Entrevista

Arquitetura

“Sindicato como resposta à necessidade de organização, solidariedade e luta consequente”

Trabalhadores dependentes representam já cerca de 87% do conjunto total de trabalhadores em arquitectura.

O Movimento dos Trabalhadores em Arquitetura surgiu como resposta à degradação das condições laborais no setor. Hoje, prepara-se para criar um sindicato que defenda as reivindicações destes trabalhadores. Cristina Pinho, Diogo Silva e João Ferreira responderam coletivamente à Voz do Operário sobre um movimento que cresce em todo o país.

Como é que surgiu o Movimento dos Trabalhadores em Arquitetura (MTA)?

O MTA surgiu no Porto, após um debate com cerca de 30 trabalhadores em arquitetura que se realizou em Fevereiro de 2019 no Café Duas de Letra para discutir o acesso e exercício da profissão assim como os direitos dos trabalhadores no setor da arquitetura. Daqui, surgiu um grupo de discussão que apontou as razões que levaram à criação do movimento.

Depois de todas as dificuldades impostas pela última crise, quase metade dos arquitetos viu-se forçado à emigração ou ao desemprego. Esse contexto alterou-se posteriormente num setor que passou de níveis de desemprego na ordem dos 20% para uma situação de quase pleno emprego.

Contudo, a mais trabalho não corresponderam melhores condições laborais: permaneceram e potenciaram-se os vínculos precários, a rotatividade de estagiários, as horas extra frequentes e não remuneradas, assim como os baixos salários que não sofreram alterações significativas.

Tudo isto teve particular importância na criação do Movimento enquanto organização coletiva de trabalhadores no setor da arquitetura, assumindo desde o princípio que a criação de uma plataforma de natureza sindical seria condição imprescindível à transformação da nossa realidade laboral. Isto é, a convicção de que a atual realidade de trabalho e até da própria arquitetura não se transformará de forma efetiva a partir de ações particulares ou de apelos à consciência individual dos arquitetos, mas antes através da organização coletiva e da ação concertada.

Esses são os vossos principais objetivos?

Assumimos no nosso manifesto, aprovado em Assembleia, que os objetivos do MTA passam pela organização dos trabalhadores em arquitetura com a finalidade de garantir o cumprimento da lei, a formação dos trabalhadores e a valorização do seu trabalho através de ações concretas de reivindicação e do apoio na resolução de conflitos laborais.

Desde essa altura que apontamos a necessidade de criação de instrumentos de regulação das condições de trabalho como tabelas salariais ou contratos coletivos de trabalho, garantias de progressão de carreira que acompanhem as competências e responsabilidades dos trabalhadores e reforço da formação contínua que permita o desenvolvimento das suas qualificações e materialização das suas expetativas. 

Para a concretização destes objetivos, a questão central seria a da construção de uma plataforma de representação, proteção e defesa de todos os trabalhadores e restava portanto a definição do seu modelo. Com o crescimento substancial do movimento nos últimos dois anos, e com a concretização de frentes de trabalho que procuram responder a esses objectivos apontados, tornou-se evidente para nós que a plataforma necessária seria um sindicato. 

E os trabalhadores desta área sentem a necessidade de um sindicato?

De forma geral os trabalhadores em arquitectura conhecem há muito tempo promessas e proclamações inconsequentes em torno da defesa de uma prática com responsabilidade social, mas só reconhecem a irresponsabilidade de instituições que os deviam proteger e de empregadores que não garantem dignidade nem respeito pelo seu trabalho.

Num sector altamente desagregado o trabalho do MTA foi tornando evidente a urgência da criação de um sindicato como a resposta possível e eficaz à necessidade de organização, solidariedade e luta consequente.

Esta conclusão tornou-se ainda mais óbvia quando concluímos recentemente, pelo inquérito que conduzimos ao sector, que os trabalhadores dependentes representam já no nosso país cerca de 87% do conjunto total de trabalhadores em arquitectura – 63% declaradamente assalariados e 24% falsos independentes. É nossa convicção que a força dessa presença nos locais de trabalho tem de resultar em capacidade reivindicativa e de transformação real das condições em que trabalhamos. Outro dado interessante a este respeito chegou-nos por Alfredo Campos, sociólogo e investigador no CES-Coimbra com quem conversamos no primeiro episódio do nosso podcast, e cujos resultados preliminares do inquérito à profissão de arquitecto que realizou no âmbito da sua investigação permitem concluir que cerca de dois terços dos arquitectos concorda bastante ou totalmente com a necessidade de uma organização sindical em arquitetura. Mas de uma forma mais concreta, acreditamos que a participação de cerca de duzentos trabalhadores na nossa última assembleia, ou a participação com o MTA de dezenas de trabalhadores nas manifestações do passado 1º de Maio, no Porto e pela primeira vez em Lisboa, provam que essa força existe e que a vontade de lhe dar consequência é amplamente partilhada.

Quem é que vai abranger?

O MTA, bem como o futuro sindicato, dirige-se a todos os trabalhadores do setor da arquitetura: arquitctos, arquitetos paisagistas, urbanistas, estejam estes inscritos ou não na sua ordem ou associação profissional, estagiários no decurso da sua formação, desenhadores, maquetistas, produtores de imagens 3D, orçamentistas e demais técnicos especialistas da área. 

Entendemos que a valorização da profissão está intimamente ligada à valorização das condições laborais de todos os trabalhadores. E acreditamos que a nossa capacidade de transformação não decorre da qualificação profissional de uns ou de outros, mas antes da força coletiva que consigamos construir com aqueles com quem partilhamos local de trabalho e com os quais teremos capacidade de exigir aquilo a que temos direito.

Mas não deixa de ser curioso… Há quem queira passar a ideia de que os sindicatos são algo ultrapassado.

Estamos conscientes de que nas últimas décadas, o desenvolvimento das forças produtivas, dos instrumentos de regulação do trabalho e das próprias condições em que se desenvolve esse trabalho sofreram alterações substanciais que colocaram os sindicatos numa posição de enorme dificuldade e até mesmo de enfraquecimento de influência.

Como construir momentos de discussão coletiva sólidos perante uma progressiva desregulação de horários e dispersão de trabalhadores num tecido empresarial onde predominam as pequenas e micro-empresas (em arquitetura quase 70% dos locais de trabalho têm menos de 10 trabalhadores), como propôr instrumentos de regulação das condições de trabalho eficazes perante a restrição e até mesmo a supressão de instrumentos de proteção coletiva (como o princípio do tratamento mais favorável ou a caducidade dos contratos coletivos), como defender os nossos direitos num contexto em que abundam contratos a prazo, recibos verdes, períodos experimentais, proliferam falsos estágios, trabalho temporário e, agora mais recentemente, a chamada uberização do trabalho? Estamos conscientes que certamente terá sido e que continua a ser muito difícil para qualquer sindicato conseguir acompanhar a rapidez destas transformações e construir respostas eficazes a um contexto tão difícil. Certamente terá havido erros nesse processo de adaptação e de ajuste de respostas e métodos e essa é, desde as primeiras reuniões, uma preocupação nuclear das discussões levantadas pelo MTA. 

Por isso, desde o início que desenvolvemos uma contínua investigação sobre que tipo de plataforma seria mais adequada para o nosso setor. Essa investigação aliada à experiência que temos ganho no acompanhamento de denúncias, de pedidos de esclarecimento, no apoio à resolução de conflitos entre trabalhadores e patrões; e ainda os testemunhos de dirigentes de várias organizações com quem temos marcado reuniões ou a quem temos feito “entrevistas” fomos entendendo, pela prática, que de facto a formalização de um sindicato é uma ferramenta essencial na defesa dos trabalhadores e de mudança do paradigma das relações de trabalho no setor. 

Acham que a Ordem dos Arquitetos não responde às reivindicações do setor?

Ouvimos dirigentes da Ordem dos Arquitectos falar recorrentemente de honorários, de concursos, de direito à arquitetura mas em momento algum se fala de aumento de salários, do direito à estabilidade, ao descanso, ao lazer e a uma vida digna para quem trabalhe em arquitetura. E isto é para nós sintomático de um claro desfasamento das prioridades desses dirigentes face às da vastíssima maioria de quem produz arquitetura. Talvez por desconhecimento ou por desprezo dessa realidade largamente assalariada e precarizada do trabalho neste sector.

No entanto, a Ordem dos Arquitetos (OA), como todas as ordens profissionais, tem um conjunto muito bem definido de competências atribuídas pelo Estado. As Ordens são associações profissionais de direito público assentes no objectivo de autorregulação das respetivas profissões e na defesa e salvaguarda do interesse público. 

As Ordens Profissionais têm poder de ação exclusivamente junto dos seus inscritos. Podem e devem garantir que os seus associados cumprem o código deontológico e que cumprem a lei, cabe-lhes o controlo do acesso e do exercício da profissão mas está-lhes, contudo, vedado o desempenho de funções sindicais pelo risco de corporativização que tal intersecção de competências implicaria. O mesmo acontece com outro tipo de associações profissionais, como é o caso da Associação Portuguesa dos Arquitectos Paisagistas, que não sendo Ordem acaba por reflectir as mesmas limitações da OA.

Desta forma, nem a OA nem a APAP têm um papel de organização de trabalhadores e o seu papel legal é muito limitado face às respostas que urge obter, agravando-se pelos conflitos de interesse que existem entre os profissionais que representam. Por estas razões, não lhes é possível responder a todas as reinvidicações do setor, particularmente aquelas que deram origem ao MTA. 

E em que parte desse processo de construção do sindicato estão? Há muita adesão?

O nosso plano de ação prevê várias etapas e várias frentes de trabalho com um calendário traçado para um ano, ou seja, até ao início de 2022.

As medidas restritivas impostas pela pandemia tiveram um impacto significativo no desenvolvimento do plano para o ano de 2020 e continuam a ter no plano que temos montado. O objetivo central traçado será o de realizar uma série de reuniões e plenários, descentralizados; umas reuniões mais pequenas que sirvam de pontos de partida a uma aproximação local, tentando criar pontes um pouco por todo o país e outras maiores, com um objetivo de maior exposição pública, tentando chegar a mais gente.

A primeira etapa do plano pretendeu assinalar o segundo aniversário do MTA, em fevereiro deste ano, em três frentes: divulgação dos resultados do inquérito que lançámos o ano passado durante a primeira vaga da pandemia (com uma receção bastante ampla nas redes sociais e em órgãos de comunicação social); reunimos com a ACT com o objectivo de sensibilizar os inspetores para a realidade do setor e estabelecendo um canal de comunicação direto com o MTA; e realizámos uma campanha de colagem de cartazes sobre direitos em teletrabalho em zonas de maior aglomeração de escritórios.

A segunda etapa consistiu na divulgação do objetivo de formar um sindicato a propósito da nossa participação nas manifestações do 1º de Maio. Juntaram-se às faixas, bandeiras e cartazes do MTA cerca de 50 pessoas nas ruas do Porto e pela primeira vez em Lisboa

Estamos agora na terceira etapa do plano, centrada na região de Lisboa, onde já realizámos duas reuniões preparatórias – a primeira em Setúbal e a segunda em Lisboa, em que participaram cerca de 30 pessoas. Tínhamos previsto um grande plenário em Lisboa para o final de julho que tivemos de adiar pela evolução da pandemia, mas que está apontado para dia 9 outubro. 

Estas reuniões terão o objetivo de chegar a um grande número de trabalhadores e discutir coletivamente a pertinência de “um sindicato para quê? um sindicato para quem? e como será o nosso sindicato”, o sindicato de todos os trabalhadores em arquitetura.

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