Entrevista

HELOÍSA APOLÓNIA

Heloísa Apolónia:“Ao nível da ecologia não concebemos um movimento que não seja à esquerda”

A temática ambiental, resultante dos enormes desequilíbrios a que o mundo tem sido submetido nas últimas décadas, tem mobilizado crescentemente a população, incorporando abordagens multifacetadas e novos protagonistas. No entanto, tal adesão não parece acompanhar uma clarificação ao nível dos conceitos e enquadramento político das propostas emergentes. Quisemos falar com Heloísa Apolónia, deputada na Assembleia da República há mais de vinte anos pelos Verdes — primeiro partido ecologista nacional — no sentido de percebermos os anseios e esperanças do movimento ecologista e quais as principais batalhas do partido no contexto nacional.

Heloísa Apolónia PEV

Qual é a identidade ideológica do PEV? Parece diferir muito de outros movimentos ambientalistas.

A base ideológica dos Verdes é a ecologia política. Os ecologistas marcam muito os seus pilares de desenvolvimento da sociedade em três áreas fundamentais: ambiental, social e económica. E é da agregação destes três pilares que devem resultar políticas positivas para a promoção da qualidade de vida das populações, para a promoção do desenvolvimento sustentável e da sustentabilidade do nosso território. Um exemplo: para
nós, ecologistas, é incompreensível que o setor da água esteja em mãos privadas, que a sua gestão seja feita de acordo com a lógica do lucro. Já tenho ouvido alguns ambientalistas referir que a única coisa que importa garantir são parâmetros de qualidade da água e que tanto faz ela estar em mãos públicas ou privadas.

Tem havido uma crescente notoriedade das questões ligadas ao ambiente e um crescimento de movimentos e partidos cujo programa é maioritariamente dedicado a estes temas. Mas o PEV não parece conseguir capitalizar esta situação.

Estamos em crer que as pessoas se estão a dar conta, no
concreto, dos efeitos da inação de sucessivos governos, não só a nível nacional, mas a nível internacional. Os Verdes intervêm há muitos anos sobre estas matérias e somos muito consequentes e muito coerentes. Agora, é verdade que temos um problema sério com o qual nos confrontamos, que é uma brutal discriminação por parte da comunicação social. Não há dúvida de que isso acontece mas não acontece com outros projetos. Facilita-se imenso a passagem da sua mensagem e isto cria uma desproporcionalidade e uma desigualdade na forma como as nossas propostas chegam às populações.

Ainda sobre estes novos movimentos ambientalistas, é comum procurarem desligar-se de uma categorização política clássica de esquerda e direita, defendem a construção da proposta política muito subordinada a uma ideia de imparcialidade, tecnocrática. O PEV revê-se nesta ideia?

Os partidos políticos são determinantes para a democracia. Mas é importante que cada partido seja caraterizado como aquilo que efetivamente é. Há aqueles que não se definindo ideologicamente, nunca deixam que os cidadãos saibam com o que podem contar: caem umas vezes para a direita, outras para a esquerda, outras nem sabem bem para onde é que hão-de cair, conforme as marés da opinião pública, dos comentadores políticos. Ao nível da ecologia nós não concebemos um movimento que não seja à esquerda.

Ia precisamente colocar-lhe essa questão, se é concebível um movimento ecologista que não tenha uma base de denúncia do atual sistema.

Não, como é evidente. Este sistema capitalista é bastante depredador dos nossos recursos naturais e olha fundamentalmente para o lucro a curto prazo. Pode produzir-se muita legislação ambiental, que tudo o que toca estes interesses, o capitalismo rejeita. Vimos aquilo que se passou quanto aos organismos geneticamente modificados, onde a salvaguarda da saúde pública e da biodiversidade ambiental deu lugar aos interesses de multinacionais agroalimentares como a Monsanto. Verificamos o que acontece quanto aos apetites na área da privatização da água. E tantos outros. Portanto, não há um partido ou movimento ecologista que não queira contrariar este sistema absolutamente depalidador e injusto, no sentido de promover a sustentabilidade do nosso desenvolvimento. Não é possível fazê-lo à direita.

E acha que há uma relação entre o desligar ideológico destes movimentos e uma insistência de práxis muito individualizada?

Há nitidamente. É evidente que o comportamento individual é determinante mas há uma outra vertente fundamental que muitas vezes esses movimentos esquecem que é a responsabilidade que o cidadão tem de exigir do poder político aquela que é a sua. O cidadão pode ter muito boa vontade em deixar o seu carro em casa e andar de transportes públicos, mas se não lhe for oferecida uma boa rede de transportes públicos compatível com os seus horários, necessidades e carteira, é evidente que o cidadão não faz essa opção. Esquecer esta vertente e desresponsabilizar o poder político, incutindo toda a responsabilidade no cidadão, não é correto. Outros partidos aqui na AR surgem sempre com o mesmo tipo de propostas: aumentar as penas em termos criminais, impor multas ou taxas aos cidadãos. Dou o exemplo dos sacos de plástico: parecia uma medida muito ambientalista! Os Verdes foram contra a aplicação dessa taxa, e aconteceu exatamente aquilo que dissemos que ia acontecer — como os sacos leves eram taxados e os mais grossos não, os hipermercados erradicaram os leves e introduziram os mais grossos, pondo-lhe um preço igual ao da taxa. O cidadão pensa que está a pagar a taxa ao Estado, quando na verdade está a pagar um preço ao hipermercado. Fez-se aqui um brutal negócio para os hipermercados que arrecadaram, de acordo com as contas do anterior governo, cerca de 40 milhões de euros. Já propusemos na AR que se erradicassem do mercado, progressivamente, as embalagens supérfluas, as que são mais de 20 vezes o tamanho do produto só para efeitos de marketing, que o mercado também ganhasse essa preocupação ambiental e adaptasse a sua oferta. A proposta foi rejeitada com os votos contra do CDS, do PSD e do PS, porque no mercado não se pode tocar. Pede-se só ao cidadão que pague multas, que pague taxas e ao mercado não se pede rigorosamente nada.

Considera que o governo tomou as medidas adequadas para evitar que o cenário dos últimos anos se repita, no que toca a fogos florestais?

Hoje há mais meios no terreno, quer numa lógica de prevenção, quer numa lógica de combate. Mas alterarmos a lógica de povoamento da nossa floresta é determinante porque esta ficou rendida às celuloses. Foi uma opção de sucessivos governos e, no fundamental, do governo anterior. Deixámos de ter uma floresta que primasse pela diversidade e logo pela resistência. Alterámos a lei da liberalização do eucalipto. Mas há uma questão fundamental sobre a qual o governo não atuou que tem a ver com o abandono do mundo rural. A Política Agrícola Comum (PAC) destruiu uma boa parte da nossa agricultura, tivemos milhares de hectares abandonados. É necessária a existência de zonas agrícolas que funcionem como zonas tampão, intercalares das zonas florestais, que promovam a presença de pessoas no interior, que promovam uma vigilância permanente das nossas florestas. Sempre que se encerrou um serviço público no interior do país, retirou-se potencial de fixação de população. Isto foi determinante para que os fogos florestais atingissem este nível de propagação.

“Este sistema capitalista é bastante depredador dos nossos recursos naturais e olha fundamentalmente para o lucro a curto prazo. Pode produzir-se muita legislação ambiental, que tudo o que toca estes interesses, o capitalismo rejeita.”

Ainda sobre a PAC, um dos alertas que os Verdes têm feito prende-se com o que se está a construir no Alentejo, e noutras zonas, que são as culturas agrícolas permanentes super intensivas. Há uns anos, para promover a eucaliptização do país, dizia-se que as monoculturas de eucalipto geravam muito emprego, criavam uma dinâmica económica muito importante na nossa floresta e depois percebeu-se qual foi o efeito dessa aposta. O país pagou muito caro, com vidas humanas, com destruição de habitações, de poupanças, de vidas inteiras, com a destruição do nosso património natural, material. Agora o mesmo argumento está a ser dado relativamente ao olival super intensivo. Um dos efeitos das alterações climáticas previstas para Portugal é justamente o empobrecimento dos solos e estamos a colocar culturas intensivas que promovem a sua saturação com facilidade, são esbanjadoras da utilização da água. Quanto mais densas são as culturas mais problemas fitossanitários têm, mais utilização de pesticidas é necessária, mais há contaminação de solos e de água, para além da contaminação e poluição direta que as populações sentem. É esta visão comezinha de curto prazo, muito economicista, que é incompatível com uma visão ecologista do desenvolvimento.

Nesta linha de ordenamento do território, os Verdes consideram que a ferrovia desempenha um papel muito importante. Têm insistido em propostas contrárias à visão dominante. São viáveis, tendo em conta o avanço que se deu no desmantelamento de linhas e do grande investimento que foi feito na rodovia?

Claro que sim. É uma questão de opção e vontade política. Estávamos a falar das alterações climáticas ainda há pouco. O sistema de transportes é determinante para sua a mitigação. O transporte ferroviário é aquele que pode dar um contributo maior na redução de emissões de gases com efeito de estufa e também noutro problema estrutural que referimos que são as assimetrias regionais. Nesta legislatura, por proposta dos Verdes, conseguimos a reposição do transporte diário de passageiros na linha do Leste, uma conquista muitíssimo importante para a região ao nível ambiental, social e económico. Temos consciência de que há três questões fundamentais sobre as quais é preciso agir ao nível da rede ferroviária nacional: a modernização das linhas, o material circulante, porque temos material caduco, e precisamos de mais pessoal, quer na CP, quer na EMEF. Nestas três vertentes era possível ter avançado mais e ter feito um maior investimento. Este governo PS não se conseguiu desligar de uma determinada obsessão pelo défice, que acabou por manter outros défices que temos no país e que tínhamos condições, na nossa perspetiva, para ultrapassar. Os Verdes não defendem o descontrolo das contas públicas, mas para que estas sejam equilibradas é determinante termos a capacidade de gerar riqueza no nosso país, termos atividade produtiva sustentável, que gere postos de trabalho, que gere rendimentos, para que também as populações sejam agentes dinamizadores dessa economia.

E relativamente às cidades. Que modelo de gestão é que os Verdes defendem?

O sistema de transportes é determinante para gerar cidades mais sustentáveis, que devem conseguir libertar-se do transporte individual em massa para garantir uma boa rede de transportes públicos. Nesta legislatura, batalhámos muito pela redução dos preços dos transportes. Conseguimos a dedução da totalidade do IVA pago no passe social em sede de IRS, a reposição do passe 4-18 sem condição de recursos, a reposição do passe sub-23 sem condição de recursos e o passe único com uma redução substancial de preço e que queremos que se estenda a todo o país. Mas há uma outra vertente no âmbito dos transportes que nas cidades faz todo o sentido e deve ser fomentada, que se prende com a mobilidade ativa, que é o uso da bicicleta. E há outras matérias que são determinantes. Ao contrário do que era o pensamento dominante há uns anos atrás, de que a conservação da natureza e da biodiversidade se fazia em nichos do território, hoje sabemos que os espaços urbanos têm essa componente. Temos que avançar rapidamente para soluções como telhados verdes. Esta dimensão é fundamental para a mitigação de um problema global que é a perda brutal da biodiversidade. A natureza e a biodiversidade geram-nos serviços de ecossistema fundamentais que são prestados gratuitamente às populações, como a regulação de cheias, a regulação climática. Nós precisamos da biodiversidade para a nossa sobrevivência e as cidades, curiosamente, podem aí também ter um papel fundamental.

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