Entrevista

Nuno Ramos de Almeida

“O leitor, o espectador, deve ser por definição crítico e desconfiado.”

Nuno Ramos de Almeida é jornalista há mais de trinta anos. Passou pelas principais redacções nacionais e conhece bem o sistema de produção mediática. Falámos com ele também a propósito da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, onde critica o papel de jornalistas que se assumem propagandistas, esquecendo as regras do jornalismo. Reflecte sobre a função que o jornalismo pode e deve ter no conhecimento das contradições da realidade e dos perigos de uma sociedade avessa aos factos e à crítica.

O senador Joseph Maccarthy, referindo-se a um jornalista que questionava a lógica de os comunistas serem os inimigos dos EUA, disse um dia “Se o Sr. Murrow está a dar conforto aos nossos inimigos, não deveria ser permitido que ele entrasse nas casas de milhões de americanos.”. Dar “conforto ao inimigo” tem sido um linguajar presente em muito do nosso sistema mediático e de informação. É uma medida de aferição de jornalismo ou de propaganda?

Acho que o senador em questão não era medida de jornalismo. E se calhar nem sequer era medida propaganda. Era medida da repressão a ideias que fossem diferentes. Era o senador que dirigia o chamado Comité de atividades anti americanas que permitia ou pretendia detectar toda a gente que tivesse ideias comunistas e progressistas que estivessem colocados em cargos ou na comunicação social ou na indústria de espetáculo e essas pessoas tinham que responder às suas perguntas. Se invocavam a emenda da liberdade de opinião ou a outra emenda que diz que não podem responder para não ser culpabilizadas, tinham aí uma escapatória mas perdiam o emprego. Se afirmavam que eram comunistas eram-lhes pedidos os outros nomes das pessoas comunistas e se não o fizessem eram acusados de desrespeito ao comité, eu acho que era nível Senado, e condenados. Assim, um conjunto muito grande de pessoas que tinham ideias progressistas foram sucessivamente afastadas, foram para o desemprego, foram ostracizadas, e portanto criou-se um clima verdadeiramente de caça às bruxas fazendo equivaler pessoas que têm ideias diferentes a inimigos da nação. Como se a nação fosse apenas uma hipótese e não estivessem em discussão pela sua população e pelas pessoas em geral. Não creio que fosse uma medida do jornalismo. Creio que, de facto, era uma medida de repressão. E essa ideia de que na cobertura do jornalismo há um inimigo e há o nosso lado e nós temos que corrigir os erros ortográficos dos press releases [comunicados de imprensa] da embaixada do nosso lado, publicá-los sem nenhuma pergunta e combater o inimigo não tem nada com jornalismo. E isso não tem a ver com jornalismo em circunstâncias nenhuma. Como é óbvio, há casos limite. Quando estou a fazer uma reportagem sobre os campos de concentração na Segunda Guerra Mundial, a verdade não é estabelecida por duas opiniões diferentes e de dois lados, porque o carrasco e o torcionário da Gestapo não têm o mesmo peso nem o mesmo valor nem estabelecem a verdade como a vítima, o comunista, o judeu, o cigano, que morreram nos campos de concentração.

“Não está em causa que houve um invasor e um invadido. Mas isso não quer dizer que a guerra se resume a isso.”

Mas isso não significa que eu, ao fazer uma cobertura, não tenha de o fazer nas regras do jornalismo, o que significa verificar factos, ter várias opiniões, e quando se publica determinada coisa que é dada por uma fonte, identificar essa fonte. O que está a acontecer na cobertura actual da guerra é que os jornalistas publicam propaganda e coisas sem sequer dizerem que lhes foram dadas por um lado do conflito. É divulgado como se fosse a realidade, realidade que eles não viram, que não puderam aferir, limitam-se a repetir e sentem-se legitimados por isso, porque integraram que estão a fazer uma função cidadã de derrotar um dos lados da guerra. Não está em causa que houve um invasor e um invadido. Mas isso não quer dizer que a guerra se resume a isso e que possas fazer uma cobertura com base num conjunto de dias temáticos de propaganda e de alegados factos que têm como efeito a total diabolização do “outro” e não apenas daqueles que deram ordem da invasão da Ucrânia, mas como nós vamos verificar, dos próprios russos. Actualmente temos russos que são perseguidos, por serem russos são considerados suspeitos à partida, temos escritores russos que viveram no século XVIII, XVII, que passaram a ser culpados por uma guerra sobre a qual não têm nada que ver e que podem não ser publicados e editados, podem ser censurados e isto tem a ver com esta divisão do mundo em dois lados e o jornalismo achar-se no direito e no dever de fazer parte das Forças Armadas de um dos lados e não da parte do jornalismo.

Nesse sentido, achas que podemos falar numa espécie de neomccarthismo ou é uma comparação exagerada?

Acho que antes de haver o macarthismo teria havido fenómenos do mesmo tipo. Vimos de uma situação muito complicada. Tivemos uma crise financeira, tivemos uma pandemia em que o medo do desconhecido, o medo da morte, aumentou em muito a irracionalidade, e neste momento temos uma guerra e houve muito daquilo que estava no subsolo, dos piores sentimentos de um conjunto de gente e dos maiores ódios de um conjunto de gente que foi libertado. Há uma espécie de libertação da palavra fascista, da palavra racistas e homofóbica, de coisas que anteriormente as pessoas teriam vergonha de dizer. Que do meu ponto de vista está obviamente associado a este conjunto de acontecimentos mas também a um outro conjunto de acontecimentos que é existência de redes sociais. As redes sociais, pela sua estrutura, tendem a polarizar opiniões, a simplificá-las, e a agregar maluquinhos. Um maluquinho sozinho a dizer que a terra é plana é uma coisa, quando ele se encontra numa bolha de 100000 é outra, e com acesso ao WhatsApp para difundir para 2 milhões é outra, e portanto isto tudo junto cria um caldo que torna difícil fazeres qualquer crítica porque no momento em que criticas és pró-putinista, não respeitas o sofrimento das mulheres e dos homens da Ucrânia quando, enfim, acho que os poderosos nos seu geral estão relativamente pouco preocupados com a Ucrânia.

“Acho que os poderosos nos seu geral estão relativamente pouco preocupados com a Ucrânia. Aliás, estão muito empenhados a combater a Rússia até ao último ucraniano. ”

Aliás, estão muito empenhados a combater a Rússia até ao último ucraniano. E isso é o que o que se está a verificar. O respeitar a população da Ucrânia e da Rússia contra os poderes que decidiram esta guerra significa, no meu entender, humanizar as pessoas, tentar dares-lhes voz contra esta guerra e permitir que haja de facto uma negociação de paz, algo que consiga um entendimento entre aqueles dois povos, apesar daqueles dois governos.

Voltando a  essa parte de que estavas a falar das críticas e de como é que as pessoas que criticam uma narrativa dominante são encarados não é possível também encarar a crítica a essa crítica como mera crítica e não como perseguição, como tantas vezes tem sido alegado? Qual é que é a diferença? Achas que se pode falar na construção de um consenso forçado ou de uma narrativa quando, apesar de tudo, e das diferenças há direito a espaços de crónica nos jornais, algumas pessoas críticas e com visões não dominantes vão tendo espaço. Achas que faz sentido falar num ambiente condicionado?

Eu posso ver isso por mim. 500 vezes deixo de escrever coisas para não ter a chatice de passar uma semana a ter que responder que não sou putinista, que condeno a invasão, que não sou favorável à guerra, mas que isso não me faz ter que declarar que o Batalhão Azov é um grupo de monjas da caridade, ou ter que declarar que qualquer declaração que vejo na comunicação social é verdade, quando objetivamente é mentira. Quando eu vi o famoso “piloto fantasma” que abatia dezenas de aviões russos, sabia que era mentira, que era uma coisa de propaganda. Ontem, o próprio exército ucraniano veio reconhecer que criaram aquela figura para moralizar as suas tropas. O meu problema não é que o exército ucraniano crie figuras para moralizar as tropas. O meu problema são as dezenas de notícias de jornalistas sérios, de órgãos de comunicação sociais sérios, a falar do “piloto fantasma”. Eu não tenho nenhuma dúvida que haja violações na guerra, crueldades sobre os civis, mas quando tenho adquiridas como verdadeiras alegações de crimes e nunca vistas e verificadas e outras abafadas porque são de sinal contrário… É uma das formas da guerra ser feita, e isso vê-se, por exemplo, quando falamos da Segunda Guerra Mundial. Falamos numa ideia nossa, do mal absoluto que seriam os nazis e o outro lado combatia o mal absoluto. A verdade é que os Aliados cometeram inúmeros crimes nessa guerra, apesar de terem a posição correta. Quando os soviéticos libertaram Berlim, houve dezenas, centenas de mulheres que foram violadas. Quando os Estados Unidos bombardearam Dresden, mataram centenas de milhares de pessoas. Quando largaram duas bombas nucleares, sem nenhuma razão militar, mataram milhões de pessoas. E no entanto, estavam do lado correcto.

Em guerras onde não há um mal tão absoluto e uma força que se opõe a um mal tão absoluto, que são guerras entre potências capitalistas e imperialistas, as coisas são ainda mais diferentes. Se formos analisar a Primeira Guerra Mundial, verificamos que há sempre o mesmo menu adoptado: o outro lado tem muitas baixas e nós temos poucas baixas, o outro lado faz crimes de guerra e nós não, o outro lado viola e mata velhos e crianças e nós não, e assim sucessivamente, porque um dos aspectos necessários numa guerra, para mobilizar uma população contra outro povo é torná-lo não normal. Verificámos isso recentemente nas guerras nos Balcãs, em que se veio a verificar que grande parte dos massacres que eram atribuídos aos sérvios, não eram dos sérvios. Houve muitos massacress que foram feitos por bósnios, por croatas, etc, comportamentos de violações, de genocídio de populações. Infelizmente foram generalizados e muitos deles até inventados para justificar a intervenção estrangeira das tropas da NATO.

“Um dos aspectos necessários numa guerra, para mobilizar uma população contra outro povo é torná-lo não normal. “

O problema do jornalismo é que o jornalismo tem que dizer a verdade e tem que tentar chegar a essa verdade, o que não é fácil numa situação de guerra num país onde existe uma barreira linguística para os jornalistas que não são de lá, mas é preciso que os jornalistas tenham mais cuidado, que não reproduzam a primeira imagem que vêem. Uma das coisas que mais me irritou, foi aquela célebre notícia, muitas aspas, de que as mães da Ucrânia escreviam nas costas dos filhos o seu nome o seu contacto, porque se houvesse um bombardeamento e alguém visse as crianças, teriam lá o nome e o contacto dos familiares. Foi uma imagem numa rede social. A partir dessa imagem – não sei se a notícia é verdadeira noutro sítio qualquer – mas nessa imagem as coisas estavam escritas com alfabeto latino. Que eu saiba, na Ucrânia vivem ucranianos que usam alfabeto cirílico e a probabilidade de a criança depois de um bombardeamento ser encontrada por ucranianos deve ser relativamente maior do que ser encontrada por um jornalista do New York Times ou de algum país de alfabeto latino.

“O papel do jornalista é fazer notícias que são o mais verdadeiras possíveis. E isso é diferente de ser combatente de um dos exércitos.”

Obviamente, a jornalista foi chorar baba e ranho simpaticamente porque sentiu empatia naquele caso. Lamentavelmente, aquele caso era um aspecto de propaganda. Até podia ser um aspecto de propaganda que não tinha passado pelo Ministério de Propaganda ucraniano. Tinha sido alguém que resolveu por aquela imagem, como utilizaram imagens de jovens palestinianas como se fossem jovens ucranianas, crianças palestinianas a oporem-se a soldados israelitas e que foram presas, com 6 anos e passaram a vida na cadeia, mas como eram loiras, passaram por crianças ucranianas. Há um conjunto de mentiras que vamos comendo nesta guerra, que não justificam essa guerra, que não têm que nos fazer concordar com esta invasão, mas o papel do jornalista não é multiplicar mentiras porque acha que está do lado certo. O papel do jornalista é fazer notícias que são o mais verdadeiras possíveis. E isso é diferente de ser combatente de um dos exércitos.

E num contexto em que muita gente só lê títulos ou leads e, por outro lado, o próprio jornalista não produz, muitas vezes, esses títulos, não faz a edição, não escolhe as imagens ou destaques. Como é que é feito esse processo de elaboração da notícia e como é que são feitos este tipo de escolha editoriais?

Sou jornalista há muito tempo e em redacções. Essa teoria de que, em alguns meios, há uma espécie de hierarquia do mal, que reproduz um conjunto de notícias deturpadas, através de ordens que são dadas aos jornalistas, não existe. O que acontece é que existe um consenso ideológico de que há um lado bom e um lado mau e tudo o que vem a favor deste lado bom, neste caso a Ucrânia, é verdade. E tudo o que vem do lado mau, é mentira. E os jornalistas, como não estão lá, e mesmo quando estão, estão muito condicionados, o que fazem é reproduzir ispis verbis essas informações. Acresce que há uma alteração do padrão de produção do jornalismo. Antigamente as pessoas faziam jornais, que eram diários, semanários. Agora têm o online, têm de estar a debitar ao minuto, por causa das audiências, notícias ou escritos, porque aquilo não são notícias. E quanto mais emocionante e mais dramática for a notícia, mais as pessoas vão clicar. Quando é uma violação, quando são criancinhas que são empalhadas, o mais disparatado que for, mais gente vai clicar e isso ajuda a que essas ditas notícias, desse género sensacionalista, tenham uma circulação ainda maior nas redes sociais, tenham mais audiência e se tornem omnipresentes. Esses títulos, essas entradas são feitas normalmente pelos jornalistas que fazem a notícia, embora possam ser corrigidas pelos editores para serem mais vendáveis. O drama desta coisa é que tu não podes dizer uma coisa que diz o Ministério. O Ministério das Forças Armadas da Ucrânia chegou a enviar imagens de jogos de vídeos como provas de abates de aviões russos. Portanto não é propriamente a coisa mais confiável da Terra e tem objetivamente um interesse, que é o interesse legítimo de proteger as suas forças, de lhes dar ânimo, dizer que estão a ganhar a guerra, e para isso usa todos os expedientes necessários e não apenas aqueles que são éticos. A mesma história em relação ao Ministério russo. Quando diz que foi uma avaria na cabine que provocou um incêndio e que afundou o barco, o cruzador de Moskva, eu se fosse propagandista russo preferia assumir que foram dois misseis, em vez de um tipo que meteu os talhares dentro do microondas, porque isso dá um nível de amadorismo e de incompetência que é bastante pior que ser abatido. Mas todas essas fontes são fontes interessadas. Os russos estão interessados em dizer que é impossível os ucranianos abaterem um barco daquele tamanho e os ucranianos multiplicam por 10 ou por 20 as vítimas dos russos e todos os mortos ucranianos são civis. Há coisas em ambos os lados do conflito que os jornalistas têm de desconfiar e que são propaganda. É óbvio que há vítimas civis, não porque os russos tenham feito fogo propositadamente a vitrines civis, mas quando um exército que é menor do ponto de vista do seu armamento se defende, defende-se no meio de uma cidade onde existem civis. Não se vão concentrar todos num campo de futebol para que os russos os bombardeiem isoladamente. E é óbvio que os russos ao bombardear têm que bombardear civis. Aquilo que é cruel, e irracional e que tem que acabar é porcaria da guerra. Agora, uma coisa são as duas partes que estão em conflito, outra coisa são jornalistas. Infelizmente, isso não existe em Portugal e duvido que exista nos jornalistas ocidentais. Como disse o provedor do leitor do Público, Barata-Feyo, dizem que na Rússia só vêem propaganda mas nós, aqui, só vemos propaganda, e o problema é que temos jornalistas que acham que fazer propaganda é a obra de arte maior do jornalismo, e jornalistas que acham que denunciar colegas que fazem trabalho mostrando o outro lado, pondo em perigo a sua vida, é uma função que estão a fazer para o jornalismo, quando essas pessoas deviam ser escorraçadas do jornalismo, ao por em causa a segurança de camarada seus.

Nessa questão do recurso à mentira e deturpação dos factos, estavas a falar de factos que ocorrem no terreno da guerra, mas isso também está a ter episódios em Portugal. Estava-me a lembrar da situação recente da Câmara Municipal de Setúbal, onde se verificam coisas muito fáceis de aferir como a errada referencia ao presidente como comunista, ou os próprios esclarecimentos que a câmara emite são ignorados nas notícias.

Aqui há um segundo dado. Existe, já há muito tempo, um alinhamento generalizado, do ponto de vista editorial e da classe jornalística, porque ela não é apenas constituída por diretores, que tem uma determinada ideia do Partido Comunista e essa ideia, para eles, é a realidade. Tudo o que se afaste dessa cartilha, não publicam. Tenho lido em vários jornais que grande parte do apoio que tem sido dado a populações ucranianas, em França, Itália, Espanha, são dadas por associações eslavas, que têm russos, ucranianos e outras pessoas que têm capacidade de entender a sua língua. Por um lado, a nossa imprensa elogia os russos que arriscam 15 anos de cadeia ao manifestarem-se contra a guerra. Não hão-de elogiar russos, muitos deles cidadãos portugueses, que ajudam, nas suas associações, a que os ucranianos tenham acolhimento, tenham direito a casa, tenham direito a educação e tenham direito a trabalho? Ser russo passou a ser um pecado em si? Um defeito de caráter, ou são pessoas? Para haver um imbecil que diz que todos as pessoas de associações são espiões pró-Putin, essa pessoa tem de provar o que diz. Eu estive três anos no Luxemburgo. As associações de portugueses têm todas contacto com Embaixada de Portugal. São os membros das associações de portugueses membros dos serviços secretos portugueses? Não são. 

De norte a sul do país chegaram 35000 ou 36000 pessoas, portanto as câmaras usaram as associações que tinham essas potencialidades. Essa associação, pelos vistos, foi disponibilizada pelo ACM [Alto Comissariado para as Migrações] e, até prova em contrário, é uma associação honesta que quis participar. Não é a embaixada da Ucrânia, nem uma determinada associação de ucranianos com uma determinada tendência política que, aliás, acha normal pedir a ilegalização de partidos portugueses, que determina quem são as pessoas que são portuguesas e que trabalham na Câmara de Setúbal. Até podiam não ser portuguesas mas no caso em concreto era. Era funcionária daquele serviço, as perguntas que fez constam dos documentos que são pedidos, não fez nem mais nem menos, e também não estava sozinha a fazê-lo, portanto obviamente que esta notícia não é propriamente uma notícia, é uma uma tentativa, porque se esta associação, segundo me dizem, participa desde a câmara de Gondomar, até outros locais, porque não fizeram essa notícia sobre a Câmara de Gondomar? Havia claramente um objetivo e o guião é sempre o mesmo: o PCP está ao lado da invasão, o PCP é cúmplice do Putin, o PCP recebe não sei o quê. Aliás, o Putin e as forças armadas russas devem ter um interesse enormíssimo em saber de onde é que essas pessoas que emigraram para Portugal são, porque deve ser um objetivo estratégico militar da maior importância.

Voltando aqui um bocado atrás na análise do sistema mediático e de produção de informação, tu achas que faz sentido procurar um entendimento mais estrutural do papel dos média na geopolítica. Porque é fácil cairmos numa uma explicação quase conspiracionista, mas a verdade é que se assumirmos que o capital subsume toda a produção e também a produção do consenso, esse trabalho, como qualquer trabalho no capital, é alienado. E os produtores não conhecem o processo, nem os fins de tudo aquilo que fazem. Isto transposto para comunicação social, com as devidas diferenças, pode ser interessante para não cair numa análise demasiado moralista?

Acho que há uma tendência de vitimização da esquerda e dos comunistas em relação à comunicação social, que objectivamente se baseia num tratamento menos sério das suas posições, mas que muitas vezes também não reflete a forma pouco trabalhada com que lidam e comunicam com a comunicação social. Claro que um partido que se vê de forma diferente tem uma certa dificuldade de se inserir num sistema mediático, porque ele tem componentes de espetáculo que, do ponto de vista desse partido e dessas forças políticas, são contraditórias com sua identidade, mas há formas mais inteligentes de fazer essa comunicação.

“A diminuição das condições de trabalho dos jornalistas (…) tornam o jornalismo muito pior.”

Sobre a questão da comunicação social, é óbvio que os jornalistas são pessoas e na sua grande maioria pensam que estão a fazer o melhor trabalho, só que as pessoas inserem-se de facto em determinadas culturas de trabalho, editoriais, determinados órgãos de comunicação social, que têm uma determinada propriedade, o que não quer dizer que nós não tivéssemos tido, mesmo com esta estrutura capitalista, melhores condições para produzir bom jornalismo. A diminuição das condições de trabalho dos jornalistas, o aumento das cargas horárias, a entrada do online como uma espécie de linha de montagem, que tem que produzir não sei quantas peças ao longo do tempo e logo é difícil a sua verificação, a diminuição das margens de lucro das empresas de comunicação, o que faz com que os patrões tenham como primeira reacção o corte abrupto do investimento e da qualidade, tornam o jornalismo muito pior. E também as condições salariais e de inserção no mercado de trabalho dos próprios jornalistas. Se o jornalista é reputado, ganha bem, está no quadro, tem um código deontológico que lhe permite dizer à sua chefia de redacção que não faz determinada notícia. Se actualmente quase todos, mesmo aqueles que estão quadro, estão na prática passíveis de serem despedidos, a sua capacidade de dizer não é mais problemática. Não quer dizer que numa cultura jornalística em que os jornalistas podem dizer não às chefias e às administrações, isso não continue a acontecer. Quer dizer que se torna cada vez mais difícil, e para as novas gerações que não viveram essa cultura, que ganham o salário mínimo e que se calhar nunca deixarão de ganhar um salário próximo do mínimo, numa altura em que há milhares de licenciados nesta área a sair todos os anos, a capacidade de ter esta memória de resistência e a capacidade económica de serem independentes e poder dizer não é menor. Há aqui uma espécie de tempestade perfeita que faz com que o jornalismo seja muito diferente, mas não há nenhuma ordem de serviço, na maior parte das redacções de jornais que eu conheço e nas redacções em que eu estive. O que acontece é que a maior parte dos jornalistas não percebe, nem quer perceber, por exemplo, o que o PCP diz, e na cabeça deles dizem sempre uma coisa, é sempre mentira, é sempre errado, são muitos chatos e não há tipos do PCP a comentar porque são todos chatos e não dizem aquelas coisas brilhantes como dizem os tipos como o Pedro Marques Lopes. Em geral é isso que acontece. Não foi preciso uma ordem de serviço, há um consenso ideológico na maior parte dos jornalistas sobre isso, que se alicerça obviamente num viés ideológico, mas que também é agravado por uma histórica incapacidade de partidos como PCP conseguirem perceber o que é que são os fluxos da notícia e o que é que é uma notícia e como é que se faz uma notícia e como é que se trabalha também para a comunicação social. As notícias têm dinâmicas próprias. Quem quer comunicar utilizando aqueles instrumentos.

Mas não permite ou somos nós que já estamos a assumir que há que jogar por essas regras porque não há força suficiente para as alterar? Isso é de certa forma assumir que o jornalismo não faz necessariamente uma apreensão da realidade, fá-la de acordo com as estruturas das quais não quer abdicar. E poderia, porque em primeira instância o papel do jornalista é procurar fazer esse trabalho de tradução para essa estrutura, mas traduzir a realidade.

Se o jornalista tivesse apenas uma notícia para fazer por dia, que permitisse ler uma intervenção de 40 páginas, reflectir imensamente e dessas 40 páginas retirar a frase mais importante, ainda assim, 10 jornalistas diferentes tenderiam a tirar 5 frases diferentes. Quem quer fazer comunicação política tem aquilo que é fundamental e aquilo que é acessório. Se a conferência de imprensa é para sair nos jornais e na comunicação social ela tem que ser construída para sair nos jornais e na comunicação social e quem a constrói tem que construir da forma que seja mais fácil perceber o que é que é fundamental, o que é que queres transmitir. Não vale a pena assumir a rebeldia política, fazendo uma coisa que não tem nada a ver com o formato que se vai fazer. Há um viés ideológico? Sim. Vai haver um viés ideológico? Sim. As posições têm de ser mais claras, os argumentos têm de ser melhores. Não quer dizer que notícia vá ser correcta, mas pelo menos fica claro aquilo que se quer dizer.

Neste momento é possível saber o que se passa no mundo, não apenas relativamente ao conflito entre a Ucrânia e Rússia, através dos nossos órgãos de comunicação social nacionais? Como é que te informas?

Acho que ainda é a boa literatura, o bom jornalismo, a boa televisão que nos permitem, no meio do palheiro, tirar as agulhas que nos permitem tirar pistas. Acho sempre que o leitor, o espectador, deve ser por definição crítico e desconfiado. Faço-o em relação aos factos históricos que conheço. Isto é verdade ou não é verdade? E a seguir procuro outras fontes de informação. Hoje temos acesso a milhões de fontes de informação. Por vezes a coisa mais complicada é como de milhões consegues encontrar outras fontes. É possível. Agora, exige do leitor um trabalho sistemático. E era importante a existência de uma imprensa e de uma comunicação social alternativas que tivessem outro ritmo, outra profundidade e que nos permitissem dar pistas para ler as coisas de uma forma diferente.

É estranho que não haja praticamente repórteres portugueses do outro lado do conflito?

A história da reportagem de guerra faz-se normalmente a partir do Vietname. É uma coisa muito complicada porque não estás propriamente num terreno fácil. Estás a fazer reportagem em condições complicadas, junto a forças militares, no caso do Iraque, embebido até. O Peter Arnett estava num apartamento a ser bombardeado em Bagdad. Mas a maior parte, pelos menos os  principais canais, fez a cobertura da guerra do Iraque (da segunda invasão do Iraque), embebida nas forças americanas, vendo a partir daquilo que podiam ver de dentro. Ainda assim, acho que há um conjunto grande de jornalistas do outro lado. Agora, do lado ocidental, não há muitos. Do meu ponto de vista tem a ver com várias razões. Uma é considerarem que não tem interesse e a outra é que para chegares àquele lado não é muito simples, porque alguém tem que te deixar entrar. 

Obviamente que também há jornalistas russos daquele lado, e que não estão do outro lado. Esses não conseguem fazer cobertura em Kiev, não teriam condições. Mas eu acho que tem de se procurar estar nos dois lados.

Quais é que achas que são as consequências deste ambiente para o regime democrático?

Temo que haja muita coisa que nós dávamos por adquirido de que não havia perigo e que se tornou perigoso. Existe objectivamente uma pressão muito grande de criminalizar tudo o que sejam opiniões diferenciadas e embora as nossas leis não o permitam e haja força para resistir a isso, a verdade é que a sociedade não é só constituída pelo espaço das leis mas é pelo espaço da correlação de forças no terreno. Haverá muita gente que vai ter dificuldade em expressar determinadas opiniões, em fazer a defesa das suas forças políticas, porque há a criação de um ambiente de ódio, que vai ter repercussões na sociedade.

“Quanto mais se instalar esta ideia de “nós” e os “outros”, mais a lógica securitária e militar se vai impor ao quadro democrático e legal.”

E se a guerra continuar, quanto mais se instalar esta ideia de “nós” e os “outros” e os “outros” são do inimigo e “nós” somos não sei que, mais a lógica securitária e militar se vai impor ao quadro democrático e legal. Quando neste momento, para além da censura dos canais russos, está em discussão, a nível da União Europeia, que qualquer pessoa que expresse nas redes sociais ou em público opiniões sobre a guerra que não sejam consentâneas com a União Europeia e com a opinião da União Europeia possam ser perseguidas, isso fere completamente a democracia e liberdade e o nosso quadro constitucional. Eu bem sei que a União Europeia fez aprovar uma coisa em que o direito comunitário está acima do direito nacional. Mas isto não foi direito comunitário. Foi uma imposição da UE passando por cima de todas as leis. Ultrapassou em muito as próprias instituições jurídicas europeias e viola a nossa Constituição, viola a democracia, viola a liberdade. Já existem empresas privadas a fazer isso. Na semana passada, no 25 de Abril, postei uma foto da chegada do Álvaro [Cunhal], José Mário Branco e de outros refugiados políticos ao aeroporto de Lisboa. Esta foto tem uma multidão, tem um tanque, tem uma bandeira com uma foice e um martelo e tem um cachecol do Sporting. Creio que não foi pelo cachecol do Sporting que o algoritmo do Facebook me disse que a minha foto violava os padrões da comunidade. Estas empresas privadas já determinam aquilo que tu podes e não podes dizer, fora das legislações democráticas.

Artigos Relacionados