Entrevista

Sindicalismo

A CGTP-IN tornou-se “objetivo estratégico do poder económico e financeiro”

José Ernesto Cartaxo começou a trabalhar aos 10 anos e juntou-se à luta antifascista ainda jovem. Foi preso político e dirigente da Intersindical antes e depois da revolução. À Voz do Operário desfia uma parte importante da história do movimento sindical, incluindo dois importantes acontecimentos que cumprem 40 anos, a primeira greve geral em liberdade e os trágicos acontecimentos do 1.º de Maio de 1982.

Começou a trabalhar aos dez anos. Qual é a história deste menino que não pôde ser criança em Vila Franca de Xira? Em que trabalhou?

Antes de falar sobre a minha história, lembro que a generalidade das crianças da minha geração, filhos de gente explorada e pobre, começava a trabalhar, por conta de outrem, muito cedo para ganharem alguns tostões para o sustento das suas famílias que viviam miseravelmente.

Eu comecei aos 10 anos, logo que completei a quarta classe. No verão de 1953, fui trabalhar para os Telhais, cuja atividade é magistralmente descrita por Soeiro Pereira Gomes no seu livro “Esteiros”. Ali, recebia um miserável salário de 7$50 por semana. 

Este foi o meu primeiro trabalho, até aos 12 anos. Depois fui dar serventia, na construção civil, e, aos 13 anos, em 1956, entrei para uma oficina como aprendiz de mecânico a ganhar 25 tostões à hora, o que dava 20 escudos por dia.

Como só tinha a quarta classe, matriculei-me na escola industrial noturna, que havia em Vila Franca de Xira, para tirar o curso de serralheiro mecânico. Trabalhava de dia e estudava à noite.

Na zona onde nasci e fui criado, havia uma grande concentração industrial, na qual trabalhavam milhares de trabalhadores que viviam com péssimas condições de vida e de trabalho, o que originava, neste meio, o desenvolvimento de muitas atividades de caráter social, cultural e político. 

Neste contexto, comecei, de muito novo, a participar no movimento associativo, a fazer parte de um grupo cénico, a desenvolver atividade política na CDE, em 1969. Em princípios de 1970, passei a ser militante do Partido [Partido Comunista Português] que considerava o movimento operário e sindical uma frente prioritária de luta. 

Como militante do Partido, fui desenvolvendo alguma atividade clandestina, nomeadamente na empresa onde trabalhava e na ligação aos militantes de outras grandes empresas, como a Mague, em Alverca, e a Cimentos Tejo (hoje Cimpor) em Alhandra.

Em meados de 1970 passei a integrar o Sub-Comité Regional do Baixo Ribatejo.

Esteve em Caxias e em Peniche. O que é que o levou à prisão?

Fui preso, em 6 de julho de 1971, às 6.10 da manhã, na sequência de uma denúncia da minha atividade partidária, feita pelo famigerado [Augusto] Lindolfo. 

A minha prisão dá-se seis dias depois da dos meus camaradas, que faziam parte do mesmo organismo, porque entretanto eu tinha mudado de casa e a PIDE prendeu, por engano, um homem que foi morar para a casa onde eu tinha vivido. Detetado o engano, a PIDE libertou-o e, através dos seus informadores, localizou a nova casa onde eu vivia. Foi aí que me prenderam e me levaram para a António Maria Cardoso. Depois fui para Caxias onde estive isolado 80 dias, durante os quais fui vítima das mais diversas torturas físicas e psicológicas. Em março do ano seguinte, deu-se o julgamento no Tribunal da Boa Hora. Fui condenado a dois anos de prisão, que acabei de cumprir no Forte de Peniche.

Quando saí da prisão, em julho de 1973, andei mês e meio à procura de emprego porque, na altura, dar trabalho a um tipo que tivesse sido preso político era arriscado para quem o fizesse. Foi uma situação difícil porque a minha mulher estava desempregada e tínhamos um filho para criar. 

Só passado mês e meio, é que consegui arranjar emprego, em Santa Iria de Azóia, na MEC. Consegui porque um amigo meu de infância, que era lá pintor, contactou o encarregado geral e contou-lhe da minha situação. Mandou-me lá ir para fazer o exame que era reparar um compressor de ar comprimido, durante dois dias. Lá fui, fiz o exame. O homem gostou do meu trabalho e, ao saber da minha situação, disse-me: “não me interessa que tenha sido preso político, o que eu preciso é de um bom profissional, venha trabalhar amanhã”. 

A MEC era uma empresa que, na altura, tinha cerca de 400 trabalhadores, com mais mulheres que homens. Não havia ainda célula. Havia pontas de malta que tinha ligação ao Partido mas não havia propriamente célula organizada. Foi lá que eu conheci o Jerónimo de Sousa, que era afinador de máquinas, muitas das quais “avariavam” para eu as ir reparar, que era a forma de ambos conversarmos muito, sobre política e não só.

Envolveu-se no movimento sindical ainda durante o fascismo. O que é que era fazer sindicalismo nos últimos anos da ditadura?

Sobretudo a partir da altura em que comecei a ter responsabilidades no Partido, acompanhava, por via orgânica, a ação que se desenvolvia nas empresas e nos sindicatos corporativos. Discutíamos e tínhamos orientações para os militantes no sentido de intervirem ativamente de forma articulada, nas empresas e locais de trabalho, organizando células e destacando quadros para delegados sindicais, comissões de trabalhadores, encabeçar reivindicações, desenvolver e intensificar lutas, muitas delas importantes, que se travaram pelo aumento dos salários, pela redução do horário de trabalho, pelas férias e respetivo subsídio, pelo feriado do 1.º de Maio, pela liberdade sindical, contra a censura e contra a Guerra Colonial. 

A par desta intervenção, havia também a orientação para se intervir nos sindicatos corporativos no sentido de eleger direções da confiança dos trabalhadores. 

Foi em resultado desta intervenção que em 1970, se elegeu uma direção da nossa confiança para o Sindicato dos Metalúrgicos de Lisboa, que com a dos Bancários, do Comércio e dos Lanifícios, subscreveu a convocatória que esteve na origem da criação da Intersindical Nacional, com a data de 1 de outubro desse ano.

A atividade desenvolvida nesta frente, nos últimos 4 anos da ditadura fascista, com a eleição de delegados sindicais, a discussão do contrato, a dinamização da luta reivindicativa nas empresas fez com que, pouco antes do 25 de Abril, de outubro de 73 até abril de 74, mais de 100 mil trabalhadores de cerca de 200 empresas, estivessem em luta. 

E como foi a construção de um movimento sindical de classe em liberdade?

O movimento operário português tinha vivido nas condições mais diversas ao longo de mais de um século de existência, acumulou uma vasta experiência coletiva própria.

Experiência que, enriquecida pelos ensinamentos, pela história, e pela ação do movimento operário internacional, lhe permitiu afirmar-se como força social determinante na defesa dos direitos e interesses dos trabalhadores. 

Como está comprovado, a Intersindical não nasceu do exterior para dentro do movimento operário. Ela foi uma criação dos próprios trabalhadores e nasceu no seu seio, de baixo para cima. Foram os trabalhadores que, em pleno fascismo, colocaram dirigentes da sua confiança à frente dos sindicatos corporativos, lutando e assumindo a defesa dos seus interesses da classe, num contexto de luta contra a ditadura, contra a guerra colonial, pela liberdade e pela democracia.

A criação da Intersindical Nacional, com a sua natureza de classe e de massas, os seus princípios de unidade, democracia, independência e solidariedade, constituiu um marco de grande significado no longo, difícil e heróico percurso do movimento operário e sindical, que se consolidou e reforçou depois do 25 de Abril, designadamente a partir do Congresso de todos os Sindicatos, realizado em Janeiro de 1977.

Quais foram as razões que levaram à primeira greve geral menos de oito anos depois da revolução?

A situação social que se vivia nos finais de 1981 e princípios de 1982 era explosiva. Havia um governo da Aliança Democrática (AD), com maioria absoluta, que prosseguia e aprofundava uma política contra as principais conquistas da revolução e de agravamento das condições de vida e de trabalho. 

O desemprego, em finais de 1981, era 8,8%, a previsão da OCDE para a inflação no ano seguinte era de 25% e o governo anunciava um teto salarial de 14,75% e a intenção de rever a legislação laboral para facilitar os despedimentos.

Depois de os trabalhadores terem respondido, neste período, com grandiosas greves e manifestações, o Plenário Nacional de Sindicatos, reunido no dia 15 de janeiro de 1982, com o Teatro Aberto repleto, decide, por unanimidade e uma grande ovação, a realização duma greve geral de 24 horas, para o dia 12 de fevereiro desse ano, sob o lema geral “uma só solução, AD fora do governo”.

Como é que decorreu essa jornada de luta? Pode fazer um retrato geral?

Ninguém ficou neutro. O CDS, PSD e PS declararam-se contra a greve e organizaram ações contra ela. Dirigentes da UGT, entre os quais o próprio secretário-geral, Torres Couto, apoiados por polícias à paisana, fizeram piquetes anti-greve nos transportes. O PCP, a UDP e o PSR apoiaram.

Apesar de todo o tipo de intimidações e da repressão patronal e governamental, mais de 50% dos trabalhadores portugueses protagonizaram um dos mais violentos afrontamentos entre as forças do trabalho e o capital, depois do 25 de Abril.

Acha que valeu a pena? Quais foram os resultados?

Indiscutivelmente. Os resultados laborais deste confronto foram assinaláveis: para além de se ter estilhaçado o teto salarial, o pacote laboral foi metido na gaveta, os contratos coletivos de trabalho passaram a vigorar 12 meses e o governo, que ficou socialmente isolado, caiu dez meses depois. 

Fez parte dos órgãos dirigentes da CGTP-IN até 2008. Que papel teve a central sindical na resistência ao processo contra-revolucionário?

A revolução de 25 de Abril de 1974, como expressão de soberania popular, contou com a intervenção decisiva da Intersindical Nacional nas transformações políticas, económicas e sociais então realizadas, conseguidas com a luta no terreno, e que vieram a ser consagrados na Constituição da República de 1976.

Pelo conjunto da diversificada movimentação de massas, encabeçada pela CGTP-IN, pelo seu significado político, pela adesão à revolução de Abril que expressou, pelo que representou no desenvolvimento do processo revolucionário e na defesa das conquistas da revolução, a CGTP-IN e o movimento sindical unitário tiveram de enfrentar poderosos inimigos congregados numa “santa aliança” para o seu enfraquecimento, divisão e até liquidação.

Dividir e descaraterizar a organização que era o eixo e o motor da mobilização dos trabalhadores, a força mais consequente e determinada na defesa de Abril, uma força que tinha como divisa a unidade do trabalho contra o capital, tornou-se um objetivo estratégico do poder económico e financeiro, tendo em vista conter o processo revolucionário e criar as condições necessárias para a reconstituição do poder perdido com a revolução de Abril. 

Também em 1982, a polícia provocou dois mortos e uma centena de feridos no Porto no 1.º de Maio depois de uma provocação da UGT. Qual foi o papel desta estrutura na reversão das conquistas da revolução?

Nesta operação estiveram envolvidas forças que, dispondo de poderosos meios financeiros, políticos e propagandísticos, não olharam a meios e a métodos para atingirem os seus objetivos.

Foi a campanha contra a unicidade sindical, para dividir o movimento sindical, foi a operação “Carta Aberta”, que mais tarde deu origem à UGT, foram os assaltos terroristas a instalações sindicais, foi a criação de sindicatos paralelos, as provocações contra as manifestações do 1.º de Maio de 1975, em Lisboa, e no de 1982, no Porto, e foram ainda os ataques e as limitações ao exercício das liberdades sindicais. 

Estas operações podem ser sintetizadas pela célebre afirmação do dirigente e governante socialista Maldonado Gonelha de que era preciso “partir a espinha à Intersindical”.

Apesar de ter de fazer frente a tão poderosos inimigos, a CGTP-IN desempenhou um papel inestimável no desenvolvimento do processo revolucionário, cumprindo com sucesso as suas tarefas, tornando-se numa força indestrutível, necessária e insubstituível na defesa do regime democrático.

Hoje em dia há quem desvalorize o papel dos sindicatos e diga que é algo ultrapassado. Como olha para o futuro do movimento sindical?

Os trabalhadores portugueses, durante os 51 anos de existência da CGTP-IN e sob a sua direção, escreveram páginas de luta verdadeiramente empolgantes pela dimensão, determinação, unidade e consciência social, política e de classe, das quais se devem orgulhar. 

Na atualidade, o movimento sindical e os trabalhadores enfrentam novos e difíceis problemas. O capitalismo atravessa uma profunda crise que procura ultrapassar reduzindo a pó conquistas históricas, e mesmo civilizacionais, alcançadas através de duras lutas e de muitos sacrifícios de sucessivas gerações de trabalhadores.

Desenvolve-se uma violenta ofensiva ideológica que visa escamotear a exploração, a que os trabalhadores estão sujeitos. Tenta-se individualizar as relações de trabalho e desagregar e descaracterizar o movimento sindical de classe.

Neste contexto, a CGTP-IN e o movimento sindical, que ela consubstancia, continua a ser uma necessidade imperiosa e um instrumento fundamental para os trabalhadores portugueses, unidos e organizados, fazerem frente à exploração, e lutarem com êxito por melhores salários, horários dignos, emprego com direitos, serviços públicos de qualidade e por um Portugal com futuro que seja simultaneamente, soberano, desenvolvido e solidário.

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