olha, lembro-me que fui para Caxias esperar a saída dos presos. Foi um momento incrível. Tenho a imagem na cabeça da Marinha a entrar pelo cais e nós aos gritos. Depois, os nossos camaradas a dizerem que não saía ninguém enquanto não saíssem todos. Foi de uma coragem… Depois houve tiros, negociações e tive de me vir embora para ir à sede do sindicato pedir a chave aos fascistas. E eu acho graça porque na altura eles diziam que nós tínhamos tomado conta do sindicato, que tínhamos assaltado o sindicato e não foi nada assim. Eu cheguei lá, eles estavam lá todos encolhidos de medo, pedi a chave e deram-me. Simples. Não foi nada heróico. Os fascistas ainda foram protestar e dizer que lhes tínhamos tirado o sindicato. Depois, tivemos um confronto na Cova da Moura [antiga sede do Estado-Maior General das Forças Armadas, em Lisboa]. Éramos nós a explicar aos militares quem eles eram… e depois decidimos fazer eleições e ganhámos. A votação foi muito bonita. Mas durei pouco tempo no sindicato porque passei a funcionária do partido.

Lembro-me da chegada do Álvaro [Cunhal] a Lisboa. Morreu um camarada de ataque de coração e eu estava a ver que morria também e não foi tanto por causa do Álvaro. Estava lá à espera [no aeroporto] e aquilo era uma multidão. De repente, vejo chegar uma manifestação do Barreiro com um pano com uma foice e um martelo E aquilo foi uma coisa…

Como foram os primeiros meses como funcionária em pleno processo revolucionário?

Em agosto, tornei-me funcionária do partido. E não foi uma decisão fácil… porque na altura eu tinha um salário relativamente bom – porque eu entretanto fui para a Associação de Planeamento Familiar, quando saí do sindicato – e passámos a viver com menos dinheiro. Só que o Alberto [Villaverde Cabral] foi convidado para a ANI, que transformaram na ANOP, Agência Noticiosa Portuguesa, e eu passei a trabalhar para o partido sem salário. Passei a ser funcionária sem salário durante uns tempos porque não precisava e era uma ajuda para o partido.

E quais é que foram as suas responsabilidades no PCP?

Passei a acompanhar os trabalhadores da função pública. Tive reuniões com técnicos que ajudaram, depois na empresa, a criar a própria EDP. Aquilo foi de tal maneira que um dia estava a falar com um camarada e comecei a ver tudo a andar a roda, e depois foram levar-me a casa porque o cansaço era tão grande. Cada um que vinha queria explicar-me como é que a empresa funcionava. Era muito giro, eu queria apanhar tudo. Eram operários que sabiam bem como é que aquilo funcionava e era impressionante, queríamos absorver tudo. 

Aquilo foi épico. Não há palavras. Eu, por exemplo, fui agarrar a CRGE [Companhias Reunidas de Gás e Electricidade]. Havia um camarada que me dizia “aquilo é tudo reacionários, não se pode fazer lá nada” e depois havia um operário que era da Margem Sul. E eu, um certo dia, disse que aquilo não podia ser. “Então uma empresa com tantos eletricistas e não temos operários? Vamos ter uma reunião e pronto”. Marcámos uma data e apareceram tantos operários e pessoal de escritório que eu tive de pedir outra sala porque não cabiamos todos. Tudo homens e eu a fumar o meu cigarro, mas a pensar como é que eles iam ver aquilo porque ainda estávamos naquela altura… E então o que é que eles traziam? Mapas da empresa para ver como é que podíamos organizar o partido naquelas secções.

Mas quando eles chegam ali ainda não eram do partido?

Não, não. Foi de tal maneira, cresceu tanto aquela célula, que me chamaram da direção para saber o que é que tinha acontecido. Estava tão chateada por não termos operários que aquilo depois superou todas as expetativas. 

O que sente quando olha para trás?

Eu não olho muito para trás porque nós passamos pelas grandes conquistas, passamos pela defesa das conquistas e então foi sempre para a frente. Defender, defender, defender. Logo a seguir ao 25 de Novembro o partido fez um grande comício – que me dá um orgulho muito grande – no Campo Pequeno. E nada disto me dá nostalgia. Claro que fico fascinada com o que aconteceu até aqui mas habituei-me a que a luta se faz para frente e, como a luta esteve sempre presente na minha vida, não me dá para olhar para trás. Dá-me para olhar para a frente e achar que temos de fazer mais coisas. 

Consegue imaginar que um dia pudesse não ter escolhido este caminho?

Nada, não consigo ver-me fora do partido. O partido é a minha vida. Eu sem o partido… porque eu entrei para o partido com 15 ou 16 anos e era uma miúda que não tinha ideias nenhumas. Se viesse de uma família com ideias marcadas mas, pelo contrário, eu tive que lutar na minha família ao ponto de uma vez ficar com febre por não me deixarem sair para ir a uma reunião. Gritei tanto, chorei tanto que fiquei com febre. Não só lutei contra o fascismo como lutei contra a minha vida. E consegui. 

Olha para trás e sente que vale a pena?

Valeu e vale a pena. Eu não era capaz de viver outra vida que não fosse esta. Foi a coisa mais linda que me aconteceu, este meu querido partido. 

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