Entrevista

CARLOS MATOS GOMES

“A Ucrânia não é reconstruível!”

O Coronel Carlos Matos Gomes, Capitão de Abril e fundador do Movimento dos Capitães, fala do conflito da Ucrânia, de como e de quem o alimenta e porquê, do cenário que nos espera quando as armas se calarem, um Mundo onde, diz: “Era urgente uma utopia, uma luz que desse ânimo…”

"Não há guerras eternas. Ela parará quando um dos contendores se der por satisfeito e o outro salvar a face."

Este conflito era evitável?

Este conflito apenas não foi evitado porque foi deliberadamente provocado. Este conflito violento e até agora característico de uma guerra convencional, resulta da análise que os Estados Unidos fazem dos seus interesses estratégicos para manterem a supremacia do poder mundial, o que implica eliminar potências concorrentes, no caso a Rússia e a China.

Porquê a Ucrânia?

A Ucrânia é apenas o palco mais adequado ao conflito que opõe os EUA à Rússia e à China, uma barriga de aluguer. Aliás, o objetivo declarado dos EUA é o enfraquecimento da Rússia e a conclusão da cimeira da NATO de Madrid foi que a China é uma ameaça aos valores do “Ocidente”, aqui representado pela NATO, a aliança militar dos países de capitalismo avançado.

No plano militar qual é o ponto da situação?

No plano militar, depois de uma ação inicial de ameaça direta ao poder ucraniano – aproximação a Kiev – as forças russas alteraram o conceito de manobra e estão a executar um avanço lento e seguro, com táticas tradicionais de grande apoio de artilharia para amolecer defesas, cerco de pontos importantes, corte de vias de comunicação para dificultar o reabastecimento inimigo. As forças ucranianas tinham uma forte organização do terreno no Leste e conseguiram dificultar o avanço russo. Julgo que a Rússia, em termos militares, pretenderá dominar a fronteira Leste (Donbass), os portos do Mar Negro. Julgo que tem agora maiores hipóteses de sucesso, dado o esgotamento da capacidade de mobilização de cidadãos ucranianos, de dificuldades logísticas – reabastecimento de armas e munições – e da ausência de apoio aéreo, que os drones não substituem.

É possível parar o conflito?

Ele parará. Não há guerras eternas. Ele parará quando um dos contendores se der por satisfeito e o outro salvar a face. O custo da guerra para a Rússia é muito elevado em baixas e destruição de material, o que exige ao poder político do Kremlin que apresente uma vitória que justifique o custo. Do lado americano – e os americanos não costumam atender aos interesses dos seus aliados e vassalos, no caso a UE, ou o governo de Zelenski (veja-se o abandono dos aliados afegãos) – a administração Biden está interessada neste confronto em tempo de eleições. Também necessita de um bode expiatório para justificar as quedas das bolsas de valores (Wall Street) e o aumento do custo de vida.

Há uma solução militar?

Não haverá solução para esta guerra, no sentido tradicional, de um acordo de paz e de uma definição de vencedores e vencidos. Esta guerra provocará, já provocou, uma alteração radical no equilíbrio dos poderes mundiais. Esta guerra – tão perto de nós e por isso tão mediatizada – é apenas mais uma guerra no grande confronto planetário que irá marcar este século. Já agora, as sanções económicas e as ações diplomáticas comprovaram mais uma vez que os canhões são a última expressão da vontade do soberano, ou a versão maoista que o poder está na ponta das espingardas. Será o desequilíbrio de forças num determinado momento que irá ditar um fim das ações militares e o início da solução política, que pode ser uma não solução, isto é, um Estado de soberania disputada, ou de um Estado falhado.

O envio de material de guerra do Ocidente não está a adiar uma solução negociada?

O envio de material de guerra do Ocidente é, no fundo, uma operação dos governos ocidentais, dos Estados Unidos e da Inglaterra, em especial, de salvar a face. Depois de terem criado um regime vassalo, de prometerem aos seus homens de mão (Zelenski) a entrada na UE e na NATO, a troco da autorização de estacionamento de bases (uma ação marcada pelos acontecimentos da Praça Maidan e da conspiração da antiga embaixadora dos EUA em Kiev, Vitoria Nuland, atual subsecretária de Estado para os assuntos europeus, e do apoio ao grupo de oligarcas representado por Zelenski) os Estados Unidos e os seus complacentes aliados europeus não podiam fazer menos do que enviar armas para os ucranianos se baterem pela ilusão que lhes foi “vendida” de ingressarem no paraíso da União Europeia. Julgo ainda que as “conferências” internacionais para estudar a reconstrução da Ucrânia, quando não há previsão do fim da guerra, nem o que será a Ucrânia, são um lamentável embuste dos políticos ocidentais ao povo ucraniano, aos que morrem e sofrem. Zelenski presta-se a esse espetáculo de farsa de previsão de obras, pontes, viadutos, caminhos de ferro, hospitais, escolas, e até creches, nesta alínea por conta do governo português! A Ucrânia não é reconstruível!

Quem beneficia com isso?

Neste caso julgo que, no imediato, os beneficiários da guerra serão os acionistas dos complexos militares-industriais, a médio longo prazo, os beneficiados serão os Estados agregados sob a designação genérica de BRICS (Brasil, Rússia, India, China, a que se juntarão a África do Sul, a Argentina, porventura o México) – este grupo poderá criar uma moeda internacional alternativa ao dólar, poderá desenvolver políticas articuladas de comércio de matérias-primas essenciais, petróleo, gás, terras raras, de exploração espacial, de novas redes de comunicação fora do monopólio americano. É perigoso e errado fazer análise considerando o Ocidente o centro do mundo. O Ocidente representa apenas cerca de 15% da população.

António Guterres afirmou que o Mundo enfrenta uma nova Guerra-Fria “com uma tonalidade Nuclear”. Um conflito nuclear é um cenário possível? Alguém o está a evitar?

O nuclear está inventado, existe, está disponível nos arsenais, portanto não pode ser descartada a sua utilização. Julgo, no entanto, que o que está em jogo na Ucrânia, quer para os Estados Unidos: a criação de um estado sentinela junto à fronteira russa (um pouco à semelhança de Israel para o Médio Oriente); quer o que está em jogo para a Rússia: manter um vizinho dentro das suas normas de comportamento e respeito, não justificam a utilização de armas nucleares, de subir a esse patamar. Acredito, contudo, que uma improvável escalada na guerra, com o fornecimento massivo de armas de grande poder de destruição à Ucrânia, ou a criação de uma Força Aérea moderna, apenas nominalmente ucraniana, poderiam ser o detonador de uma guerra nuclear.

No plano económico a estratégica da Nato e da União Europeia parece ter pouco significado na economia russa, o rublo está mais forte. O que isto pode significar para a Europa?

Essa é a grande questão. A Europa viveu desde a II Guerra Mundial de energia barata, vinda de fontes diversificadas. A globalização, com a entrada da China no mercado mundial, exigiu da Europa melhorias de produtividade (robotização) e energia barata (gás russo) para os seus produtos serem competitivos. O fim da energia barata e o fecho de um mercado como o russo, mais o aumento de despesas militares imposto pelos EUA vão “secar” a base de financiamento do Estado-social. O fim deste tipo de Estado assistencial e garante de direitos do trabalho provocará graves alterações de ordem e profundas modificações nos sistemas políticos. No limite, esta guerra por procuração em que a Europa se envolveu poderá destruir o Estado-social e o Estado liberal democrático! O Estado do contrato social defendido por Rosseau, por exemplo.

O PR português, em consonância com Soltenberg e Biden, alertam para as dificuldades sociais que se avizinham; Marcelo disse que o “essencial é a não desmobilização em face dos custos económicos financeiros e sociais”. O que é que esta guerra nos prepara?

Esta guerra prepara-nos um futuro de maior incerteza, logo de maior tensão social e política, prepara a emergência dos populismos e dos correspondentes demagogos. Quer Stoltenberg, quer o seu patrão Biden são populistas e conhecem o cenário em que os cidadãos dos Estados Unidos e da Europa vão viver e utilizaram os mais poderosos e insidiosos instrumentos de manipulação da opinião pública – veja-se o guião de todas as grandes estações de televisão, dos jornais, das redes – para apresentarem o poder russo como responsável do mal que aí vem. A técnica é conhecida e recorrente: Em primeiro lugar dando um rosto ao inimigo, no caso Putin (jamais é referido o governo de Moscovo), em segundo lugar diabolizando o inimigo, depois apoucando-o: está doente, de umas vezes de cancro, de outras de males do foro psiquiátrico. Os dirigentes europeus conhecem o cenário de miséria que esta guerra preparou e estão a sacudir a água do capote. Esta guerra prepara-nos para um grande incêndio e os incendiários estão a atirar as culpas para um inimigo que disputa parte da floresta. Nós, os cidadãos europeus, somos a fauna de coelhos, lebres, ratos, cobras e outros bichos que se vê envolvida pelas chamas.

Inflação, subida da taxa de juros, desemprego e o pedido de Lagarde e Centeno para contenção dos salários. Quer dizer que se aproxima mais uma crise como a de 2008?

Julgo que o pós-guerra da Ucrânia será radicalmente distinto da crise de 2008. A crise de 2008 foi uma crise de um sistema, dentro do sistema e foi resolvida sem alterações do essencial do funcionamento do sistema capitalista, com injeção massiva de dinheiro (virtual), uma manobra que foi justificada pela pandemia. No essencial o comando do sistema manteve-se na Reserva Federal Americana e no poder de emitir dólares e estabelecer taxas de juro. O que estamos a assistir é à criação de um sistema alternativo à dolarização em que vivemos desde o final da II GM. Quer isto dizer que todas as variáveis de análise se alteraram. Haverá uma nova moeda de troca, surgirão novos centros de poder e com eles novos valores, novas formas de vida em sociedade. As novas tecnologias também vão acelerar as mudanças e serão fator de crise, como acontece sempre que se alteram os meios de produção: foi assim com a revolução industrial, por exemplo.

A propósito da entrada da Suécia e da Finlândia na NATO, o que é que que a NATO ofereceu à Turquia? o acordo de extradição assinado entre Suécia, Turquia, Finlândia e Turquia não é entregar Curdos à Turquia, a um governo que tem um historial rico de perseguição aos curdos e violação de direitos humanos? 

A entrada da Suécia e da Finlândia na NATO tem, para mim, um significado: Os intervenientes neste negócio são atores para quem a moral, a ética, os ditos valores correspondem aos interesses do momento. Significam que o dito “Ocidente” não tem valores, ou que os seus valores são os de qualquer batoteiro de esquina.  Parafraseando Nietzsche em Assim Falava Zaratrustra, os dirigentes da NATO, os da Suécia e da Finlândia são gente a quem não se deve estender a mão, mas as garras. É por isso muito difícil não sentir um amargo na boca a ouvir esses dirigentes falarem de liberdade, de democracia, de justiça. Valores que lhes deviam queimar as bocas. Em termos de aumento de potencial da NATO ou de garantias de segurança nada se altera. Os governos dos dois países apenas fingem que agem o que evita as questões sérias colocadas pelos eleitores. A questão curda é exemplar da ausência de valores de todos estes atores que se autodefinem como padrões de democracia, os curdos são párias, moeda de troca, como o são e foram os afegãos, os vietnamitas, os talibans, como serão os ucranianos e os egípcios da irmandade muçulmana, abandonados quando passaram da condição de aliados à de obstáculos aos acordos entre os EUA e os antigos poderes. A questão curda está inscrita nas grandes traições que geraram obras-primas, como foi o caso do drama Júlio César de Shakespeare.  Eles são os traídos, os sacrificados.

E Portugal não está a ser cúmplice?

Portugal é, desde a fundação, um pequeno Estado vassalo. Os vassalos não são cúmplices, prestam vassalagem e seguem os seus senhores. Portugal, o governo português, poderia, isso sim, não ser ridículo. Assumir a sua insignificância e manter-se discreto. Um outro ponto que esta guerra levanta é o desprezo dos governantes de sistemas políticos democráticos pelos seus cidadãos e pelos eleitores. A Europa, União Europeia e Reino Unido, foi envolvida numa guerra sem que os europeus e os britânicos tenham sido ouvidos, como se este envolvimento fosse uma vulgar ação de administração do condomínio europeu. Este desprezo terá uma resposta dos eleitores quando sentirem na pele as consequências de decisões a que são alheios. Os eleitores, e bem, punirão quem lhes causou sofrimento e, por muito que os meios de manipulação se esforcem, os cidadãos e eleitores europeus não irão pedir contas a Putin, mas aos que elegeram e não foram capazes (ou não quiseram) de prevenir uma situação com pesadas consequências, nem sequer os ouviram.

O petróleo mais caro é uma inevitabilidade?

O preço das matérias-primas nada tem a ver com os custos de produção. Tem a ver com especulação. Os tempos de guerra são os tempos dos abutres. Haverá especulação no petróleo, como houve logo na semana a seguir à invasão com produtos hortícolas produzidos em estufas no Algarve ou na zona do Oeste. Estamos à mercê dos especuladores.

A negociação ainda é possível?

Não há guerras eternas. A mais longa que se conhece, a dos romanos contra os persas durou 300 anos e terminou com a derrota dos dois impérios. Haverá com certeza negociações sobre o que quer a administração da Rússia, quer a administração dos Estados Unidos considerem ser uma vitória e apresentá-la como tal aos seus públicos. Um indicador de que as exigências de ambas as partes não são de “tudo ou nada” é a relativa imunidade de que goza administração da Ucrânia em Kiev. O que pode significar que existe um entendimento de a Ucrânia continuar a ser um Estado reconhecido pela Rússia. A partir daí, manda quem pode…

Que mundo se pode prever no pós-guerra?

Em princípio um mundo multipolar. Um mundo com dois ou mais centros de poder, no mínimo um no Atlântico, e outro no Pacífico, talvez um no Índico. Um mundo com várias moedas de troca internacional, um mundo com ainda menos apoio dos Estados aos cidadãos, um mundo de conflitos regionais, um mundo menos preocupado com questões ambientais e com direitos humanos. Uma Europa ainda menos importante e mais dependente de uma única fonte de poder, os Estados Unidos. Um mundo ainda mais desigual, com maior concentração da riqueza. Um mundo sem utopias, nem esperança, por isso mais agressivo e agreste.

Era urgente uma utopia, uma luz que desse ânimo…

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