Com a proposta da Câmara Municipal de Santa Comba Dão, encabeçada pelo PS, de materializar a velha ambição da extrema-direita portuguesa de avançar com um museu ao ditador António Salazar, a Associação Portuguesa de Juristas Democratas (APJD) foi uma das muitas organizações que se uniram ao coro de protestos contra o projeto. Madalena Santos, que é professora na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, onde leciona cadeiras na área da ciência histórico-jurídica, é uma das caras que alerta para os perigos do fascismo e dos ataques aos direitos dos trabalhadores e dos povos. Faz ainda parte do bureau da Associação Internacional de Juristas Democratas (AIJD), fundada pelos advogados de acusação do julgamento em Nuremberga contra os líderes nazis em 1945.
Há vários anos que há a intenção de se construir um museu dedicado a Salazar. O que defende a APJD?
A posição da associação é muito clara e é que em Portugal, após a constituição de 1976, não há lugar a que se possa propagar, difundir qualquer tipo de ideias fascistas ou nazis e, portanto, está completamente afastado do nosso tecido constitucional a possibilidade da existência desse tipo de movimentos, associações ou qualquer outro tipo de manifestações que efetivamente sirvam para que as ideias fascistas e nazis se possam desenvolver na nossa sociedade. Defender a constituição e o que está nela proposta é fundamental. Infelizmente, nalguns setores ligados à investiga- ção e à inteletualidade tenta-se mascarar de alguma forma, com subterfúgios, a possibilidade de se vir a fazer esse museu.
Acha que pode ser um espaço de peregrinação fascista?
Obviamente. E há pessoas que no nosso país, infelizmente, têm ideias bolorentas e querem que aquele local sirva para fazer as suas peregrinações e, portanto, isso é algo que nós de maneira nenhuma podemos aceitar. É inaceitável a existência de um museu a Salazar ou um centro de interpretação de Salazar. Agora, isso não exclui nem deve excluir o nosso estudo e a denúncia sobre o que foi o fascismo e o que são os fascismos e a forma efetiva de os combater. Mas para isso temos os arquivos nacionais, temos alguns arquivos locais e temos os investigadores, que liga- dos de fato a uma rede de âmbito universitário, como todas as universidades do país, o podem fazer e o devem fazer e não criar ali um pólo, digamos assim, em Santa Comba Dão. Porque foi a terra do ditador e onde o mesmo está sepultado e nós sabemos que mesmo relativamente a isso já há diversas, enfim, romagens e peregrinações à campa. Portanto, era meter ali mais uma acha para uma fogueira que nós não queremos de maneira nenhuma alimentar, nem podemos alimetar, porque é muito perigosa.
Entende que os novos desenvolvimentos no futuro Museu Nacional da Resistência e Liberdade, na antiga prisão do Forte de Peniche, podem ser um elemento que ajude a entender melhor o que foi o período do fascismo em Portugal?
Tudo o que sirva para explicar às novas gerações, e nós temos tido muita dificuldade em explicar às novas gerações o que foi o fascismo, é fundamental. O fascismo e Salazar não estão de modo nenhum desligados de uma perspetiva de luta contra essa mesma realidade e de uma postura de resistência. Para se estudar o fascismo tem de se estudar sempre a resistência contra esse mesmo fascismo e os seus mecanismos: torturas, prisões, assassinatos, separação de famílias, de pobreza, etc.
Eu vivi esse tempo, em particular no Alentejo, e es- tudei ainda à luz do petróleo. Só com o 25 de Abril é que foi possível que chegassem à minha aldeia os esgotos, a eletricidade, uma escola primária acessível. Tudo isto tem de ser explicado. O fascismo era um período de grande obscurantismo, em que a pobreza proliferava e as pessoas não tinham oportunidades. A revolução do 25 de abril permitiu o desenvolvimento da economia e o desmantelamento do grande capital e das quatro ou cinco famílias que dominavam o país.
Houve um abaixo-assinado contra o museu a Salazar que reuniu milhares de assinatu- ras e agora há uma petição. Qual é o objeti- vo que querem alcançar?
Neste caso, a petição quer obrigar o parlamento a discutir a questão e a tomar posição sobre ela. Do ponto de vista jurídico, o parlamento é um órgão político e, portanto, com a discussão parlamentar tem a força política de a Assembleia da República ter tomado uma atitude sobre esta questão. É a casa da democracia, é a casa da constituição, onde são feitas as leis, onde foi feita a nossa constituição tem esse papel político importantíssimo.
É evidente que os tribunais podem ser acionados, nomeadamente tendo em consideração a dita constituição que proíbe qualquer tipo de organizações ou de difusão das ideias fascistas mas esperemos nunca chegar aí porque estamos a tentar que todos os envolvidos tenham o bom senso de não permitir que o museu a Salazar vá para a frente.E
Em Espanha, o Vale dos Caídos, onde estava sepultado o ditador Franco, era justamente um centro de peregrinação e só neste ano, até setembro, recebeu 266 mil visitantes. Acha que foi importante a decisão de exumar o cadáver e transportar os restos para outro cemitério?
Acho que sim. Andou bem, no meu entender, o governo espanhol e o povo espanhol na sua luta para tirar Franco de uma zona pública e de tributo àqueles que caíram pela pátria para um cemitério de âmbito privado, porque efetivamente é neste espaço que ele deve ser relegado.
Também em Espanha, temos assistido ao que se passa na Catalunha. Muitas vezes, tenta-se olhar para a União Europeia como um espaço de direitos democráticos, como uma referência civilizacional digamos, e depois olhamos para o lado e vemos centenas de feridos e presos políticos.
Nós temos acompanhado as questões da Calatunha, como temos acompanhado outros momentos da atualidade, tal como a invasão das zonas dos curdos pela Turquia como temos acompanhado outros problemas como o que se passa na Ucrânia. Estivemos como observadores internacionais em várias sessões do julgamento que tentava ilegalizar o Partido Comunista da Ucrânia e essa nossa ação a nível internacional até agora tem dado frutos e resultados. O Partido Comunista da Ucrânia não foi ilegalizado até ao momento. Há um processo contra os dirigentes do Partido Comunista acusando-os de ser criminosos e traidores à pátria. Alguns deles, infelizmente, estão presos, outros têm sido assassinados e já por duas vezes também numa sessão das Nações Unidas, onde temos assento como observadores, fizemos intervenções precisamente sobre a Ucrânia.
Relativamente à Turquia também tivemos oportunidade de tomar posição desmascarando essa feroz intervenção que meteu na prisão advogados, juristas e juízes. Sobre a questão da Catalunha, nós entendemos que o que está ali em causa é uma postura autoritária por parte do Estado espanhol e o não reconhecimento de liberdades fundamentais, nomeadamente o direito à possibilidade de se manifestarem e de lutarem pela independência daquela zona.
Os catalães alegam que aqueles líderes independentistas que foram condenados são presos por motivos políticos. É assim?
Nós entendemos que no âmago do problema estão questões de âmbito político e não questões de outro qualquer teor do foro de âmbito civil ou criminal. O que está na base desses processos efetivamente são questões de âmbito político e que estão a ser neste momento de alguma forma também branqueadas com outro tipo de posturas. Portanto, o nosso entendimento e a nossa interpretação e a nossa postura é no sentido de as partes chegarem a entendimento na base de negociação e na base de poderem resolver aquele problema complexo.
É uma questão histórica e neste momento, pelos vistos, a questão da autodeterminação e a questão da eventual independência poderá resolver aquele problema. De qualquer modo, a via do diálogo é aquela que para nós, neste momento, deve ser a mais incentivada.
A AIJD foi fundada pelos advogados de acu- sação dos Processos de Nuremberga contra os líderes nazis. Recentemente, foi aprova- da uma resolução do Parlamento Europeua equiparar o comunismo ao nazismo. Isto não é relativizar o próprio fascismo quando foi, por exemplo, o Exército Vermelho que libertou Auschwitz?
Claro. A APDJ também teve oportunidade de se pronunciar sobre essa tomada de posição do Parlamento Europeu e isto é efetivamente mais uma das linhas de branqueamento do próprio nazismo, por um lado, e também do papel determinante que as sociedades socialistas e em particular a União Soviética, com os seus milhões de vítimas durante a guerra, teve para conseguir travar o monstro do fascismo. Quer dizer, não teria havido ninguém que tivesse conseguido travar o fascismo se não tivesse existido o Exército Vermelho e a União Soviética.
Considera que continua a ser atual a luta contra o fascismo ou é já uma coisa do passado?
Claro que não é do passado. A luta contra o fascismo continua a ser atual. Enquanto houver classes explo- radas exploradoras vai-se colocar como é óbvio a luta contra governos ditatoriais, fascistas e nazis. É uma luta permanente.