Entrevista

Agricultura

Vítor Rodrigues: “Agricultores tiveram perda de 11% nos seus rendimentos”

O setor agrícola sofre enormes pressões devido aos preços dos custos associados à produção e devido à força da grande distribuição. Apesar de os lucros do retalho ter disparado, os produtores viram uma redução nos seus rendimentos.

Qual é o peso dos pequenos e médios agricultores para o setor em Portugal?

A Confederação Nacional da Agricultura usa uma definição de pequenos e médios agricultores que são os de pequena dimensão económica e, ao mesmo tempo também, os de pequena dimensão fundiária e, ainda assim, estaremos a falar de cerca de 70% a 80% dos agricultores em Portugal. Portanto, com áreas de até aos 15 a 25 hectares. Este será o número que, de grosso modo, traduz a representatividade desse conjunto de agricultores. Claro que a CNA, apesar de não ter a maioria como nossos associados, chama a si a representação, do ponto de vista político, desses agricultores e desse tipo de agricultura, mais até daquilo que nós definimos como agricultura familiar, ou seja, aquela que utiliza sobretudo mão-de-obra da família do agricultor.

No fundo, corresponde também àquilo que é o tecido empresarial em Portugal, composto maioritariamente por pequenos e médios empresários. E que dependência temos do estrangeiro no setor agrícola?

Temos uma balança comercial no campo da agricultura e, portanto, dos alimentos bastante deficitária. Deficitária, sobretudo, por exemplo, em produções como os cereais, em que temos um grau de autoaprovisionamento baixíssimo, exceção feita para o milho porque sofreu um grande boom nos últimos anos à conta sobretudo, do regadio do Alqueva. Continuamos sem conseguir ser autossuficientes, por exemplo, na carne bovina, o que é um mistério. Temos todas as condições para o ser. Do ponto de vista de algumas hortícolas, a batata, que também tínhamos condições para ser autossuficientes ou, pelo menos, para termos um pouco mais de capacidade de autoaprovisionamento (e já tivemos), também é relativamente baixa. 

Claro que há alguns produtos em que nós, entretanto, nos tornámos excedentários. Portugal tem uma grande indústria vitivinícola. Com segmentos diferentes, alguns, de elevada qualidade, são, sobretudo, orientados para a exportação. Ainda não conheço quais serão as consequências das sanções à Rússia para este tipo de mercado de vinhos de qualidade porque era um mercado muito importante de destino desses vinhos. Passámos a ser excedentários em azeite muito à conta das culturas superintensivas do sul do país. E depois há alguns nichos de especialização intensiva que agora estão a proliferar como os amendoais, os abacateiros, também no Algarve, que depois colocam uma série de problemas, não apenas do ponto de vista da gestão dos recursos, mas inclusive sociais. Mas em geral temos um défice. Depois há aqui outro tipo de questões que se levantam. Por exemplo, nós, do ponto de vista da produção de leite, conseguimos manter um grau de aprovisionamento satisfatório, mas outro mistério é que continuamos sem conseguir produzir fermentados, ou seja, Portugal tem uma produção de iogurtes muito baixa (iogurtes e derivados lácteos), à exceção do queijo, claro. Mas, entretanto, fecharam muitos milhares e milhares de explorações leiteiras porque se foi apostando numa política de baixos preços pagos à produção que, portanto, empurraram para o encerramento uma boa parte das explorações que antes operavam neste setor.

E em que medida é que a guerra na Ucrânia teve impacto na agricultura em Portugal?

Sente-se, sobretudo, ao nível da especulação dos preços dos fatores de produção. Esta é a grande questão. Ou seja, do ponto de vista mediático discute-se a questão dos cereais, dos produtos em que a Ucrânia e a Rússia têm uma elevada capacidade produtiva e, entretanto, obviamente por causa da guerra, estes circuitos sofreram algumas disrupções, mas, no fundamental, aquilo que vimos foi um grande movimento especulativo que já se vinha, a verificar antes de fevereiro de 2022. Portanto, dizer que isso é uma consequência da guerra nem sequer é verdade. Eu lembro-me que, em dezembro de 2021, o gasóleo já estava a dois euros, ou perto disso. E, portanto, houve um movimento especulativo nos meses anteriores, que depois se ancora naquela história de que a pandemia rompeu e atrasou os circuitos de comercialização, como já havia um movimento muito forte de aumento dos preços, dos fertilizantes, dos fitofármacos, das sementes. Que a guerra agravou é um facto, mas foi, sobretudo, um movimento especulativo.

Falava na monocultura do azeite. Que impacto é que este tipo de produção tem?

Por exemplo, com as alterações que produz na paisagem, e isto também tem a ver com uma determinada conceção da paisagem que tinha um determinado marco temporal. O Alentejo que conhecemos hoje não tem nada a ver com o Alentejo que poderíamos ter conhecido aqui há umas décadas porque, em muitos sítios de sobrais e de uma determinada paisagem, aquilo que está instalado são monoculturas a perder de vista e isto significa um empobrecimento do ponto de vista cultural de biodiversidade. Depois, é claro que se coloca poderem vir a ter consequências nefastas para os solos. E de poderem esgotar os solos há quem até fale da questão das monoculturas beduínas, no sentido de que exploram até onde podem num determinado terreno, antes de se irem embora. Não muito diferente, por exemplo, da lógica a que assistimos em determinados tipos de indústria, quando se deslocalizaram para outros pontos do mundo. Podemos vir a assistir, a estes cenários de quando deixarem de dar o nível de lucro que os seus donos pretendem, estes podem simplesmente ir-se embora e deixam para trás apenas os escombros. Aliás, como em outras ocasiões já aconteceu no nosso país. Depois há consequências sociais bastante evidentes e que têm vindo a lume nos últimos anos por causa das condições de trabalho e de vida dos trabalhadores migrantes. A maneira como chegam cá, não só como são explorados cá, mas como são explorados neste circuito de ida e vinda dos seus países de origem, sujeitando-se a coisas que são de óbvia sobre-exploração. 

Nalguns casos de escravatura.

Sim, sim. Chega-se aí, claro, sempre com esta capa das empresas de trabalho temporário que desresponsabiliza quem emprega de facto. Isto é um outro problema do ponto de vista das consequências sociais com grande expressão em determinados territórios. Porque depois não há parques habitacionais, escolares, entre outros, para acolher estas pessoas. No caso do sudoeste alentejano isto é muito evidente. E depois há uma grande pressão sobre a terra. A maior parte dos proprietários deste tipo de explorações, de alguma forma, cruzam-se com o capital financeiro, e capital financeiro obviamente estrangeiro, o que significa que os lucros, uma boa parte deles, não ficam no nosso país. Isto introduz uma outra pressão sobre o preço da terra e, também, a transformação da terra num bem mais de natureza financeira do que propriamente de natureza produtiva que, por exemplo, tem como consequência o aumento desmesurado dos preços da terra, que também está associado à proliferação de usos não-agrícolas em terras agricultáveis, como agora se vê com essa “nova plantação” que são os painéis solares. 

Tem-se falado muito no aumento dos preços dos produtos agrícolas nas prateleiras dos supermercados. As empresas retalhistas diziam que não havia lucros extraordinários e que toda a cadeia estava a sofrer com o aumento de custos. Isto é assim?

Os preços dos fatores de produção aumentaram muito. Estamos a falar de aumentos que, nalguns casos, são de 200%. Por exemplo, nos fertilizantes, na alimentação animal e na energia. O movimento de subida de preço na produção não acompanhou, nem de perto nem de longe, o movimento de subida dos preços dos fatores de produção, embora se tenham verificados alguns aumentos. O que levou a que os agricultores tivessem uma perda de 11% do seu rendimento. E se o rendimento dos agricultores ficou a perder, os lucros da grande distribuição não. Mesmo reportando-nos apenas às operações a retalho, é possível, a partir dos relatórios financeiros, ver que houve aumento de lucros. 

O que é que o governo poderia ou deveria ter feito para evitar a especulação no retalho e a perda na parte da produção?

Podíamos ter agora, para responder a essa pergunta, uma abordagem mais sistémica ou uma abordagem mais de contingência face a esta situação, e se calhar vou começar por aqui. Eu acho que se devia, em primeiro lugar, ter agido com determinação ao nível dos preços dos fatores de produção, nomeadamente, por exemplo, na questão da energia com a fixação de preços. Provavelmente, se se tivesse arranjado também maneiras de concentrar a oferta, ou seja, do governo tomar em mãos assegurar o fornecimento de determinadas matérias-primas essenciais como os cereais, podia ter-se obtido preços mais baixos também para os produtores. 
Mesmo do ponto de vista dos preços ao consumidor, poderia e deveria ter havido intervenção em bens essenciais, bem para lá da questão do IVA zero. E isso, no nosso entender, era possível. O governo podia, e devia tê-lo feito, e optou por transferir a cobrança de impostos para os lucros da grande distribuição porque foi isto que acabou por fazer. 
Há uma coisa que nós vimos também reclamando, e que já está em vigor em Espanha, com muitos engulhos, é verdade, mas está, que é a lei da cadeia alimentar que proíbe a venda com prejuízos ao longo de todos os elos da cadeia, desde a produção ao consumo. Isto significa uma salvaguarda para os produtores. 
Os agricultores estão entalados entre dois setores com um grande poder. Um é o da grande distribuição que esmaga os preços e o outro é o dos seus fornecedores e produtores de fatores de produção, nomeadamente, energia, combustíveis, fertilizantes, fitofármacos, sementes, etc.

Artigos Relacionados