Entrevista

Política

“Karl Marx é deturpado, mas está sempre vivo”

Sérgio Ribeiro morreu aos 88 anos. Quando rebentou a revolução de 1974 estava atrás das grades, em Caxias. Foi assim que lembrou as primeiras horas de Abril à Voz do Operário numa entrevista em 2018. Doutorado em Economia, foi diretor-geral do Emprego durante o governo encabeçado por Vasco Gonçalves e deputado à Assembleia da República e ao Parlamento Europeu pelo PCP. Entre livros e recortes de jornais na sua casa, em Ourém, conversou sobre os contributos e atualidade de Karl Marx no ano em que se comemorava o bicentenário do revolucionário alemão.

Foto de Nuno Agostinho

Marx é uma súmula histórica do melhor da filosofia, economia, política?

Ele próprio é uma súmula inacabada. Quando Marx morreu, em 1883, estava a aprofundar o estudo das ciências da natureza… Ele beneficiou de Darwin, de Adam Smith… beneficiou de tudo o que lhe foi anterior e transmitiu-nos, à sua luz, tudo a que foi chegando.

Ele… e o companheiro “cúmplice” Engels, uma figura que, na própria vida, é um exemplo de continuidade e de mudança, de altero e auto-crítica.

Engels é uma peça fundamental nesta vida?

O Capital é o exemplo disso. Marx só publicou o primeiro livro. Os outros foram todos editados por Engels a partir de apontamentos, notas, cadernos… uma série de documentos que Marx deixou, mas não em estado de serem publicados. São três volumes em oito tomos, e foi Engels que tudo organizou a partir da base material que Marx deixou. Foi fundamental.

Aliás, o Manifesto do Partido Comunista, em 1848, é da autoria dos dois. Além de que também há algumas obras só dele. É uma figura importantíssima no marxismo.

Qual é a vigência de Marx atualmente? Há quem tente escondê-lo, arrumá-lo na história…

Tem a vigência da vida! Porque as coisas vão acontecendo por forma que fazem desmentir todos esses esforços de tirar valor ao contributo de Marx. O pensamento de Marx tem a importância imprescindível, para nós percebermos hoje o que se está a passar, de ter descoberto três ou quatro coisas que são fundamentais. E teve a modéstia de dizer ‘o que fiz de importante foi isto…’ mas não falava n’O Capital, no Manifesto…, falava em três ou quatro ideias que não atribuiu a si, que atribuiu a ter tido a capacidade de pegar em ideias de outros e transformá-las em novas, juntando a todas as outras. Num momento histórico, Marx teve a capacidade de apanhar tudo o que recolheu dos outros e dar-lhe um salto qualitativo. Aliás, isso tem a ver com a dialética, com a filosofia.

Tendo Marx descoberto elementos chave para interpretar a realidade, também dizia que mais importante é transformar o mundo, quais são os contributos nesse aspecto?

Essa é a sua última tese sobre Feuerbach. Porque é que eu estou a sublinhar isto? É que Marx, numa fase de descoberta, deu com a filosofia e é com Feuerbach que se torna materialista porque até aí estava influenciado pelo idealismo hegeliano. Quando passa por Feuerbach, elabora uma série de teses em que a última é essa, e torna-se materialista. Essa frase passa a ser célebre num momento ainda recuado do pensamento de Marx. Em que está longe de dizer como passar da especulação sobre o mundo – sobre a sociedade, sobre o homem, sobre o ser humano… – para a sua transformação mas afirma a sua necessidade. Só mais tarde, no seu percurso, é que chega à economia, à economia política, a começar com os manuscritos e a acabar n’O Capital. Esta fase será a crítica da economia política num pensamento integrado e que não existiria sem o que a antecede. 

É por isso que uma das grandes mistificações ou aldrabices contra Marx tem a ver com a preocupação de o dividir em duas fases: o jovem Marx e o Marx revolucionário. Não! Nessa passagem que tu referiste está em evolução do especulativo para o transformador. Transformar, como? E aí aparece a apreensão do funcionamento da economia. É a fase final do percurso que acabou com a morte dele, mas que continuou com Engels e que tem de continuar connosco.

Mas que aspectos da vida e da obra de Marx é que contribuíram para a transformação daquele tempo?

Claramente a noção de mais-valia. A partir da teoria do valor e do carácter dual do trabalho; da leitura histórica de que os seres humanos, pela sua posição no processo de aproveitar os recursos pelo trabalho criador para satisfazer necessidades, há um momento em que se dividem em classes sociais. E como é que elas vão mudando. Como é que a classe burguesa, desde o final do século XVIII, é predominante, e é dominante através da apropriação de mais-valia por ser proprietária de meios de produção, e criou a classe operária e o assalariato.

Ainda hoje a propriedade dos meios de produção é central do poder político económico

É. Mas com dados novos e facetas novas. Não é evidente porque, como resposta de um processo histórico, que corresponde àquilo que é a leitura histórica que colhemos em Marx, há que perceber como é que neste processo, em que o motor será a satisfação das necessidades – como seres humanos temos necessidades: de comer, de nos abrigar, de lutar contra outros animais, de preservar o meio-ambiente … –, como é que este processo tende a evoluir através da criação de meios e, para isso, sabendo que esses meios se vêm transformando a cada momento. Era muito claro e era muito evidente, na altura do Marx, que o operário, com os meios de produção de que foi desapossado e de que outros se apropriaram, produzia aquilo de que necessitava.

Isto já não é tão evidente porque se criaram meios de produção muito mais elaborados em que o corpo humano foi substituído por peças cada vez mais complexas. Se nós pensarmos que o sucessor da enxada é o computador, se pensarmos que o telemóvel é o que prolonga a nossa voz para comunicar com os outros, e como é que isso complexificou, vemos como é que os meios de produção se transformaram também.

Ainda assim, os detentores do poder político continuam a ser os detentores dos meios de produção…

Diria o contrário… 

O que acontece é que tudo se tornou menos evidente, menos (ou mais…) aparente. Marx tem uma frase interessante onde diz que se a essência fosse igual à aparência não havia ciência. É curioso como a aparência se tem vindo a sobrepor àquilo que era evidente, não apagando a essência. Há um aparelho ideológico. Não há é a certeza de que esse aparelho ideológico esteja consciente da ideologia. As coisas correm, há quem as aproveite sem ver a essência desse aproveitamento. Parece interessante, como contributo de Marx, ele ser muito crítico mas não ser juiz. Isto quer dizer que o que nós temos de condenar ideologicamente é um sistema e não os seus fautores porque se não pode entrar-se numa via que me parece ser perigosa que é a de se estar contra os capitalistas e não se ser contra o capital como relação social.

Porque é que Marx reaparece sempre?

Não será Marx que aparece sempre, reaparece sempre aquilo que Marx investigou. Reaparece sempre porque houve leis do processo histórico a que Marx chegou através do estudo, da reflexão, da acção e reaparece repetindo-se, repetindo-se sempre como se novo fosse. Particularmente nestes duzentos anos que estamos a atravessar, a luta de contrários pode levar das fricções às agressões e como os detentores da predominância da relação social, na correlação de forças, para manterem a dominância, podem ser capazes de tudo se não forem travados pelos outros. É que vivemos num momento histórico em que se pode comprovar mais uma vez que à classe dominante serve a guerra para manter a dominância, enquanto que à classe dominada ou explorada só interessa a paz. Só assim é que conseguirá avançar… ou então ganhando o conflito. 

Agora estamos perante uma realidade assustadora porque a evolução das forças de produção foi de tal ordem que podem tornar-se de destruição da própria espécie humana, da humanidade. Fica muito claro que uma luta que se torna vital é a luta pela paz. E isto confronta outro aspecto interessante em que, mais uma vez, Marx reaparece que é a questão de como é que estamos numa fase em que as crises do capitalismo tomam uma expressão que é absurda, através de uma forma imaterial. A moeda perdeu materialidade. Marx já previa que o crédito, que o dinheiro sem base material viesse a ter importância. Naquela altura não tinha. As relações materiais foram-se complexificando por forma a que a classe dominante, através dos seus meios, impôs a desmaterialização. Isto é possível por quanto tempo?

Há cada vez mais leituras sobre Marx, nomeadamente no meio académico, que o afastam do carácter revolucionário. Porque é que isto acontece?

Quando eu era estudante, Marx foi-me apresentado por um professor católico e, na altura, foi uma revelação. Mas aquele Marx que aquele professor me apresentou não é o que eu vim a conhecer, era o primeiro-Marx, o que estava no início do seu percurso. 

As academias não podem afastar-se de Marx porque não pode acontecer a Marx o mesmo que acontece a Keynes. Keynes fez algumas descobertas interessantes para os economistas, dentro do sistema, dando como adquirido parte da realidade que está em mudança, mas sendo forçado a aceitar aspectos como o da socialização do investimento. Que a classe dominante não pode aceitar. Daí que Keynes seja banido de vez em quando, ao contrário de Marx. Marx nunca é banido, é posto de lado, é deturpado mas está sempre vivo.

E a ideia de que se pode construir um sistema capitalista humanizado?

Essa é a via/desvio social-democrata. Há um elemento importante no pensamento de Marx que não é considerado como fundamental que é o da “ditadura do proletariado”. Só é possível a passagem de uma relação social dominante para outra através de um período em que o dominado domine. 

Tem sido historicamente procurado, através do controlo político e institucional – de uma democratização parcial –, impor à classe que domina a correlação de forças, regras que não lhe servem. 

A social-democracia existe e insiste. Mas, dentro do capitalismo, com a classe detentora dos meios de produção a dominar o político, as experiências que têm sido feitas não têm resultado, na perspectiva revolucionária. Nem poderiam ter. Antes preservam a dominação, a exploração do homem pelo homem.

O nosso processo revolucionário também encarna os princípios políticos de Marx?

Marx, ao ser guia para a ação, não ensina como fazer. Não dá respostas dogmáticas ao ulterior Que fazer? de Lenin. 

No nosso processo, demos passos em frente que naquelas condições foram possíveis. A nossa experiência foi tão importante que continua a ser, apesar de parecer deixar de ser…; tão importante que, enquanto que noutras situações foram desaparecendo os partidos de classe, os sindicatos de classe, e a classe ficou sem sindicalismo e sem organização política. Em Portugal, não.

Está presente, influentemente, a força que vem de trás e que nasceu em meio século de fascismo e de resistência. É condição de Marx não deixar de ver o processo histórico no momento em que ele se está a concretizar. Há um aspecto muito importante que Marx nos traz como contributo. Se é fundamental a existência de organizações que continuem o seu contributo, quer políticas quer sindicais, é indispensável que essas organizações de nenhuma maneira se transformem em colectivos de elites, devem manter-se vanguarda. As elites separam-se das massas, a vanguarda são a primeira linha das massas e, assim sendo, a vanguarda transforma-se em elites se se afasta das massas. O que eu quero dizer é que é fundamental a tomada de consciência do processo histórico. Do papel das classes, do seu lugar na História. 

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