Entrevista

Manuel Figueiredo

Manuel Figueiredo: “A Voz é um projeto com futuro”

Presidente da direção da instituição desde 2010, Manuel Figueiredo fala dos desafios atuais e do caminho por trilhar com o olhar de quem não perde de vista os valores de justiça e emancipação social.

Quando olha para o passado e para o presente, sente que A Voz continua fiel aos princípios pelos quais foi criada?

Julgo que sim, essa é a matriz d’A Voz do Operário, que foi criada com um desígnio e esse desígnio tinha a ver na altura com a luta dos operários tabaqueiros contra a exploração a que estavam sujeitos. Essa luta foi vertida num jornal que pudesse publicar as suas justas reivindicações, que não tinham espaço nos jornais oficiais à época, enfim, coisas que infelizmente não mudaram muito. O acesso à educação, a saber ler e escrever, era muito mais difícil para as classes trabalhadoras e para os operários e, portanto, rapidamente os fundadores do jornal chegaram à conclusão de que era necessário haver uma instituição que desse suporte ao jornal e, por outro lado, que pudesse ser também um instrumento de de instrução para os operários e seus filhos. Nos tempos da República, A Voz chegou a ter cerca de oito dezenas de escolas. Portanto, teve um papel muito importante na educação, mas também um papel importante em todas as outras áreas, nunca deixando o seu desígnio fundador de lado, o seu desígnio pela luta da emancipação dos trabalhadores, dos operários. A Voz viveu tempos muito difíceis nos tempos do fascismo, em que lhe tentaram cercear muitas liberdades, a censura existiu, designadamente no nosso jornal, mas apesar de todas as dificuldades nunca foi uma instituição que, dentro dos seus condicionalismos, não estivesse ao lado dos trabalhadores. Este ano, vamos celebrar o 50.º aniversário da fundação CGTP-IN e houve reuniões de muitos sindicatos que se fizeram exatamente n’A Voz do Operário, em 1970.

Portanto, há um prestígio que se foi construindo ao longo de 140 anos de história do jornal e também da própria instituição. Como é que as outras organizações olham para A Voz?

Quer a nível institucional, quer a outros níveis, sinto que A Voz é uma instituição muito prestigiada e admirada. Respeitam-na não só pelo seu legado, pelo seu passado, mas também pelo que ela sempre representou e representa do ponto de vista da atividade social,recreativa, educativa, do contributo que dá à comunidade. O fato d’A Voz ter sido no ano passado agraciada como membro-honorário da Ordem da Liberdade é mais um elemento que representa esse prestígio.

A Voz também se distingue de outras instituições por se orientar por princípios de solidariedade e não pela ideia de assistencialismo.

É o elemento marcante de como nós atuamos e é a diferença entre o assistencialismo, a caridade, e a solidariedade. O assistencialismo e a caridade andam de mãos dadas. Enquanto que com a caridade alguém está lá em cima e está, digamos, a dar uma esmola a quem está cá em baixo, num plano em que nunca se misturam, numa perspetiva de nunca haver nenhum qualquer entrosamento, a solidariedade é exatamente o oposto.

Nesse aspeto, A Voz sempre fez parte da luta mais geral contra as desigualdades e as injustiças.

A Voz está envolvida nesse combate, com outras organizações, de diferentes formas. Por exemplo, neste momento, existe o Movimento Erradicar a Pobreza. A Voz apoia, desde o primeiro momento, este movimento, onde participam muitos sócios que fazem parte dos nossos órgãos sociais. Mas a luta contra as desigualdades é uma luta, naturalmente, mais geral e não passa só por isto, ela passa também, no essencial, pela luta que é travada contra a exploração. Enquanto houver exploração, enquanto houver alguns que se aproveitam do trabalho, da riqueza gerada pelo trabalho de outrem, vai haver pobreza. Em Portugal, mesmo do ponto de vista estatístico, nos últimos anos as desigualdades não reduziram, pelo contrário, aumentaram. Aumentaram porque é preciso uma rutura de fundo com a política que vem sendo desenvolvida e a essa rutura passa naturalmente por criar uma sociedade em que não exista a exploração.

É presidente da direção d’A Voz do Operário desde 2010. Qual é o balanço?

Quando cheguei à Voz em 2010, havia algumas dificuldades, designadamente do ponto de vista financeiro, e também é importante dizer-se que este período coincide com a entrada da troika em Portugal, com problemas muito graves a vários níveis, designadamente afetando A Voz, os seus sócios, atingindo as pessoas que tinham cá as suas crianças e, portanto, foi um período complicado.
Apesar disso, a postura que a direção d’A Voz teve, foi de analisar e perspetivar o futuro sempre numa vertente de aumento da atividade, de crescimento e não numa vertente de definhamento. Felizmente, fomos conseguindo superar as dificuldades. Houve uma valência que foi descontinuada: o terceiro ciclo. Chegámos à conclusão de que o número de crianças que tínhamos e a procura que existia não era suficiente para manter com sustentabilidade esta vertente. Ao mesmo tempo, tentámos por todas as vias incrementar as outras áreas.
Foi assim que surgiu a ideia, fruto também de uma relação com a Câmara Municipal de Lisboa, de irmos para o Restelo. Mais tarde, fomos para outros equipamentos na Margem Sul. Maximizamos a nossa atividade e fomos conseguindo um crescimento sustentado. Hoje, temos cerca de 1150 crianças, temos o apoio domiciliário, quer em Lisboa, quer na Margem Sul, com mais cerca de 50 pessoas que estão abrangidas. Mais tarde, acabámos por ter um refeitório social na Graça. Temos hoje um centro de convívio com uma maior dinâmica. Houve um crescimento efetivo na atividade e no número de utentes. Depois a atividade tem, como é óbvio, outras vertentes, desde logo a vertente cultural, desportiva e recreativa. São vertentes que nós queremos incrementar.
Para além de tudo isto, entre muitas outras coisas, começamos a organizar há três anos a Gala de Fado d’A Voz que é já um marco cultural e é importante destacar que o acervo da nossa biblioteca foi importante para o fado ter sido considerado Património Imaterial da Humanidade. De resto, a nossa Marcha Infantil continua a ser um marco. É uma alegria ver aqueles miúdos desfilarem no pavilhão e na Avenida da Liberdade.
Do ponto de vista económico, nós temos vindo em crescendo no nosso orçamento. Atualmente, ultrapassamos os 5 milhões de euros de atividade anual. Portanto, estamos a falar de uma instituição de grande dimensão no setor social.

O alargamento d’A Voz para a Margem Sul, Restelo e Ajuda faz a diferença?

Sim. Por exemplo, na Ajuda, temos a nossa creche agora no Bairro 2 de Maio e os relatos que nos chegam é que este equipamento naquele local é muito importante. Aquele bairro tinha uma má conotação, era marginalizado, era um bairro com muitas dificuldades. Quando fui vereador na Câmara Municipal, visitei-o muitas vezes e ouvi as reivindicações e as carências dos moradores. A instalação deste equipamento veio trazer uma nova vida ao bairro, não só pelas crianças, pelos pais das crianças que as vão levar e que as vão trazer, mas também pelo conjunto de trabalhadores que estão na própria escola, o que veio dinamizar a zona. Nós temos hoje listas de espera em vários equipamentos. Também no sul notamos que A Voz do Operário aparece como algo diferente ao que havia antes. Posso-lhe contar que quando nós tomamos posse daqueles equipamentos rapidamente os pais perceberam que aquilo não era um depositário onde deixavam as crianças de manhã e iam buscá-las à noite, era muito mais do isso. No fim de semana seguinte, convidámos os pais todos a visitarem os equipamentos e explicámos que aquele projeto ia envolvê-los. A pouco e pouco, pelo nosso método pedagógico, as pessoas começaram a perceber que havia mesmo uma diferença.

Para além disso, em todos estes avanços que referiu, inclusivamente nestes espaços educativos, há uma marca dos trabalhadores da própria Voz.

Há e em vários níveis, desde logo com a referência do modelo da Escola Moderna que nós desenvolvemos internamente através dos nossos próprios projetos educativos, com a participação de todos, e não só pelos docentes, também pelos auxiliares. É todo um trabalho coletivo que é feito com reuniões, com muito trabalho, para que todos sintam que estão a verter no projeto as suas opiniões, aquilo que acham que é o melhor para os equipamentos e para A Voz do Operário. São sempre projetos muito participados e, portanto, as pessoas sentem que trabalhar n’A Voz não é trabalhar em qualquer sítio, é trabalhar num sítio diferente. É trabalhar num sítio onde a procura de fazer melhor, de fazer em prol da comunidade está acima de tudo o resto.

Há alguma perspetiva de A Voz se expandir para outros espaços?

Há possibilidades. Este crescimento d’A Voz também teve o seu impacto e nós, ao longo dos últimos anos, temos tido vários contatos, não só com donos de colégios particulares que queriam de alguma maneira que A Voz do Operário ficasse encarregue pela sua gestão, como inclusivamente com outro tipo de equipamentos educativos, designadamente na área profissional, que também nos contataram. Nós não tínhamos condições do ponto de vista económico e financeiro de assegurar essa gestão. Mas mostraram interesse pelo nosso modelo. Mas pode haver outras situações, nós estamos abertos naturalmente a outras propostas.

Sei que há um projeto de reabilitação e renovação do complexo d’A Voz do Operário na Graça.

Este edifício mais antigo tem sido objeto de importantes obras de manutenção que significaram um grande investimento. Por exemplo, em toda a rede elétrica porque era uma área muito importante e investimos também na área de segurança. Por outro lado, criámos a sala associativa e o Auditório João Hogan, obra em grande parte realizada pelo nosso próprio pessoal da manutenção. Agora, temos um projeto para o salão que prevê a sua insonorização e climatização. Uma coisa depende da outra, ou seja, não podemos insonorizar o salão sem ao mesmo tempo criar condições para a climatização.
Por outro lado, no futuro, o objetivo é termos um novo edifício para a creche e pré-escolar. No lugar onde está hoje o refeitório e o ginásio, vamos criar condições para outro novo edifício ligado ao outro deslocalizando para aqui os 1.º e 2.º ciclos deixando o edifício histórico para todas as atividades não educativas. Evidentemente que isto é um projeto a ser realizado a longo prazo. Todos os projetos dependem de prazos, da Câmara Municipal. Já obtivemos vários pareceres favoráveis.

Com um passado tão cheio, A Voz é um projeto com futuro?


A Voz é claramente um projeto com futuro nas várias vertentes. Nós temos valências que nunca mais acabam, não só valências de atividades extracurriculares, que são muitas, como atividades culturais, que também são bastantes, como outras atividades para os sócios, desde o cabeleireiro social ao centro de convívio. Temos também um projeto importante que tem a ver com a nossa biblioteca. Temos um acervo muito rico. A nossa luta deve ser construir-nos enquanto biblioteca dos movimentos sociais, é essa a vertente que nós queremos desenvolver porque deve ser das mais importantes deste país.

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