Entrevista

50 anos do 25 de Abril

“O futuro está do nosso lado”

António Avelãs Nunes integrou, como secretário de Estado, os cinco primeiros governos provisórios, saindo do governo quando Vasco Gonçalves deixou de ser primeiro-ministro. Deu aulas de Economia Política na Faculdade de Direito de Coimbra e jubilou-se em 2009 enquanto vice-reitor da Universidade de Coimbra.

Como foi crescer num país sem liberdade?

Eu não fui propriamente um dos que mais pagaram o preço da existência do fascismo, outros pagaram muitíssimo mais do que eu. Apesar de tudo, eu formei-me em Direito e gostava de ser era magistrado, mas a PIDE impediu a minha nomeação. Equacionava a hipótese de desertar se não tivesse tido a sorte de entrar para a Marinha, que era outra ‘tropa’ (o Conselho Escolar da Escola Naval não deu seguimento a uma informação da Pide, que pretendia enviar-me para a Companhia Disciplinar de Penamacor como soldado raso, destino que tiveram então dois amigos meus, um médico e outro jurista). Ainda por cima tive a sorte de cumprir o serviço militar no próprio Ministério da Marinha, na província do Terreiro de Paço. 

Convidado para assistente da Faculdade de Direito de Coimbra, a Pide demorou cerca de um ano e meio a autorizar o meu contrato, o que só foi possível porque o Director da minha Faculdade sendo um homem do regime (e com muita força política), honrou a tradição da Faculdade de não deixar ninguém de fora por razões políticas. 

Como membro da Redacção revista Vértice, sofri as agruras de quem escreve para a censura, afastando certos temas (as despesas resultantes dos cortes da censura punham em risco a subsistência da revista), escrevendo de forma rebuscada, condicionando a escrita e até o pensamento. Sentíamo-nos humilhados. Um sofrimento que deixou marcas, creio que até hoje.

E dirigiu a mais importante publicação estudantil durante o fascismo.

Eu fui, pela primeira vez em Coimbra, o Director da Via Latina, órgão da AAC, que ganhou alguma projeção, vindo a ser reconhecida como o jornal de todos os estudantes portugueses. Pagámos um preço elevado: a Via Latina foi o primeiro órgão associativo a ser suspenso naquele ano de 1962. O governo não queria que se realizasse o Encontro Nacional de Estudantes. Mas eu, enganando a censura, consegui fazer publicar o Programa do Encontro na primeira página do jornal. Resultado: a Via Latina foi suspensa sine die.

E onde é que estava no 25 de Abril?

Estava em Paris, com uma bolsa da Gulbenkian, a trabalhar na preparação da minha tese de doutoramento. 

Quando, na manhã de 26 de Abril, ia a sair da Casa de Portugal (na Cidade Universidtária) vi e ouvi a TV francesa e concluí que o fascismo tinha chegado ao fim. Resolvi que, nesse dia, não iria trabalhar. O Dr. Rosado Dias (Director da Casa) perguntou-me se eu estava disponível para falar com uns quantos jornalistas franceses que lhe tinham telefonado pedindo ajuda para encontrar estudantes portugueses com quem pudessem conversar. Disse-lhe que sim e lá falei com os vários jornalistas que apareceram pouco depois. 

Eu insistia em que se tratava de um movimento anti-fascista. Mas eles não acreditavam (o golpe de Pinochet – setembro de 1973 – ainda estava próximo…) e comentavam sempre: mais ils sont des militaires… Eu acrescentava que eram militares fartos de uma guerra colonial que durava há 13 anos, uma guerra injusta, que não poderia nunca ser ganha. E recordava que já não eram oficiais saídos das elites, mas jovens oriundos de famílias pobres e da pequena burguesia… 

Não consegui convencê-los: ils sont des militaires…, repetiam eles. Perdi a batalha definitivamente quando acrescentei: a meu ver, a esquerda vai tomar conta da situação, porque o descontentamento popular é muito grande e só a esquerda está organizada (o Partido Comunista, que nunca desertou da luta, e o PS, recém-constituído), não existindo nenhuma organização da chamada direita democrática. Eu acreditava mesmo que isto iria acontecer. 

Ainda em Paris, vi na TV que, contrariando as instruções do MFA (naturalmente com o objetivo de evitar confrontos que gerassem mortes), o povo saiu à rua, começando a exercer os seus direitos, com elevado civismo, mas muita alegria e muita determinação. Os militares tinham dado o pontapé de saída, mas o povo quis fazer sua a revolução, para liquidar o fascismo, para libertar os presos políticos, para dar caça aos pides, para exercer o direito de reunião e o direito de manifestação, a liberdade de expressão e de organização política e sindical, para exigir o fim da guerra colonial, para acabar com os monopólios e o latifúndio que tinham sido o sustentáculo do fascismo. Assim nasceu a Aliança Povo-MFA

No sábado seguinte ao 25 de Abril, depois do almoço, um grupo de cinco ou seis protestantes portugueses conversávamos sobre o que passava em Portugal. As notícias não eram muitas e os telemóveis ainda não tinham sido inventados. A certa altura, um Colega que preparava o doutoramento em Matemática e tinha um Fiat 128, teve a feliz ideia de perguntar: “E se fossemos a Portugal ver a festa?” Em menos de meia hora, estávamos cinco dentro do carro, que eu conduzi durante as 26 horas seguintes, tantas quantas durou a viagem até Coimbra, apenas com duas paragens para meter gasolina e lavar a cara com água fria e para tomar o pequeno almoço.

Depois, os outros colegas regressaram. Eu fiquei mais uns três ou quatro dias. Quando já tinha o bilhete no Sud Express para regressar a Paris, o Doutor Ferrer Correia, que tinha sido meu professor e era administrador da Gulbenkian, chamou-me a casa dele às oito da noite porque queria falar comigo. Isto porque o Doutor Orlando de Carvalho tinha sido convidado para Secretário de Estado pelo Ministro da Educação indigitado (o Doutor Eduardo Correia, professor da minha Faculdade), mas só aceitaria ir para o Governo se eu fosse trabalhar com ele. A tarefa do Doutor Ferrer Correia era a de me convencer a não regressar a Paris, para poder acompanhar o Doutor Orlando de Carvalho no Governo. Eu resisti, mas acabei por ceder. Entretanto, o nome indicado pelo Ministro Eduardo Correia para Secretário de Estado dos Desportos não teve o aval dos partidos de esquerda. Perante a dificuldade, o Ministro, sabendo que eu iria para Lisboa, sugeriu o meu nome ao Dr. Salgado Zenha, que tinha sido aluno dele em Coimbra. Ora eu tinha feito o estágio para a advocacia como o Dr. Salgado Zenha, quer logo deu o seu aval. E eu acabei por ir para Secretário de Estado dos Desportos e Ação Social Escolar do primeiro Governo Provisório. 

Terminada a longa ‘comissão de serviço’ que representou, para mim, a passagem pelo Governo, regressei a Coimbra e à Faculdade de Direito. Entretanto, aos tempos radiosos de Abril e de Maio tinham sucedido os tempos inverniços de novembro e eu entendi que não devia, então, desertar da luta pela defesa de Abril e das conquistas da Revolução, adiando o regresso aos trabalhos de investigação que tinha interrompido a seguir ao 25 de Abril. Tinha programado apresentar-me a provas de doutoramento em finais de 1975. Acabei por concluir a tese em Julho de 1983 e prestei provas no dia 3 de Maio de 1984. Foi o resultado das escolhas que fiz. Não me arrependo de as ter feito.

Foi também secretário de Estado do Ensino Superior e da Investigação Científica. Como foi trabalhar com um primeiro-ministro como Vasco Gonçalves?

Foi uma das coisas boas que me aconteceu na vida. Quando fui para o Governo não o conhecia, nem tinha ouvido falar nele. Conhecia dos meus tempos da Marinha sobretudo duas pessoas da Comissão Coordenadora: o comandante Almada Contreiras e o comandante Martins Guerreiro. Mas não conhecia o Vasco Gonçalves. Por razões da época (sobretudo quando os ministros da Educação foram militares), eu ia muitas vezes aos Conselhos de Ministros e foi por aí, penso eu, que terá começado a aproximação com o General Vasco Gonçalves. 

Recordo-me que uma vez me chamou a S. Bento para me dizer “olhe, senhor doutor, o Ministro Magalhães Mota [representante do PPD no governo] disse-me que o senhor só está a nomear como delegados regionais do Desporto e da Juventude apenas gente do MDP e que gostava de falar consigo. O senhor importa-se de conversar com ele sobre isso?” Eu disse-lhe, naturalmente, que não me importava nada, ainda por cima porque ele me pedia isso mesmo. Marcada a conversa, Magalhães Mota disse-me exactamente o que refiro atrás. E eu respondi mais ou menos isto: “Sr. ministro, o meu dever é nomear democratas com provas dadas, pelo que não posso nomear adeptos fervorosos do fascismo ou gente que colaborou com o fascismo. Tenho de ir procurar democratas, gente que tem um passado antifascista! Ele ficou assim a olhar: “Ah, mas é que era preciso garantir o pluralismo…”. E eu rematei: “pois eu entendo que devo entregar os cargos que dependem de mim a pessoas que eu acredito que vão defender a nossa jovem democracia, e é isso que eu vou continuar a fazer.” Depois da conversa, fui dar conta dela ao Primeiro-Ministro Vasco Gonçalves. E recordo-me que ele reagiu bem: “Ah, muito bem, acho que foi uma boa resposta.” 

Como é que olha para as políticas e para o estado do Ensino Superior meio século depois? 

Estou jubilado desde 2009. Entretanto, estive como Vice-Reitor [da Universidade de Coimbra] nos últimos sete anos de serviço activo e foi nesse período que se aprovou o o famoso RJIES (Regulamento Geral do Ensino Superior) do tempo do ministro Mariano Gago. Eu não sei qualificá-lo como Ministro da Ciência (admito que, nesse sector, possa ter tido algum papel positivo), mas foi, a meu ver, o pior ministro do ensino superior que tivemos, pelo menos depois do 25 abril. 

Este RJIES veio matar a vida democrática nas Universidades, completamente ao arrepio do que diz a Constituição, que garante (caso único no mundo, creio eu) a autonomia financeira, pedagógica, científica, e administrativa das universidades. Este Regulamento não permite que sejam as universidades (os professores, os estudantes e os trabalhadores não-decentes) a eleger o seu Reitor. Os reitores são escolhidos pelo Conselho Geral, no qual os elementos externos à Universidade (um dos quais preside ao Conselho Geral) detêm um papel predominante.

Por outro lado, os estudantes foram praticamente afastados dos órgãos de gestão da Universidade e das Faculdades, um retrocesso grave do ponto de vista da vida democrática e da organização pedagógica das Escolas. Quem não credita na possibilidade da democracia participativa nas Universidades não pode acreditar em democracia nenhuma, se entendermos a democracia como o governo do povo para o povo.

Eu penso que as universidades estão a ceder ao neoliberalismo, mas daqui por uns anos vão ser aquelas que mais dolorosamente vão exibir as feridas e as misérias resultantes das políticas neoliberais. Quando eu ainda estava na reitoria, as receitas provenientes do Orçamento de Estado tinham diminuído, em poucos anos, cerca de 40%. As universidades tiveram que ganhar a vida por outros meios, muitas vezes ‘vendendo-se’. 

Depois veio o processo de Bolonha, que é um processo que a ‘Europa’ inventou para colonizar neste plano a Europa menor. O processo de Bolonha serve para destruir as universidades que tinham alguma viabilidade em países como Portugal. As melhorias pedagógicas que poderiam resultar de certos aspectos ligados ao novo modelo exigiam muito mais investimento na investigação e no ensino superior, exactamente o contrário do que aconteceu. Creio que hoje, as universidades portuguesas preparam pior os seus estudantes que que antes de ‘Bolonha’. 

Como é que vê o crescimento da extrema-direita nos 50 anos do 25 de Abril?

A História diz-nos que políticas da mesma natureza das actuais políticas neoliberais estiveram na base do nazi-fascismo. No caso da Alemanha isso é absolutamente claro. Foram as políticas do Chanceler Brüning, conhecido como o Chanceler da Fome, que abriram as portas ao nazismo. As políticas neoliberais estão a minar as condições de vida, o bem-estar, a dignidade dos povos da Europa, tal como aconteceu nos Estados Unidos. Em nome das famosas regras da concorrência, em nome de que o Estado pode ter empresas públicas mas as empresas públicas têm que se comportar como qualquer empresa privada e têm que respeitar as regras da concorrência…, a Europa neoliberal matou o Estado Social. O Estado Social que foi inventado pelo capitalismo, para salvar o capitalismo de uma morte que parecia certa. Os partidos socialistas europeus diziam que já não era preciso lutar pelo socialismo porque o socialismo estava aí e acabaram a deixar cair o Estado social. A partir de Mitterrand isso ficou claro. Ele confessou: “eu tenho uma opção ou contruo a Europa ou o Estado Social”. E ele optou pela Europa.

De que forma é que podemos manter viva a memória da Revolução de Abril e como transformá-la em resistência?

Há quem goste de ditar frases para a História. Quem sou eu para o fazer? E não gosto de o fazer. Aquilo que eu costumo dizer é o seguinte: apesar do 25 de Novembro e das tentativas (que comprometeram muita gente…) de matar a democracia no nosso País, eu penso que o espírito de Abril está vivo. As lutas dos sindicatos, as lutas de variadíssimos sectores profissionais têm mostrado isso mesmo. Eu quero acreditar que esse espírito continua de pé e que as forças proto-fascistas não vão ganhar, de um momento para o outro, a importância que gostariam de ter. E, portanto, por mais mal que nos possam fazer em termos do Serviço Nacional de Saúde, do serviço público de Educação, da privatização do pouco que nos resta, do desgoverno que vão impor, o povo português há-de continuar a lutar pelos valores de Abril, porque Abril valeu a pena. Apesar de todos os desencantos, hoje somos um país muito melhor. Nenhuma pessoa de boa fé pode ter saudades do fascismo. E eu costumo dizer, em termos já mais vastos sobre o capitalismo e o socialismo, que a nossa vantagem é que o capitalismo tem os séculos contados. Por mais tempo que demore a nossa luta, eu creio que acabaremos por ganhá-la. O futuro está do nosso lado.

Artigos Relacionados