Entrevista

Internacional

Ponte e Sousa: “Esperar pelo reconhecimento coletivo na UE do Estado palestiniano é a desculpa perfeita para não fazer nada”

Investigador e professor universitário, dedica-se também à análise da realidade geopolítica em vários meios de informação. Pedro Ponte e Sousa considera que o direito à legítima defesa de Israel não é aplicável e que as medidas repressivas em vários países contra as demonstrações de afeto dos povos com a Palestina representam um retrocesso democrático.

De que forma é que acha que se enquadra esta nova escalada em Gaza nesta nova dinâmica geopolítica dos últimos dois anos?

Estamos a ver um aumento de tensões. Para além da questão da guerra entre a Ucrânia e a Rússia, para além da questão da Palestina, tivemos a questão do Nagorno Karabakh e continuamos com a tensão sobre Taiwan. Há também uma crescente tensão nos Balcãs, ainda que sem uma materialização, e, portanto, parece estarmos a entrar num contexto, ou num período histórico, de uma maior violência. Ao mesmo tempo, é difícil determinar o que é que isto vai significar. Ou seja, há quem entenda que estamos claramente a caminho de um confronto entre os Estados Unidos e a China, que seria absolutamente inevitável, ou então que os Estados Unidos acomodam a ascensão da China e, portanto, esse conflito inevitável fica resolvido. E que, de alguma forma, estes conflitos parecem encaixar já numa espécie de prelúdio do que poderia ser uma espécie de Guerra Fria 2.0. Eu não discordo totalmente desta ideia, mas tendo a desconfiar sempre da ideia de uma política inevitável ou de uma realidade inevitável, seja ela histórica ou das relações internacionais.

Parece haver uma predisposição para focar, do lado de Israel, a ideia de que os acontecimentos começaram a 7 de outubro. É curioso porque no conflito na Ucrânia tentou fazer-se a mesma coisa com o 24 de fevereiro. Acha que se tenta tirar contexto histórico para não ajudar a ler melhor aquilo que se está a passar?

Para criar uma narrativa mais fácil, mais digerível, e isso é muito evidente, não é? Aliás, ficou evidente, no caso da guerra Ucrânia-Rússia, e ficou agora evidente no conflito entre Israel e Hamas. Quem procura contextualizar, ou explicar causas e consequências, é visto como estando a justificar determinadas ações. E isso é um problema para professores, para investigadores, para cientistas cujo objetivo é precisamente explicar. E o objetivo de ser explicado significa que nós temos que ir à procura mais para trás das causas, do processo de decisão, dos players envolvidos, de uma série de coisas que não são a justificação dos atos, mas que são uma explicação daquilo que aconteceu, das motivações, dos objetivos, o quer que seja.

Fala-se muito do direito à legítima defesa, no caso de Israel, mas também poderíamos considerar que Gaza, ou as forças de resistência palestinianas, também poderiam reclamar que têm direito à legítima defesa, uma vez que lutam contra uma ocupação.

No caso ucraniano, o facto de não termos presente o tal contexto ajuda a validar a ideia de que em 24 de fevereiro começou qualquer coisa que nada tem a ver com o momento anterior. E, portanto, ajuda claramente a estabelecer uma narrativa que encaixa na ideia do direito à legítima defesa. No caso da ação que Israel conduz é um pouco mais difícil porque é muito evidente, é muito fácil olharmos para trás e percebermos o contexto de tensão e de violência que é exercido e como ele tem consequências para o ato terrorista, ou para o ato do Hamas, e para tudo o que venha a acontecer assim. Por exemplo, Francesca Albanese, Special Rapporteur das Nações Unidas para a Palestina, diz que não há um direito de defesa, do ponto de vista do direito internacional, de Israel neste caso. Porquê? Porque há um regime de apartheid, porque há um risco de genocídio e vários atores políticos e líderes têm demonstrado intenção nesse sentido. O direito à defesa implicaria, segundo ela, um outro Estado. Ou seja, um ataque de um Estado sobre outro, o que encaixa naquilo que vemos na Ucrânia, mas não encaixa aqui. Porque o combate que Israel está a fazer, em sentido estrito, não é contra outro Estado – até porque nem sequer o reconhece – é contra o Hamas e há a questão da ocupação, ou seja, do território ocupado ilegalmente.

A União Europeia considera que a questão dos dois Estados é a solução política para resolver o conflito mas estamos há anos à espera que se dê esse passo. Porquê?

Eu acho que um caso interessante para olharmos para isso é justamente o caso português. Porque a alegação que o governo fez ao longo dos tempos é “bom, nós entendemos que a solução de dois Estados é a mais adequada, mas não acreditamos num processo individual, casuístico, tem que ser um projeto, tem que ser uma decisão concertada mais ampla”. Que é uma desculpa perfeita para não fazer nada. É verdade que esse reconhecimento teria um papel mais forte num quadro internacional. Bom, mas a verdade é que esse reconhecimento cabe aos Estados, não cabe a um grupo de Estados, não cabe a uma coletividade mais acima do Estado, ou mais ampla do que o Estado, cabe ao Estado e, portanto, o Estado tem toda a liberdade e toda a autonomia para o fazer e, se assim entende, pode e deve fazer. Aliás, em Espanha tem-se discutido esta possibilidade e tanto é que, no âmbito do Conselho da União Europeia, de que Espanha tem neste momento a presidência rotativa, aquilo que Pedro Sanches já afirmou é que não sendo possível um avanço, um entendimento conjunto alargado sobre esta questão, Espanha vai ela própria avançar e reconhecer a Palestina. Não esquecermos que a presidência da UE é rotativa e daqui a um mês e pouco, cabe à Irlanda e a Irlanda será, do conjunto dos Estados europeus, aquele que historicamente tem uma maior proximidade com a Palestina e que melhor tem compreendido a luta do povo palestiniano. 

Parece haver aqui algum espaço de manobra ligeiro, com o apoio da Bélgica que também tem estado um pouco mais assertiva nesta questão, agora, fundamentalmente, nós não temos visto movimentações significativas dos Estados europeus e isso é um problema. É um problema para a União Europeia, para os Estados europeus a médio prazo, do ponto de vista da credibilidade, para outros líderes políticos mundiais, para o conjunto do Sul Global, olharem para a resposta que a União Europeia tem dado a este conflito e dizer “então onde é que está a vossa defesa dos direitos humanos? Onde é que está a vossa defesa do direito internacional, do direito internacional humanitário? Tão chocados, tão preocupados que estiveram – e bem – com uma guerra na Ucrânia, e tão desinteressados, tão pouco mobilizados para um conflito que, em boa medida, nas suas raízes, é também estimulado por Estados europeus”. 

Temos assistido a um conjunto de medidas repressivas contra bandeiras, contra manifestações, contra todo o tipo de demonstrações de afeto com a causa palestiniana. Também na guerra da Ucrânia aconteceu um pouco isso contra a cultura russa. Sente que há um retrocesso democrático?

Sem dúvida. Temos tido manifestações com centenas de milhares de pessoas. Um bom exemplo disso tem sido o Reino Unido. Temos visto um forte apoio das cidades europeias ao povo palestiniano, não só ao povo palestiniano mas, enfim, contra a violência exercida sobre civis. Isto foi evidente no 7 de outubro e tem sido evidente daí por diante, na resposta indiscriminada que Israel tem dado sobre civis. Quer em França, quer na Alemanha, quer noutros Estados temos visto protestos serem banidos, nomeadamente, com a justificação de um aumento no antissemitismo que, como é evidente, não se nega que esteja a acontecer, mas a verdade é que temos aqui um profundo problema de discriminação e de liberdade de expressão em risco, nomeadamente quando vemos algumas das detenções ou algum do material apreendido [que é] absolutamente inócuo. Portanto, prisões em protestos pacíficos ou detenções em protestos pacíficos, evidentemente que nos devem chamar à atenção e nos deve preocupar porque significam um retrocesso de direitos, liberdades e garantias, que, como o nome diz, estariam garantidos nas democracias europeias.

Podemos dizer que Israel é a única democracia no Médio Oriente? Porque muitas vezes é esta retórica que se usa para tentar justificar porque é que devemos estar do lado de Israel e não do lado, digamos, dos bárbaros, dos incivilizados, dos violentos. 

Há quem estude, especialmente, a qualidade da democracia em Israel. E a qualidade da democracia em Israel tem tido muitíssimos desafios. Um aumento do extremismo e da polarização à direita, é muito visível ao longo dos últimos 25 anos, nomeadamente com a chegada ao poder de Netanyahu, com a consolidação destas direitas radicais e das extremas direitas. Falarmos da qualidade da democracia é importante em cada um destes casos, mas é sobretudo importante falarmos dela no caso de Israel. E é mais importante falarmos dela no caso de Israel, não porque seja a única democracia, não é esse o ponto, mas porque é uma democracia que trata de forma diferente, diferentes cidadãos. Ou melhor, diferentes pessoas. Trata de forma diferente, em primeiro lugar, colocando no topo desta pirâmide qualquer cidadão com origem judaica e que tem sempre o direito ao retorno, seja em que circunstância for, em qualquer latitude, seja há quanto tempo que esteja longe da sua terra, da sua pátria, tem o direito de regresso, tem apoios, tem a possibilidade de se instalar, portanto, em que tudo isso lhe está garantido. Depois, temos num segundo nível, já com menos direitos, o conjunto de cidadãos que são palestinianos, os cidadãos palestinianos de Israel são cerca de milhão e meio. E esses cidadãos vivem, não como os primeiros sem qualquer discriminação sistémica, mas sim já com discriminação legal e de facto. Ou seja, em que tendo direito ao voto, têm uma série de limitações concretas, nomeadamente, do ponto de vista da residência e questões muito concretas, diárias, da vida quotidiana, onde podem viver, o acesso aos serviços públicos, a participação no sistema político, onde os seus direitos já são inferiores. E depois vamos por aí abaixo. E ir por aí abaixo quer dizer o quê? Os cidadãos palestinianos de Jerusalém Oriental têm ainda menos direitos e, nomeadamente, não têm, por exemplo, direito ao voto. Abaixo destes estão os palestinianos da Cisjordânia, com ainda menos direitos, e são mais de dois milhões de pessoas, e abaixo destes são os pouquíssimos, quase nenhum conjunto de direitos dos palestinianos em Gaza que estão, enfim, barrados da possibilidade de viver fora de Gaza desde 2007.

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