Entrevista

Carlos Neto

“O tempo foi arrebatado pelo Mundo adulto!”

Na sua cerimónia de jubilação, o Professor Carlos Neto subiu ao palco sentado num carrinho de rolamentos, puxado pelo neto. Jogo e Desenvolvimento Motor da Criança: um Percurso/uma Causa foi a sua última lição. Fala-nos de como “o Tempo foi arrebatado pelos adultos” e que o brincar pode ser a terapia perfeita para o Mundo real.

“Quanto mais as crianças brincam, mais controlo em termos de eficiência, autoestima e autoconfiança têm.”

O que é brincar?

Brincar é um comportamento ancestral que pode ser observado em todas as espécies animais. É explorar, compreender, investigar é, no fundo, encontrar-se e também encontrar os outros. É um comportamento fundamental e é por isso que foi considerado pelas Nações Unidas como um direito essencial da vida dos seres humanos, art.º 31º. da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, pelo qual me tenho batido há longos anos, não só através do Instituto de Apoio à Criança, mas também em todas as minhas intervenções ligadas à formação de professores. Há 40 anos que dizia que as crianças já não brincavam o suficiente e era considerado utópico, irrealista. As crianças precisam de saber correr, saber lançar, saber falar, e não quer dizer que uma criança que saiba andar de bicicleta seja um ciclista profissional, ou não quer dizer que saiba pintar e seja um pintor. Não, mas todas essas competências nas primeiras idades têm de ser conquistadas e de forma diversificada. As crianças têm que passar por diversas experiências para terem um repertório alargado para se poderem adaptar mais tarde, tal e qual como os animais aprendem com os seus pais para mais tarde serem resilientes e sobreviverem.

Já poucas crianças brincam na rua?

As crianças, nas primeiras idades, precisam de ter oportunidades de espaço e de tempo para poderem brincar. Há uma decadência, nos últimos 40, 50 anos, de tempo e de espaço para as crianças brincarem. Têm o tempo praticamente ocupado, são crianças de agenda, e isso é devido também a um mundo de trabalho que deixa muito pouco tempo para que isso aconteça em casa, na escola e na rua. Na minha geração tínhamos duas escolas, a da rua e a propriamente dita, e muitas das aprendizagens, saberes, competências que adquiríamos eram feitas lá fora a brincar com os amigos, em espaços desconhecidos, com grandes aventuras, testando os nossos riscos e, a partir daí, ganhávamos uma cultura de resiliência, e também criativa e adaptativa muito grande. Nas últimas décadas isso desapareceu. Hoje o brincar no espaço público está em vias de extinção. Não se veem crianças nas cidades, nas aldeias, nas vilas. O tempo foi arrebatado pelo mundo adulto e por isso, hoje, temos, em muitas circunstâncias, crianças sem infância, porque não brincam.

E é muito importante brincar?

Podemos ter várias taxonomias, mas de uma maneira geral podemos dizer que o brincar facilita, acima de tudo um desenvolvimento motor. Brincar significa ser ativo, deslocar o corpo, mexer nos objetos, contemplar o corpo em relação às oportunidades que a natureza oferece. Mas não é só um promotor do desenvolvimento sensorial, percetivo, motor e cognitivo, social e emocional, é também um construtor simbólico. Porque, à medida que essa maturidade cognitiva, motora, morfológica, orgânica vai avançando, também o brincar se vai tornando mais estruturado e com dinâmicas muito mais complexas. O brincar de uma forma simbólica é poderoso. Há narrativas poderosas que, quando as crianças estão a brincar, fogem á compreensão dos adultos. O brincar tem esse poder de carater simbólico e, por isso, as crianças gostam do faz de conta, do chamado jogo socio emocional, construtivo. E também o jogo social, a relação com os outros, o brincar em grupo, em pares ou em conjunto é profundamente estruturante. Há três dinâmicas que acontecem paralelamente à medida que esse brincar vai evoluindo. Em primeiro lugar o brincar é autodeterminado, significa que há uma motivação intrínseca que acompanha o próprio ator, por outro lado há uma competência fundamental que é desenvolvida, que é a regulação emocional, o autocontrolo. Quanto mais as crianças brincam mais controlo conseguem atingir em termos, não só de eficiência, mas do ponto de vista da autoestima e da autoconfiança. E uma terceira componente absolutamente essencial que é a suspensão da realidade. As crianças conseguem ausentar-se da realidade para dinâmicas simbólicas, em que se tornam verdadeiramente poderosas para terem capacidade de compreender, depois, a realidade. Brincar tem essa vantagem. 

“Temos uma sociedade muito centrada no êxito, no produto, no consumismo e muito pouco na qualidade de vida, na crítica da sua própria existência. ”

Mas hoje em dia a infância não se pode queixar da falta de brinquedos?

Brincar não é brincar com brinquedos só e não é uma categoria que diga só respeito à infância. É uma atitude mental e que se prolonga durante toda a nossa vida. É uma componente da nossa existência. Gostava muito que tivéssemos adultos não tão sérios, mas que conseguissem brincar e tivessem memórias da sua infância, que é algo que tem vindo a morrer progressivamente ao longo de gerações. Temos uma sociedade muito centrada no êxito, no produto, no consumismo e muito pouco na qualidade de vida, na crítica da sua própria existência. 

Brincar dá-nos essa capacidade crítica?

O Brincar tem uma dimensão terapêutica absolutamente fundamental, falava João dos Santos sobre isso. Tem uma dimensão de autoanálise, de compreensão de si próprio. Da forma como brinco comigo mesmo, com os meus, com os que me rodeiam, com a família, com os outros, com os amigos e com o mundo. E há hoje uma dimensão demasiado séria com que entendemos a existência, e muito pouco lúdica. Como dizia Huizinga “O jogo é anterior à cultura”, portanto, significa que nasce connosco. Todos os animais brincam na infância para se tornarem resilientes, para terem capacidade de adaptação, como falava Darwin, para terem capacidade de se confrontarem com a adversidade e com o risco. E por isso sobrevivem, porque brincar é ganhar sobrevivência. 

“[Temos] uma realidade em que o trabalho dos pais aniquilou completamente o tempo disponível para que as crianças possam brincar.”

Uma sociedade que não brinca é uma sociedade doente?

Hoje temos várias doenças que se implementaram na sociedade moderna: a superproteção parental, a superproteção adulta, a limitação de tempo não formal, ou tempo disponível. Uma realidade em que o trabalho dos pais aniquilou completamente o tempo disponível para que as crianças possam brincar. As crianças necessitam de muito tempo. O que era desejável é que as crianças tivessem tempo, em casa, na escola e na rua. Por isso as instituições que tratam da educação, da saúde e do trabalho e a própria tutela, tendo assinado a Convenção do Direitos da Criança, está a ser negligente em relação às crianças. Nós nunca tivemos tão bons pais, tão boa escola, tão boa democracia, mas há uma violência invisível que se apoderou das crianças e jovens em Portugal. Sendo nós o quarto país mais seguro do Mundo, o mais visitado, as crianças não têm qualidade de vida nem os adultos, porque passam o tempo a trabalhar. As crianças são vítimas do tempo de trabalho dos pais.

Os pais não têm tempo para os filhos?

Uma das questões mais importantes de reflexão e debate atual na sociedade portuguesa deveria ser a questão da Lei Laboral. Porque os pais deviam ter mais tempo para a família, ter mais tempo para os filhos. As crianças passam em média cerca de 50 horas semanais na escola, principalmente no pré-escolar e no primeiro ciclo, têm um modelo organizacional quase terrorista. Esta invenção da escola a tempo inteiro é algo que não tem pés nem cabeça. As crianças deviam ter tempo livre a partir de uma determinada hora. Qual é a capacidade de concentração das crianças para estarem quietas, sentadas e caladas, em silêncio, durante o dia, com currículos intensos e extensos na escola? Qual é o sentido disso? O momento mudou e a escola ficou no mesmo sítio.

E é verdade que as crianças perdem precocemente o pensamento mágico?

Sim! E a criação de uma grande imaturidade. Porque têm tudo pronto, não têm tédio nem frustração, não se confrontam com nada, os pais querem tudo de bom para os filhos, protegem-nos de mais, mas quando há muita proteção há desproteção. 

O adulto interfere na liberdade da criança?

É preciso que haja essa consciência de ter a capacidade de se controlar, como adulto, e dar espaço, dar autonomia, dar liberdade às crianças para poderem caminhar por si próprias e descobrir o seu próprio talento, a sua própria motivação intrínseca, para caminharem. Isto, aliás, é um dos maiores problemas no meio escolar, no meio familiar e social, a falta de mobilidade com todas as consequências que tem na saúde pública, pelo aumento da obesidade, o excesso de peso, os diabetes e, acima de tudo, um grande sedentarismo. Nós somos o país, dos 27 da Europa, mais sedentário. Nós temos apenas uma percentagem muito reduzida de crianças e jovens que têm uma mobilidade ativa minimamente aceitável, cerca de 70 a 75% do povo português não se mexe, têm um sedentarismo implementado no seu quotidiano, nas suas rotinas de vida, com todos os problemas que isso tem para a saúde pública, saúde mental, física, emocional e social.

“A maior doença do século é o número de horas que passamos sentados, sem termos consciência das consequências que isso tem para o organismo e também para a capacidade crítica, a capacidade de socialização, de perceber a nossa essência.”

A pandemia agravou esse cenário?              

Nos últimos dois anos temos discutido sobretudo a doença. Mas perdemos de vista as indicações da Organização Mundial de Saúde sobre a prevenção da saúde. Deveríamos fazer uma discussão e reflexão alargada, multidisciplinar, multi-institucional. Há cem anos tivemos uma pandemia (a gripe espanhola) antecedida de uma guerra e agora tivemos uma pandemia (Covid-19) seguida de outra guerra. Portanto, isto é cíclico. Mas, de facto, o que observamos é que ninguém está a dar importância ao corpo que tem necessidade de se mover, de ter autonomia, de poder explorar o espaço que o rodeia e ele está convidado a ficar sentado. A maior doença do século é o número de horas que passamos sentados, sem termos consciência das consequências que isso tem para o organismo e também para a capacidade crítica, a capacidade de socialização, de perceber a nossa essência. Temos um mundo muito virado para a aparência, mais centrado na estética do que na ética. Todos estes valores permitiam dar mais valorização a políticas que desenvolvessem a possibilidade de maior confronto do risco, maior socialização, maior solidariedade, uma consciência mais ecológica da crise climática que estamos a viver e desta transição digital com a inteligência artificial que vai modificar o mundo para uma dimensão desconhecida, imprevista e completamente nova. Não estamos a pensar nisso. 

E a escola de hoje também não responde? 

Estamos a preparar estas crianças que estão connosco para que Mundo? Se pensarmos nesta perspetiva diria que o que estamos a fazer hoje nas escolas não serve para nada. Porque não estamos a prepará-las para terem a capacidade de adaptação a um Mundo completamente novo que, dentro de 30 anos, será completamente irreconhecível. Por isso seria importante em vez de estarmos preocupados com os testes, com os rankings, com a entrada na universidade, devíamos estar preocupados é de como estamos a preparar estas crianças para serem pessoas, cidadãos ativos, com uma capacidade crítica, com espírito democrático, cooperativo e, acima de tudo, participativo. Falta uma cultura de participação na sociedade portuguesa. Muitos países da Comunidade Europeia já desenvolveram políticas interessantes nesta dimensão, quer ao nível escolar, familiar, do trabalho, do ponto de vista social, Portugal está muito atrasado.

Como é que o espaço escola responde a todos esses desafios? 

Temos verdadeiras obras de arte nas construções escolares em Portugal, mas as crianças ficaram piores. Temos uma sociedade, do ponto de vista do sistema educativo melhorada do ponto de vista das infraestruturas, mas ficaram mais pobres naquilo que é o mais básico e elementar que é poder brincar, correr, saltar, jogar, poder subir às árvores. Retiraram tudo o que era interessante para as crianças na escola. Preservou-se a sala de aula, numa dimensão tradicional conservadora, replicativa e abandonou-se a necessidade de as crianças poderem ir lá para fora aprender. Nós alcatifamos as escolas. Hoje o que existe nas escolas é betão e cimento sintético. Os adultos fizeram uma escola à sua medida e não respeitaram as necessidades básicas e fundamentais das crianças. 

A que se refere quando fala de sala de aula tradicional, conservadora?

Devíamos desconstruir a sala de aula. Não gosto de chamar sala de aula e recreio, porque é um disparate esses dois conceitos em pleno século XXI. Devíamos falar em espaço interior e exterior e as crianças aprendem em qualquer espaço, com diversas metodologias, diversas perspetivas, desde que nós possamos dar-lhes oportunidades para poderem explorar, poderem ser pequenos investigadores, cientistas, artistas, desportistas. Por isso o espaço da escola devia ser repensado de modo a melhorar as condições de estimulação exteriores, porque uma das maiores desgraças que existe no mundo escolar é ausência de contacto com a natureza. A natureza é a magia da nossa essência e nós desprezamo-la praticamente nos últimos anos. Cortamos os corredores ecológicos, pela industrialização e também pela construção das cidades. Os espaços verdes desapareceram, cortaram-se as árvores. Os paus, as pedras, a água, os elementos mais naturais dentro da escola foram retirados.

Porquê?

Por uma questão, para mim uma variável fundamental para explicar tudo isto, a implementação de uma conceção de medo. O que existe na escola é medo. Medo na escola, na rua, em qualquer lugar. Medo ligado à superproteção. E, por isso, não se dá a oportunidade às crianças para serem mais livres, terem mais mobilidade, mas acima de tudo terem mais capacidade de participação nos projetos educativos. Porque aprender implica que os adultos, educadores, pais sejam capazes de formular contextos desafiantes para as crianças. As crianças, quando lhes perguntamos o que é a escola, dizem-nos que é uma seca. E eles têm razão, porque não têm desafios. Está tudo pronto, é tudo imposto. As crianças não são convidadas a participar no processo educativo. São escolas desinteressantes que não se atualizaram em relação ao tempo que estamos a viver. 

“Os instrumentos digitais são fundamentais para a aprendizagem, como o professor é, mas devíamos desconstruir a sala de aula, porque se aprende em qualquer lugar. A cidade é a escola.”

Quer dizer que a escola deve ser um risco permanente?

Sim. O desafio deve ser esse. A criança deve ser confrontada com o risco. O risco que não é só físico, também é cognitivo, social e emocional. Se as crianças tivessem desafios no processo de aprendizagem, tivessem envolvimentos interessantes, eram convidadas a gostar de ir à escola e a gostar de aprender. Vão de carro para a escola, sentam-se, praticamente durante todo o dia, não se mexem. As crianças são perseguidas na escola, vivem prisioneiras. Não podem correr, não podem saltar, não podem subir às árvores, não podem jogar à bola, não podem fazer praticamente nada. Hoje é a própria escola que está a fomentar o sedentarismo. Veja-se que hoje as crianças, a partir do 2.º ciclo, saem da sala de aula e ficam nos corredores agarradas aos telemóveis a jogarem jogos diversos, principalmente os ecrãs lúdicos. A maior tragédia que está a acontecer na infância e na adolescência é o número de horas que as crianças ficam agarradas aos ecrãs lúdicos. Não direi que os instrumentos digitais não sejam importantes para a aprendizagem, são aliás fundamentais, mas não devemos digitalizar a escola. Os instrumentos digitais são fundamentais para a aprendizagem, como o professor é, mas devíamos desconstruir a sala de aula, porque se aprende em qualquer lugar. A cidade é a escola. O espaço exterior à escola deveria ser a continuidade do projeto educativo e devia-se ter metodologias muito mais robustas no sentido de seduzir as crianças a terem gosto em aprender.

Sei que não gosta do conceito de recreio, mas pergunto-lhe como os adultos se devem comportar no recreio?

Os adultos deviam brincar com as crianças e não sabem brincar. Nós temos auxiliares de educação que, apesar da sua formação, e são pessoas exemplares porque são os que melhor conhecem as crianças, mas também estão pressionados pelo medo. Têm medo dos pais, da superestrutura que os rege, e perseguem as crianças. Há espaços proibidos na escola, há crianças que são perseguidas, andam em fila, não podem fazer determinado tipo de brincadeiras, nem fazer certo tipo de experiências. A Escola tem esta contrariedade de querer educar as crianças, mas ao mesmo tempo maltrata-as. Há uma espécie de cultura penalizante do ponto de vista da liberdade de expressão. Nas matrizes curriculares dá-se pouca importância às atividades de natureza motora, lúdica, física, desportiva e até artística. Valoriza-se uma conceção de escolarização absoluta. A Escola é só escolarização. Essa é a espectativa dos pais, dos professores, do modelo, da tutela, no sentido de ter crianças a saberem responder aos testes para entrarem na universidade. Aliás, diria que uma das prioridades deste sistema educativo é discutir políticas de acesso ao Ensino Superior.

Fala em desconstruir a sala de aula. Como se faz?

Desconstruir a sala e aula como local de aprendizagem e procurar outros espaços que também são fundamentais. Não devíamos escravizar a avaliação em relação à aprendizagem. É outro erro enorme, é uma assimetria enorme. Vejam aquelas crianças que têm explicações, que são de estratos sociais mais altos, que andam nos colégios privados e aquelas que, eventualmente, não têm essa possibilidade. Portanto, não temos uma verdadeira dimensão democrática na atribuição dos mesmos valores e das mesmas condições para todos. A escola devia ser, por si, intrinsecamente democrática, cooperativa, participativa e também inclusiva.

“O professor não tem que impor, é um criador inteligente de contextos para as crianças aprenderem.”

E como se constrói essa escola?

Se libertássemos a escola para que os professores e os alunos tivessem mais liberdade para aprender, andar na escola não é aprender tudo à pressa. Nós somos o único animal que tem uma infância longa. Temos muito tempo para aprender. Mata-se a curiosidade, o entusiasmo, só se aprende se houver curiosidade e entusiasmo. As crianças têm uma capacidade de autoaprendizagem. Não é preciso termos esta visão mais ou menos tóxica, patológica de queremos que as crianças aprendam tudo rapidamente. As crianças têm o seu tempo para aprender. Na escola não podemos ensinar todos ao mesmo tempo, no mesmo lugar da mesma forma. Por isso devíamos fazer uma grande revisão do que é a escola no Século XXI. O professor não tem que impor, é um criador inteligente de contextos para as crianças aprenderem. Aprendemos isso com Montessori, Freinet, Vygotsky aprendemos isso com tantos outros pedagogos, e parece que não aprendemos nada. A escola precisa de trabalhar em rede, precisa de ter uma governança coletiva, de forma transversal, acabar com esse império de disciplinas em que os alunos são vítimas do saber específico de cada professor, e passar a trabalhar por projetos. A escola é feita de perguntas e não de respostas, é feita de vírgulas, não de pontos finais. O que conheço hoje amanhã ponho em causa. A própria investigação científica tem de se reorganizar e repensar os seus próprios modelos de funcionamento. A ciência é mesmo isso, é contestar, é pôr em hipótese aquilo que se desconhece. Não se pode ter uma cultura fechada, tem que se ter uma visão aberta, do ponto de vista filosófico, político, social, enfrentar o conhecimento como algo desconhecido, como uma brincadeira, algo lúdico, desafiante. Hoje as pessoas não têm fome pelo conhecimento. A escola não lhes dá [aos alunos] coisas para pensar, para se interrogarem, para eles se autoconhecerem, seduzirem pelo que é novo, diferente. É preciso criar seres humanos ativos preocupados e acima de tudo interrogativos. A curiosidade é a base do conhecimento e quando se mata a curiosidade mata-se tudo. E depois exigem-se coisas que não têm pés nem cabeça. 

O tempo, nas suas diversas dimensões, tem uma importância grande na escola.

É fundamental compreender o tempo em diversas dimensões. O tempo como vivência de experiências, o tempo biológico que implica etapas maturativas e crescimento do próprio sujeito. O perceber de uma criança de cinco anos é completamente diferente do perceber aos 10 ou aos 15. Há um progressivo desenvolvimento a todos os níveis. Em muitos casos se faz um ensino precoce. Não se dá tempo à criança de expressar os seus talentos. Esta coisa da Escola a tempo inteiro é o maior crime, porque as crianças a partir de determinada altura do dia, deviam ter tempo livre para brincar. Devíamos ter um novo modelo de organização nas atividades de enriquecimento curricular, das CAF (Centros de Apoio à Família) e dos ATL e de outras atividades de que os adultos se encarregam para manter as crianças entretidas até à noite. 

Como é que a escola deve lidar com o mundo virtual?

Tem de haver equilíbrio. Saiu agora um relatório da UNESCO que projeta as perspetivas evolutivas da educação para 2030 e de facto, esse relatório foi discutido a nível mundial, dá algumas linhas de orientação. Claro que o futuro é imprevisível, daqui a 30 anos ninguém sabe como é que isto vai estar, mas há algumas linhas. Em primeiro lugar devemos criar um novo contrato social com uma expressão fundamental que é a de trabalharmos juntos. É tempo de acabar com o egocentrismo e passar a trabalhar numa dimensão ecocêntrica.

E o que é a dimensão ecocêntrica?

Termos mais consciência ecológica dos valores da educação; formar cidadãos em vez de alunos; formar pessoas em vez de atletas ou músicos. Primeiro estão pessoas antes de produtos. Valorizar os cidadãos enquanto pessoas. Em segundo lugar, melhorar essa capacidade crítica das crianças. Há muitas metodologias que introduziram dinâmicas de trabalho, a regular dentro da escola, do ponto de vista de introduzir a Filosofia, para ajudar as crianças a saberem pensar, mas também a saberem resolver problemas e, ao mesmo tempo trabalharem em grupo. Não é preciso sentá-los lado a lado, para não copiarem, isso é um disparate. E também saberem comunicar que é uma questão fundamental. Portanto há saberes e competências que são fundamentais e que as novas tecnologias podem ser extremamente úteis. O professor tem aqui um papel de tutor, de moderador, criador de novas dimensões, criando contextos aliciantes para que as crianças aprendam de forma inteligente. Só se pode aprender se se participar, se se for o ator no próprio processo de aprendizagem.

“Muitos [professores] estarão cansados, exaustos, em burnaut, com a sua saúde mental afetada, mas há muitos professores extraordinários, que continuam a desenvolver o seu papel e a reinventar o seu dia a dia independentemente da burocracia que os assolou e da falta de tempo para o ato pedagógico.”

Fala de um novo papel para o professor. O que está mais ligado à escola tradicional, conservadora não receará perder alguma importância no processo educativo?

É difícil sair da sua zona de conforto. Há uma tendência para se ensinar da forma como se aprendeu e muitas vezes a formação inicial ficou ao lado. Mas obviamente que há muitos professores com coragem e muitos professores que têm capacidade de mudar. Muitos estarão cansados, exaustos, em burnaut, com a sua saúde mental afetada, mas há muitos professores extraordinários, que continuam a desenvolver o seu papel e a reinventar o seu dia a dia independentemente da burocracia que os assolou e da falta de tempo para o ato pedagógico. Os professores estão encharcados em tarefas que não lhes compete. Esse é mais um dos dramas do sistema educativo em Portugal, do pré-escolar ao ensino secundário. Os professores sentem essa mágoa de não poderem fazer experiências inovadoras ou porque o sistema não permite, ou porque há falta de trabalho de grupo, falta de dinamismo das equipas nas escolas, nos agrupamentos escolares. Professor mal pagos, carreiras desvalorizadas, não têm uma valorização social, e aí estamos numa crise onde ninguém quer ser professor.

Como encara a delegação de competências para as autarquias?

Espero, vivamente, que seja possível trabalhar em projetos educativos locais de acordo com a sua cultura, a sua paisagem, de acordo com o seu património artístico, cultural, físico, desportivo, etc. Os municípios podem vir aqui a ter aqui um papel essencial nessa relação com a escola e com os pais. E fazerem de facto projetos que tenham a ver com a cultura local. Por exemplo, projetos para conhecer a cidade, os museus, pode-se aprender em tudo. Porque a escola tem que se abrir, tem que acabar com os muros, tem que sair lá para fora. Acabar com esse sentido de estar preso. Aliás, num estudo que fizemos em 2015 em todo o Mundo verificamos que os presos têm mais liberdade nas duas horas de tempo de lazer, que as crianças do nosso tempo que têm menos de 1h30 de jogo livre, de brincadeira livre, porque têm tudo organizado. Libertem as crianças! Estão os pais presos, estão as crianças presas, os professores… o sistema tem de rebentar e reinventar um novo modelo, um novo paradigma. É preciso fazer um reset (reinicializar), começar tudo de novo para reinventar a escola em Portugal.

A escola em Portugal, e no resto do mundo?

Quando fazemos uma comparação do que se está a passar nos países dos 27, que compõem a Comunidade Europeia, que nós estamos um pouco atrasados nos países do sul. Fizemos uma comparação entre norte e sul da Europa e, de facto, a escola do norte da Europa já tem um outro ar fresco. Já tem um trabalho muito mais desenvolvido numa visão participativa, numa dimensão de respeitar os direitos das crianças, enquanto a sul da Europa temos outro tipo de problemas que não resolvemos: Ordenamento do território, planeamento urbano, a relação entre a escola, a família e o trabalho, como é a gestão do tempo familiar e do tempo escolar. Vemos as crianças a levantarem-se à sete da manhã e aparecerem à sete da noite em casa. Vemos os pais desesperados com tarefas, a levarem muito tempo para chegarem ao trabalho, a terem muitas horas de trabalho para sobreviver, portanto há aqui problemas que não permite analisar a escola como uma unidade, temos que ter uma visão ecológica para perceber este fenómeno. Com certeza que este problema é diferente desde a creche à universidade, agora toda esta dimensão temporal devia ser analisada criteriosamente de um ponto de vista político. A Assembleia da República e os partidos políticos devem cooperar no sentido de olharem para a qualidade de vida dos cidadãos portugueses e principalmente das crianças e das famílias e também alterarem no que seja possível uma escola nova num Mundo novo. 

E numa escola multicultural.

Claro. Não é nada fácil a um professor trabalhar no mesmo espaço com várias culturas, mas não é impossível. Agora precisamos de mudar o nosso foco para uma escola que deve arquitetar com outros instrumentos mais poderosos e robustos, principalmente uma escola democrática, participativa, cooperativa e acima de tudo dando oportunidades de aprendizagem mais ativa. É fundamental as crianças participarem no processo de aprendizagem. Devíamos ter uma escola que se baseia na criação de estereótipos, não rígidos, de respeitar a existência do nosso corpo, do ponto de vista das suas estruturas mais básicas, do ponto de vista da mobilidade corporal, mas também da complexidade cognitiva. 

“Em criança brinca-se às escondidas para ganhar amigos. Posso estar em oposição ao meu companheiro, mas fico amigo dele.”

E brincar cura essa crise na escola? 

Vivemos num momento de crise, de falta de identidade, de uma certa cultura neurótica na escola, que tem que ser curada pelos próprios atores. A melhor maneira de curar é brincar com a situação. Provavelmente a melhor cura para a escola atual era todos brincarem às escondidas. Vamos todos brincar às escondidas para nos reinventarmos. Porque o brincar às escondidas é algo fascinante. Vou à procura do outro, não sei aonde ele está. Tenho de procurar estratégias, tomar decisões para encontrar formas de o agarrar, de o identificar. Da mesma forma ele tem de se esconder, e o saber esconder-se é absolutamente essencial. Hoje as pessoas não sabem esconder-se, nem sabem perseguir. Perseguir e ser perseguido é algo que faz parte da humanidade, nós somos animais caçadores, coletores, isso ficou dentro de nós, são esses muitos mil anos de história que estão no nosso cérebro. Relegamos para segundo plano essa agressividade latente que temos que educar para uma dimensão de valores, de cidadania, de fair-play. Como é possível no século XXI termos a guerra que temos, como é que os políticos não se entendem à mesa. Em criança brinca-se às escondidas para ganhar amigos. Posso estar em oposição ao meu companheiro, mas fico amigo dele. A minha melhor recordação de infância era jogar à pedrada com os meus amigos e ainda hoje continuam meus amigos. Porque nós desafiávamo-nos. E quando nos desafiamos como seres humanos nós matamo-nos simbolicamente e ficamos amigos. E é isso que era preciso hoje fazer nas escolas, matarem-se uns aos outros simbolicamente para terem mais consciência de si e trabalharem em conjunto.

E é assim que devemos educar as nossas crianças?

Educar é dar os instrumentos para que a criança saiba sobreviver e para que a criança saiba reorganizar-se e reaprender e não repetir mecanicamente, mnemonicamente. É dar-lhe instrumentos que são assimilados de uma forma inteligente para os saberem utilizar de uma forma poderosa, inteligente perante a situação inevitável e inesperada. Educar é educar para o inesperado, é educar para o incerto. Brincar é isso. Quando a criança brinca não sabe o fim, tudo vai sendo uma construção, não se vê pelo produto, vê-se pelo processo. E é como a educação devia ser. Nós só aprendemos se houver envolvimento emocional e sentimental. Corpos ativos dão cérebros ativos através de emoções e pensamentos, como diz António Damásio.  A escola portuguesa ainda vive um modelo demasiadamente tradicional, um modelo em que separa o corpo e o cérebro. Na escola portuguesa em grande parte dos casos o cérebro entra na Escola, mas o corpo fica à porta. As crianças não se podem mexer. Têm que estar sentadas, quietas e caladas e obedientes. Quando a Escola não pode ser esta versão cartesiana de um corpo para o lado e o cérebro para o outro. O corpo é só um, aprende-se com o corpo todo, não se aprende por partes. Aprende-se em aulas separadas, conhecimentos separados, o que é isso? 

O Mundo não é assim.                                    

Não, o Mundo mão é assim. Há que conquistar uma visão holística do ensino, não é o laisser fair, essa visão holística é a mais difícil de todas. É conseguir estar com os meus alunos, com as minhas crianças, com os meus adolescentes, interessados, em conjunto a construir, a saber responder a perguntas, a saber pesquisar, a saber investigar fenómenos, e fazer projetos para que eu possa ir aprendendo as coisas em conjunto e de forma integrada. Lamento dizer, mas a escola tradicional não ensina as crianças a ter uma compreensão do Mundo.                

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