Entrevista

Pedro Penilo

“A história do país vai ficar com um buraco negro”

Na última década, os trabalhadores da cultura irromperam nas ruas para reclamar melhores condições de trabalho e investimento público. A criação do Manifesto em Defesa da Cultura foi o fósforo que incendiou o rastilho de anos de abandono do setor. O artista plástico Pedro Penilo foi um dos fundadores do movimento e não tem dúvidas de que enquanto os governos desprezarem a cultura a luta é para continuar.

Pedro Penilo é um dos fundadores do Manifesto em Defesa da Cultura

Quais é que acha que são as razões que levam a que os artistas não tenham trabalho ou não consigam sobreviver só disso?

Portugal tem atrasos enormes no seu desenvolvimento cultural. Isto é histórico e implica medidas fortes de combate a esses atrasos. São atrasos que afetam todo o povo português, não é um problema que afeta só os artistas profissionais. Por outro lado, é verdade que mesmo aquele trabalho artístico que é realizado por aqueles que estudaram e se dedicam a esse trabalho a tempo inteiro é, em Portugal, esmagadoramente feito como trabalho não remunerado. É uma coisa de que se fala pouco, mas a maior parte da cultura artística que existe em Portugal não é paga, é feita às custas do esforço e dos meios dos próprios artistas. Há áreas onde isso acontece menos e outras onde essa é a única maneira de se poder trabalhar. Os meios são muito escassos e chegam a muito pouca gente. Por omissão do Estado, são muito dependentes do mercado, que condiciona a liberdade e a diversidade do trabalho artístico. Fundamentalmente, as dificuldades radicam na falta de apoios financeiros, de oportunidades de trabalho, de equipamentos e de logística que permitam facilidade nesse trabalho e, necessariamente, de encomendas e toda uma série de recursos que, não esgotando todo o trabalho artístico, permitem que esse trabalho artístico se faça com alguma qualidade.

Envolveu-se na criação do Manifesto em Defesa da Cultura. Por que decidiram lançar este movimento?

Em primeiro lugar, havia uma série de ativistas da área artística, mas também de outras áreas da cultura, que tinham atravessado o processo das lutas das Plataformas das Artes. Foram lutas problemáticas, porque eram processos promovidos, essencialmente, por estruturas empresariais ou por estruturas empregadoras, e, portanto, com objetivos muito específicos que não correspondiam às necessidades da maioria dos artistas que se mobilizou para as apoiar. Esse grupo ativista tinha atravessado este processo com uma reflexão muito crítica, acompanhando mas ao mesmo tempo acumulando uma reflexão do que deveria ser uma luta por outra política para a cultura que verdadeiramente correspondesse às necessidades mais estruturais e gerais da situação da cultura em Portugal. Depois, deram-se os PEC do governo PS e os efeitos da crise financeira mundial em Portugal, a queda do executivo e a vitória da direita nas eleições de 2011. Houve uma reação de toda uma série de personalidades da cultura em torno de uma posição de rejeição não só das medidas mais agudas e gravosas mas, ao mesmo tempo, de toda a tendência de desinvestimento, desresponsabilização do Estado e mercantilização da cultura que vinha de há décadas. Estas são as duas componentes que de certa forma ajudam a uma tomada de posição que depois incluiu a decisão de criar um movimento.

Uma das reivindicações é de 1% para a cultura. Porquê 1%?

1% do PIB para a cultura era uma recomendação de uma iniciativa da UNESCO, chamada Agenda 21, onde se propunha que países com uma economia semelhante à de Portugal dedicassem essa percentagem do PIB à atividade cultural. Era uma coisa de que se falava muito em conferências sobre a cultura, em contextos académicos especializados. Havia entre algumas das pessoas que tinham sobrescrito o manifesto e faziam parte do seu nascimento, como Manuel Gusmão, a proposta de que isso pudesse integrar a nossa reflexão e o nosso programa. Nunca foi nossa intenção tornarmo-nos naquilo de que muitas vezes somos apelidados: “o movimento 1% para a cultura”. Até porque a própria proposta é problemática. Aparentemente 1% para a cultura tanto dá para uma política de direita como para uma política de esquerda, embora se possa constatar na prática, e até por uma reflexão mais elaborada, que de facto nunca poderá ser parte de uma política de direita porque entra em conflito com os interesses económicos que se instalam em torno daquilo que se chamam as indústrias culturais. Necessariamente uma mobilização dos recursos do Estado para apoiar a cultura vai tirar o pão de todo o mercado que se instala à volta da produção cultural. Mesmo tendo em conta uma política neoliberal como aquela que tem sido executada em portugal há sempre um impacto positivo de haver mais dinheiro a circular. Sobretudo numa situação como a portuguesa, que é uma situação de grande miséria e que se aprofundou imenso desde 2008. Com imenso desemprego, estruturas culturais destruídas, abandono da profissão e emigração.

Conseguiram colocar na agenda mediática e na discussão política a questão do 1%.

Sim. A principal conquista é precisamente termos conseguido colocar na discussão pública e na ação de massas as questões e as exigências da cultura e marcar meia dúzia de eixos importantes na responsabilização do Estado. O cumprimento da constituição, o valor do direito à criação, que é uma exigência vincadamente de esquerda, o direito de todos à criação. Outro eixo de valorização do trabalho na cultura é a luta pelo emprego e contra a precariedade, melhores salários, apoio às estruturas no sentido de permitir melhores condições de trabalho e uma luta muito importante, que não é apenas contra a mercantilização da cultura, mas por um princípio que diz que a cultura tem um valor em si próprio, que não tem preço. Isto para impedir toda uma doutrina que estava a ser promovida de há vários governos para trás no sentido de começar a avaliar o valor económico da cultura. Claro, para depois poderem dizer que a cultura boa era a que tinha sustentabilidade, a que se aguentava economicamente, e que a outra não merecia viver. O 1% para a cultura é a garantia material de que isto se possa realizar, uma política democrática, de esquerda em respeito pela constituição tenha meios para se realizar. Esta exigência, pela sua simplicidade, pelo reconhecimento da generalidade das pessoas, da sua evidência, ganhou um caráter simbólico muito grande, tornou-se muito agregador.

O Manifesto tem uma ação permanente desde 2011
© Bruno Ferreira

Até o PS passou a falar disto.

O PS é um caso escandaloso porque nunca teve esta medida no seu programa. E fala disto agora no final da legislatura. António Costa começou por dizer há um ano na sua reunião com as estruturas em luta que 1% para a cultura era uma coisa para médio ou longo prazo. A expressão comum da maior parte dos governantes, desde o governo de Passos Coelho a António Costa, era sempre de uma certa complacência, não dizer que não mas que era um objectivo mítico. Depois, no fim do ano, começou a dizer que no fundo não sabia muito bem do que é que se estava a falar. Se se estava a falar em 1% do Orçamento, se era 1% da despesa pública no seu todo, se era 1% do PIB. António Costa tem a obrigação de saber do que é que as pessoas estão a falar porque todas estas coisas estão explicitadas no programa do manifesto e em discussões e reflexões que se têm feito durante este oito anos de luta.

Considera que o primeiro-ministro tenta enganar os portugueses quando vem agora falar durante a campanha em 2% para a cultura?

É uma mistificação. O PS perdeu o comboio, chega ao fim da legislatura sem um pingo de estratégia sobre esta questão. Não restituíram o Ministério da Cultura, que se mantém como uma secretaria de Estado. A história dos ministros da Cultura é uma desgraça. António Costa chega atrasado e quer fazer qualquer coisa e diz qualquer disparate que possa fazer parecer que está à frente. Trata-se obviamente de uma estratégia de mistificação. A exigência que se generalizou nos meios culturais e nas pessoas que se preocupam com as questões da cultura é 1% já como patamar mínimo do Orçamento de Estado, com o objetivo de atingir faseadamente o 1% do PIB.

Em 2015, o povo português retirou à direita a maioria. O movimento ente-se também co-responsável por essa consequência.

Humildemente, sim. Não falo apenas do Manifesto, falo também do contributo para a unidade de todo um mundo de estruturas, desde os sindicatos até às pequenas estruturas e grupos, todos relacionados com a atividade cultural, que em grande medida ou estavam paralisados ou estavam cada um a trabalhar para seu lado. A criação da plataforma Cultura em Luta foi um momento muito importante de desenvolvimento da luta nesta área. E creio que, salvo as proporções em quantidade, esta luta foi uma das lutas mais marcantes desta última década e tem vindo a crescer.

O ano de 2018 foi um ano de intensa luta no setor da cultura. Que avaliação é que faz destes últimos quatro anos de governo PS?

Se excetuarmos aspetos positivos que a generalidade dos portugueses sentem com o derrube do governo de direita e a criação de condições políticas para que muitas medidas positivas fossem tomadas, no campo específico da cultura a avaliação é muito negativa. Se há setor em que não se avançou absolutamente nada é este sector. Aliás, continua a ser uma exigência da nossa luta a criação de um programa de emergência porque os danos são terríveis. Há coisas que já não se recuperam e, sobretudo, há uma ou duas gerações de jovens que não tiveram oportunidade de exercer o seu talento e a sua energia na cultura, o que quer dizer que a história deste país vai ficar com um buraco negro. Quando as futuras gerações fizeram a história, o levantamento do património destes anos, vão verificar que não foi apenas aquilo que foi impedido de existir. Mesmo aquilo que aconteceu degradou-se. A necessidade de sobrevivência foi tal que tivemos companhias de teatro a fazerem peças com um elenco reduzido, monólogos, corte de personagens, tudo para poderem sobreviver. Hoje, uma grande parte do tecido social da cultura, por exemplo na área das artes performativas, são empresas unipessoais.

O Manifesto fez algum tipo de apelo eleitoral?

Sim. O Manifesto teve uma reunião nacional no início deste ano e emitiu um comunicado em que faz uma avaliação muito crítica da governação do PS, afirmando a nossa responsabilidade pela queda do governo de direita e a criação de condições para a tomada de posse deste governo. Achamos que a própria abertura deste novo ciclo política permitiu também melhores condições para a luta, não permitiu melhores condições para se alcançar aquilo que se queria. Mas a luta intensificou-se e organizou-se melhor.

Mas qual foi a mensagem eleitoral?

O que nós dizemos em relação a estas eleições é que há estes eixos que nós defendemos. Responsabilização do Estado, defesa do direito de todos a toda a cultura, o direito de todos à criação, a defesa do trabalho contra a precariedade, contra o desemprego, contra o trabalho não remunerado e exigência de 1% para a cultura do Orçamento de Estado como patamar mínimo e 1% do PIB como objetivo a alcançar. Isto deve ser, na nossa opinião, aquilo que deve orientar os portugueses para distinguirem os partidos que se empenharam nesta luta daqueles que estiveram fora dela.

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