Entrevista

Alfredo Maia

«Barrar o fascismo com imprensa plural e democrática»

Alfredo Maia iniciou-se no jornalismo n’O Primeiro de Janeiro e escreve atualmente no Jornal de Notícias, onde é representante dos trabalhadores. O ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas faz parte do Conselho Deontológico desta estrutura sindical e considera que falta diversidade e democracia no panorama mediático português.

Há quem atribua o divórcio dos leitores com os jornais à transição para o digital. É assim?

De facto, um jornal é um bem quase de luxo, não é? É um bem quase de luxo, custa bastante dinheiro e as pessoas têm de fazer opções. Não se pode comprar um jornal todos os dias, não é? Esse é um fator. O outro, que me causa alguma preocupação, tem a ver com a perceção que tenho de que, mesmo aqueles leitores que têm alguma capacidade aquisitiva, deixaram de comprar jornais pela simples razão de que não vêem satisfeitas as suas necessidades de informação. Isto é, os jornais deixaram de responder, por um lado aos seus centros de interesse, e deixaram muitas vezes de os ajudar a compreender o mundo que os rodeia, a começar pela própria cidade ou aldeia onde vivem e, portanto, deixaram de merecer o interesse. 

Ou seja, diria que os problemas das pessoas não aparecem nos jornais.

A perceção que vou tendo é de que os jornais deixaram de responder às expetativas. Por outro lado, há uma evidente redução do pluralismo informativo e de opinião. Eu creio que, aliás, o maior problema que os media em geral enfrentam hoje é, de facto, a redução brutal do pluralismo informativo. Quer dizer, é porque já nem sequer há oportunidade de escolher na banca. 

E acha que isto terá a ver com a crise geral do sistema? Ou seja, no fundo, as pessoas identificam a comunicação social como sendo um pilar do sistema que lhes traz os problemas que as afetam?

Eu creio que, no quadro da luta ideológica, o estado a que a imprensa chegou interessa, nomeadamente, ao capitalismo. E que a formação de um grande consenso implícito acerca da agenda temática, acerca do foco dado aos temas, acerca da apresentação de um conjunto de factos como inevitáveis na vida das pessoas e da comunidade são elementos que acabam por afastar os leitores. Como se sentissem, e eu creio que em muitos casos sentem, traídos nessa expetativa que tinham de ter uma oferta informativa realmente diversificada e que os ajude a compreender o mundo.

Isso pode explicar porque é que hoje as pessoas sentem que têm mais voz através das redes sociais?

Em boa verdade é certo que as redes sociais, de alguma maneira, sendo um instrumento do capitalismo, democratizaram a livre expressão de opinião. E sendo um instrumento ao alcance de qualquer pessoa minimamente informada sobre aquela ferramenta e minimamente capaz de a utilizar, pois sentem-se bastante à vontade para fazer isso e sobretudo sentem essa necessidade. 

Mas também se sente uma certa indignação sem rumo, não é? Que facilmente é aproveitada por forças de extrema-direita, negacionistas, obscurantistas…

Disso não há dúvida nenhuma.

Este movimento geral contra a ciência que se reflete também um pouco contra a própria comunicação social. Ou seja, há um movimento de descrédito constante nas próprias redes sociais numa lógica imediatista.

De completo imediatismo e as pessoas nem param para pensar.

Esse imediatismo tem reflexo no trabalho dos jornalistas?

A comunicação social caiu nessa armadilha. Quando era suposto que os cidadãos esperassem dela um trabalho acabado do ponto de vista da confirmação dos factos, da verificação, de fontes diferentes, etc., não… Por um lado, ela própria precipita-se a divulgar muitas informações que não estão confirmadas, e por outro, que é ainda bem pior, apropria-se muitas vezes de elementos supostamente informativos nas redes, desde logo das pessoas com alguma exposição pública. Como se tudo isso fosse notícia. Por outro lado, os media, eles próprios, alimentam essa espiral porque, além de terem nos meios eletrónicos, a versão digital do seu trabalho jornalístico mais tradicional, utiliza as redes sociais como novos suportes de comunicação, e muitas vezes redistribuindo os materiais que essas pessoas vão disponibilizando. Há uma espécie de mercado de futilidades que vai servindo por um lado as pessoas que vivem dessa exposição pública, por outro lado as supostas audiências que os meios mais tradicionais vão ganhando com essa atividade.

Neste contexto, parece que o próprio conceito de verdade é cada vez mais ténue, ou seja, através dos meios digitais, das redes sociais, em que é fácil construir narrativas sem sustentação real. 

Desde logo, há uma alteração da noção de verdade. Quer dizer, porque o cidadão comum costumava dizer que “é verdade porque eu li no jornal” e agora ouvimos com muita frequência “isso é verdade porque eu vi na internet”. Seja lá o que isso for “na internet” porque este conceito de internet é tão amplo na cabeça das pessoas que elas próprias não sabem distinguir se, o que leram na internet, leram num sítio eletrónico, numa publicação credível, se leram na conta pessoal de um agitador da extrema-direita ou se leram num blog mais ou menos generoso de um cidadão que quer, e tem toda a liberdade para isso, contribuir para difundir informação. E, portanto, a sobreabundância de materiais, todos supostamente informativos, diminui a capacidade de filtrar. E, sobretudo, a pressa que muitas pessoas têm de apropriar as informações que estão disponíveis, sem ter o cuidado de verificar a sua veracidade, sequer a verossimilhança das informações, às vezes as mais estapafúrdias, tudo isso gera uma amplitude do próprio conceito de verdade que perverte tudo isto. E isso não é nada bom, ou seja, o mal não consiste necessariamente na existência de todos esses recursos, o mal existe é na forma como uns procuram instrumentalizar os outros mas, sobretudo, na falta de capacidade para, em tempo útil, filtrar e interpretar e refletir antes de partilhar aquilo que encontraram.

Esta pandemia pode ser utilizada para criar condições para que os governos possam implementar medidas securitárias através de uma agenda mediática favorável?

Esta situação, de facto, uma crise pandémica por um lado, e a própria natureza da propriedade dos meios de comunicação social por outro, a agenda bastante comum e partilhada do ponto de vista ideológico pelos grandes meios, e também pelos pequenos, cria ou desenvolve condições para que, além das campanhas que foram dirigidas contra a Festa do Avante! e o PCP, desenvolvam outras que estão já à vista. Por exemplo, quando se vão intensificando certos discursos exacerbadamente críticos em relação à capacidade do Serviço Nacional de Saúde é bem visível ali que se pretende abrir uma porta para a oportunidade da hospitalização privada. E isto até sem qualquer exercício crítico relativamente à forma como a hospitalização privada se comportou na 1ª vaga. Assim como é visível noutras áreas, nomeadamente na área laboral, a própria imprensa alinhar com o discurso do patronato no sentido de reduzir direitos e garantias aos trabalhadores. Quer dizer, repare, esta ideia que tem passado muito de que é necessária ajuda às empresas. Na imprensa não há ninguém que diga “então e os trabalhadores”? 

Nós quando falamos da grande relação entre os grupos que controlam, que possuem os meios de comunicação e quem neles trabalha, muitas vezes, falamos também da relação das agências e dos jornais, todos nós recebemos imensos emails e comunicados. O que eu te queria perguntar é sobre este corredor ou esta porta giratória constante de jornalistas que saem para agências de comunicação, que saem das agências de comunicação para a imprensa, isto não é perigoso?

Como é que vê as condições de trabalho dos jornalistas hoje?

As condições estão muito determinadas por este panorama geral de, por um lado, escassez real de postos de trabalho nas redações, fruto por um lado da diminuição de órgãos de informação e por outro de despedimentos. São muito determinadas igualmente pelas várias formas de precariedade, desde o vínculo contratual à própria formação dos salários, uma vez que, em muitos casos, uma boa parte dos salários é constituída por frações que o patrão pode retirar a qualquer momento, incluindo, e sobretudo, ao nível das funções de chefia e direção. E há uma terceira forma de precariedade que é a perceção da insegurança no emprego. Estas três formas de precariedade condicionam muito o trabalho do jornalista, desde logo, muitas vezes, o desenvolvimento de um comportamento mais acrítico, mais passivo, de nem sequer contestar instruções ilegítimas ou práticas profissionais erradas.

Diria que se pode falar de autocensura, por vezes? Essa expressão era muito usada durante o fascismo.

Eu creio que sim, que se pode falar. Nas circunstâncias em que, muitas vezes, o posto de trabalho ou a integridade do salário está em risco, pode dizer-se que muitos jornalistas se inibem de tomar iniciativa de tratar este ou aquele assunto, se não do desagrado pelo menos do desinteresse de quem orienta a publicação, e também alguns temas que porventura possam bulir com os interesses da empresa.

Face aos perigos do recrudescimento do fascismo, considera que a imprensa plural e democrática pode servir de barreira a essa realidade?

Uma imprensa verdadeiramente pluralista, democrática, que informe, esclareça e ajude a compreender os problemas das próprias pessoas, dos trabalhadores, das suas organizações, é um instrumento fundamental para barrar o caminho e infelizmente já não podemos dizer ao regresso mas ascenso do fascismo.

E como construir essa imprensa plural e democrática? Olhando para o nosso contexto, isso é possível? 

Do ponto de vista formal, em Portugal, há liberdade de criar, produzir e difundir um jornal, mas isso é para quem tem dinheiro. Mas há um desafio que não pode ser adiado por muito tempo que é o dos próprios jornalistas, especialmente através de cooperativas de jornalistas e outros trabalhadores do setor, se organizarem e desenvolverem projetos que, para além de independentes, pensados e produzidos por eles próprios, sempre na ótica de trabalhadores que são, tenham em vista, desde logo, responder a esta questão essencial: o que é que os outros trabalhadores esperam de nós? Isto é, que necessidades é que a imprensa capitalista não tem satisfeito e nós, até porque também somos trabalhadores, seremos capazes de oferecer? 

Evidentemente que um desafio desta natureza, por mais generoso que seja (estou a falar de uma cooperativa de produção naturalmente), em que nenhum dos autores, nenhum dos cooperadores tenham ambição de apropriação individual do lucro, exige mesmo assim alguns recursos. Mas eu creio que é possível gerar um movimento solidário que apoie o lançamento de projetos destes e que é possível ir mostrando aos cidadãos, aos trabalhadores que sim, há alternativas a esta imprensa que temos e que está divorciada dos seus interesses e expetativas.

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