Entrevista

Carlos Latuff

A charge é um instrumento de luta

Há quem consiga através da ilustração e da caricatura traduzir aquilo que por vezes nos custa dizer em palavras. É o caso deste caricaturista nascido no Rio de Janeiro, que inspira a reflexão crítica, quando não a revolta, através do desenho. Com um percurso artístico reconhecido em todo o mundo, o trabalho de Carlos Latuff já foi adotado por inúmeros movimentos e povos em luta como ferramenta de denúncia e transformação.

Como foi o seu percurso até chegar à ilustração

Eu não comecei pensando em charges [caricatura política] ou pensando em desenhos de conotação política. Comecei muito influenciado pelos desenhos animados que eu via na televisão e pelas histórias em quadrinhos [banda desenhada]. Na verdade eu comecei a trabalhar como chargista porque não tinha espaço em outros veículos, não tinha nenhuma motivação política, nenhuma formação política. Comecei a trabalhar na imprensa sindical porque foi a que me abriu as portas para eu exercer meu trabalho.

Cresceu numa família politizada?

Não cresci numa família politizada. O meu pai participava em manifestações antes do golpe de 64 [golpe que deu início à ditadura militar brasileira e que durou até 1985], naqueles tempos de turbulência política. Chegou a participar de algumas manifestações, mas não era uma pessoa de formação política, de militância. Não tive nenhuma dessas experiências na minha família.

Começou por trabalhar numa agência de publicidade. Como foi essa experiência?

O trabalho na agência de propaganda foi anterior ao da imprensa sindical. Ali eu não era chargista nem fazia quadrinhos. Era ilustrador e foi uma experiência interessante, em que pude desenvolver um lado artístico de ilustração mais publicitário. Foi uma experiência muito boa porque também pude trabalhar sob pressão, pressão do tempo, cobrança do diretor de arte, e isso foi muito importante para mim.

Qual a importância do sindicalismo no desenvolvimento do seu trabalho enquanto ilustrador?

Como havia lhe dito, eu não tinha nenhuma formação política e essa formação foi se dar precisamente no momento em que comecei a trabalhar com a imprensa sindical. Comecei a ter contacto com pautas [reivindicações] da esquerda, bandeiras da esquerda, de que eu não tinha conhecimento prévio, então a minha formação deu-se a partir desse contacto com a imprensa sindical, com a qual eu trabalho até aos dias de hoje, com muito orgulho.

Tem feito desenhos, sobretudo, para a imprensa alternativa e anti-capitalista. Teria sido possível publicar os mesmos conteúdos nos meios de comunicação social ligados aos grandes grupos económicos e financeiros?

Algumas charges poderiam ser publicadas em veículos do mainstream media [comunicação social dominante] do Brasil, mas certamente que a grande maioria não. Até porque várias das minhas charges eram críticas ao sistema financeiro, ao qual o mainstream media é intimamente ligado. Havia críticas, inclusive, ao próprio mainstream media, então obviamente que o meu estilo de trabalho não seria bem quisto pelo mainstream media brasileiro. Hoje, por conta do governo Bolsonaro, até já cheguei a ter trabalhos publicados no mainstream media, mas não é uma coisa comum, pelo menos não para mim. O meu trabalho já foi repercutido pelo mainstream internacional, mas no brasileiro é muito restrito. Temos uma imprensa colonizada. Não superámos o período colonial, continuamos com mentes colonizadas no Brasil, e a própria estrutura do mainstream media no Brasil é uma estrutura familiar que lembra, de certa maneira, os feudos do latifúndio no Brasil, que são empresas mantidas por famílias, que tem também a ver com esse nosso passado colonial.

A democratização das sociedades e dos seus regimes políticos passa também pela democratização da imprensa?

Uma sociedade democrática passa por uma imprensa democrática e plural. Plural! Que é o que não temos no Brasil. A esquerda tem muito menos voz, quando tem, no mainstream aqui, no Brasil. A direita tem muito mais espaço, muito mais voz e a imprensa no Brasil tem uma característica familiar, como referi anteriormente, que demonstra essas relações de famílias, de latifundios, criadas muito em função do período colonial.

A ilustração pode ser uma importante ferramenta política?

Sim, a charge pode ser – pode não, é – um instrumento de luta. A minha experiência, por exemplo, com a Palestina, com a chamada Primavera Árabe no Egipto, no Barém, é justamente isso, um manifestante se apropriando de uma charge numa manifestação, fazendo com que aquela charge ecoe a sua voz, a sua luta. A charge tem um papel histórico. Na verdade, o papel original dela era um papel editorial. A charge é feita para ilustrar um artigo, um tópico, de uma publicação. No momento em que ela é utilizada por um manifestante, num protesto, no momento em que é utilizada por um professor em sala de aula, ela transcende esse papel e ganha um papel sócio-político muito relevante.

Em 1999, visitou a Palestina e essa luta nunca mais deixou de fazer parte das suas ilustrações. De que forma é que essa viagem o marcou?

A viagem na Palestina foi um divisor de águas, foi uma experiência muito profunda porque eu nunca tinha visto uma situação como aquela pessoalmente. Realmente em 98 você tinha uma situação ruim para os palestinos, e hoje é ainda pior. Mas mesmo naquela época foi muito claro a limpeza étnica produzida pelo sionismo. Eu estive em aldeias palestinas que foram varridas do mapa, que hoje só têm pedras brancas marcando as residências. Estive na companhia de um senhor que cresceu naquela região, que era uma aldeia palestina e que hoje é um descampado, e ele apontava para mim e dizia “olha, onde está essa pedra branca, era a casa da minha avó. Onde está aquela outra era a casa de mais não sei quem”. O nome disso é limpeza étnica. Ali havia uma aldeia palestina que em 48 foi simplesmente varrida, riscada do mapa. E sem falar das restrições que eu percebi, de movimento dos palestinos. Os carros que saíam de Jerusalém e iam para a Cisjordânia tinham placas [matrículas] diferentes, naquela época havia já estradas feitas exclusivamente para colonos. Então, é muito claro, eu fui testemunha ocular do aparthaid israelense. Conversei com palestinos, israelenses, com militantes, com colonos, com uma série de atores daquela região, actores sociais daquela região e, de volta ao Brasil, comecei a desenhar sobre os palestinos e para os palestino, como uma forma de me solidarizar à luta dos palestinos pela soberania e os direitos humanos, contra o colonialismo sionista.

Já foi ameaçado ou alvo de repressão política pelo seu trabalho?

Já recebi ameaças por parte de um site ligado ao Likud, que é um partido de direita de Israel, que dizia que Israel já deveria ter cuidado de mim há muito tempo, de um jeito ou de outro. Já recebi ameaças de partidários do Erdogan, presidente da Turquia. Já recebi ameaças por conta das minhas caricaturas sobre a violência policial no Rio de Janeiro, no Brasil. Foram várias tentativas de censura ao meu trabalho. De fato eu tenho uma trajetória longa de tentativas de censura e ameaças, mas faz parte. Quando você decide pisar os calos, você tem de estar preparado para este tipo de reação.

As questões internacionais e a luta dos povos são temas centrais no seu trabalho e há ilustrações suas em todo o mundo. Porque é que dá tanta importância àquilo que se passa fora do Brasil?

Desde garoto que sempre me interessei por temas internacionais. Na verdade, o meu trabalho reflete muito desse interesse e acredito também na solidariedade com outros povos porque, afinal de contas, você tem situações que acontecem no Brasil e que acontecem da mesma maneira em outros países, como é caso, por exemplo, a violência policial. Acredito que, da mesma forma que a reflexão se dá de maneira semelhante em diversos países, mesmo com culturas diferentes, línguas diferentes, histórias diferentes, a solidariedade deve ser também unificada e presente.

Como é que olha para a situação atual do Brasil? Como foi trabalhar enquanto ilustrador num país governado por Jair Bolsonaro?

O governo Bolsonaro é pródigo em produzir charges, porque o chargista se debruça sobre a desgraça. Aqui no Brasil a gente tem uma diferenciação entre chargista e cartunista. O cartunista se debruça sobre temas do quotidiano, costumes. E o chargista trabalha em temas políticos. Para temas políticos não há a menor dúvida de que o governo Bolsonaro, que é uma tragédia, uma catástrofe, a primeira vez que temos num governo um fascista clássico, é, de uma certa maneira, um prato cheio para os chargistas. Nesse período do governo Bolsonaro, aconteceram situações de tentativa de censura, quando se trata de charges sobre violência policial, ou charges criticando o próprio Bolsonaro. Já tivemos chargistas processados, enquadrados na lei de segurança nacional, que é uma lei desenvolvida no regime militar, e isso é uma característica do governo Bolsonaro, de censurar vozes dissidentes. Agora é preciso lembrar que esses incidentes envolvendo chargistas não são exclusividade do governo Bolsonaro. Eu tive várias situações, de ameaças, de tentativas de censura, que foram feitas antes do governo Bolsonaro. No governo do Fernando Henrique [Cardoso], no governo Dilma, no governo Lula, o que nos leva a crer que essa situação não é específica desse ou daquele governo, é problema do Estado Brasileiro.

A candidatura de Lula da Silva abre uma janela de esperança para o futuro?

Eu creio que estamos numa situação realmente crítica. O Lula não é o Che Guevara do ABC [sindicato dos metalúrgicos no qual Lula da Silva iniciou a sua intervenção política e social], o salvador da pátria, um messias. Ele é um presidente que já teve uma experiência como presidente, governou o Brasil por dois mandatos e fez um bom governo. Não é um revolucionário mas fez um bom governo. Atentou para pautas sociais importantes mas, nesse exato momento, a eleição do Lula tem uma importância muito grande porque ele agora representa a luta contra o fascismo. O que temos neste momento no Brasil já não é simplesmente mais direita versus esquerda. É a civilização versus a barbárie, está muito claro, isso. Eu não espero que um governo Lula seja revolucionário. Mas uma coisa é certa, o Lula terá sobre os seus ombros uma responsabilidade muito grande de reconstruir o Brasil cujo governo Bolsonaro, nesses quatro anos, fez política de terra arrasada. O Brasil nunca esteve com índices sociais tão ruins, nunca teve uma quadrilha comandando o Planalto [sede da presidência do Brasil]. O papel histórico que o Lula vai cumprir nesse próximo mandato, se tudo der certo, é um papel de reconstrução nacional, porque o Brasil está destruído por conta desse desgoverno do Bolsonaro.

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