Sociedade

Tiago Mota Saraiva

“A habitação é um problema silencioso”

O arquiteto Tiago Mota Saraiva alerta para a tendência de se sofrer silenciosamente com a questão da habitação quando o que se exige é “sairmos da nossa individualização do problema, do nosso agregado e começar a construir respostas comuns”. E avisa o governo: “Tem de escolher! Ou está do lado de quem está a sofrer todos os aumentos, todos os problemas relativamente à falta de casas, ou está do lado de quem anda, andou e continuará a andar a especular”.

“Um edifício vazio vale mais que o edifício com pessoas, mesmo que tenham rendas altas.”

Como chegámos a esta cidade em que a população é chutada para a periferia, substituída por alojamento local e fundos imobiliários?

David Harvey, [geógrafo e professor de antropologia da Universidade da Cidade de Nova Iorque] diz que a cidade é o reflexo mais claro da luta de classes. Dependendo das políticas públicas e das formas de urbanizar, são mais extremadas ou menos extremadas. Em Lisboa, no Porto e em grande número das cidades do país, entre 1987 e 2011, 75% do investimento público na área da habitação foi financiado com crédito bancário. Num processo de proprietarização das casas.  Durante estes 25 anos, o maior programa de realojamento foi o PER, que representou 3% deste valor. Com a liberalização das rendas, dependendo única e exclusivamente do Banco Central Europeu, as taxas começam a subir. Aí as pessoas começam a sentir que não são bem detentoras das suas casas. 

São inquilinos da banca.

Esta estrutura de negócio fornecida pelo sistema foi muito simpática para a banca portuguesa que conseguiu criar o seu grande negócio, o crédito.

E retomando o tema da cidade… 

Os processos de gentrificação sempre existiram. Tenho para mim que Lisboa e Porto estão a ser motivo de grande experimentação. Há políticas públicas já bastante agressivas de contenção deste processo, por exemplo em Barcelona, e durante uns tempos também em Madrid. Neste momento, olha-se para Portugal como um local de experimentação. 

Experimentação como? 

Fala-se muito do investimento estrangeiro, que cria pressão, pela maior capacidade económica, e provoca uma pressão urbanística extrema, também sobre quem tem crédito imobiliário. As pessoas sabem que devem 100 mil euros ao banco em Lisboa, e que a sua propriedade agora vale 300.000€. Se venderem saldam 100.000 €, mas com 200.000 € já não compram na cidade e têm de se afastar. É um fator de pressão e de afastamento ao longo dos anos. 

E, o que é que isso significa se não for travado?

A ideia do capital é trabalhar entre períodos de grande subida e de grande baixa. É necessário ao capital que haja uma grande baixa. A determinada altura estes centros vão esvaziar-se, por estarem esvaziados de interesse. Ninguém quer ir a uma Disneylândia – uma Lisboa antiga a fingir que é fado.  Aí o turismo deve tender a desaparecer. As redes de turismo viram-se para outros lados e nós ficamos com a ruína. Aí começa a ser outra vez mais barato vir para os centros. São processos clássicos. Sucedeu em São Francisco, nos EUA, os centros são vampirizados, produz-se mais-valia e, de repente, é muito caro, muita gente vende em alta o que tinha, sai e o centro fica vazio.

A opção dos anos 90 em Portugal — quem quer habitação compre-a — não resolveu o problema nem fez baixar os preços das habitações.

Falhámos muito na habitação pública. Houve uma perspetiva ideológica de venda, até 2015. A orientação das políticas públicas, apoiada pela União Europeia, proibiu o Estado de financiar a habitação.

Falhámos muito na habitação pública. Houve uma perspetiva ideológica de venda, até 2015. A orientação das políticas públicas, apoiada pela União Europeia, proibiu o Estado de financiar a habitação. A porta de abertura para o seu financiamento vem com o pacto de Amesterdão – de que a habitação é um dos 12 temas. E voltamos a ter o financiamento da habitação. Além da escassez de habitação pública, o dogmatismo neoliberal das políticas públicas atacou ferreamente a habitação privada de cariz não lucrativo – todo o sector cooperativo e dos mutualismos, cuja grande maioria passou para o mercado livre e passou a operar com e como todos os outros.

Porquê a aposta na política de crédito?

Todos os partidos, no pós-25 Abril, defenderam o crédito bonificado. É criado, na primeira intervenção do FMI em Portugal. Todos os partidos o defendem porque tem a ver com uma lógica: todos os trabalhadores devem ter direito ao crédito, o que não aconteceu durante o fascismo. É uma reivindicação do direito ao crédito e do direito à propriedade. No entanto, mesmo quem tinha projetos cooperativos de propriedade colectiva, nos anos 80 e 90 foi incentivado a mudar para a lógica individual, e para o mercado livre. Embora já não estejamos no âmbito do crédito bonificado, é bom avaliar a política. Quem teve crédito bonificado não devia ter podido vender no mercado livre, mas sim no mercado regulado.

As pessoas que venderam beneficiaram do negócio?

Grande parte dos nossos fracos rendimentos está alavancada em operações destas, com o imobiliário. Isso fez com que se tapasse, de alguma forma, os nossos baixíssimos rendimentos. As pessoas iam-se de alguma forma safando com estas operações de venda e compra. Quando tentamos desenhar políticas públicas para as questões da propriedade privada, temos de ter consciência de que há uma parte do rendimento, seja no alojamento local, seja na própria venda, que é um ativo de pessoas que não são proprietários ricos. Tudo o que se faz no direito à propriedade deve ser cirúrgico. Deve-se ir onde se deve ir: às grandes estruturas da mais-valia.

Tudo o que se faz no direito à propriedade deve ser cirúrgico. Deve-se ir onde se deve ir: às grandes estruturas da mais-valia.

Os proprietários não são todos iguais?

As associações de proprietários fazem sempre este discurso terrorista: “vão tirar a casa do velhote, vão tirar a casa do imigrante, vamos tirar todas as casas do mercado…” Deve intervir-se do ponto de vista cirúrgico. 

Como?

É admissível que um fundo imobiliário compre um imóvel no centro de Lisboa ou Porto, despeje as pessoas e o mantenha vazio sabendo que daqui a cinco anos ele vai valer mais? Esse fundo imobiliário tem num prédio, dez fogos e dois de comércio, o único trabalho que faz é uma malfeitoria ao edifício. Quer esvaziá-lo para depois o vender mais caro. Um edifício vazio vale mais que o edifício com pessoas, mesmo que tenham rendas altas. Há um estudo interessante da Saskia Sassen, urbanista da Universidade de Columbia, em torno desta questão: na cidade ultra-especulada, a propriedade vale mais se estiver vazia. O que vale mais é o que se pode especular,  que se pode projetar que valha, e não o valor real. 

Na cidade ultra-especulada, a propriedade vale mais se estiver vazia. O que vale mais é o que se pode especular,  que se pode projetar que valha, e não o valor real. 

Como é que o respeito pelo direito à habitação pode modificar a cidade?

No desenho das estruturas autárquicas temos quase sempre o vereador da habitação, que acumula com as áreas sociais, e o vereador do urbanismo que acumula com o espaço público. Tem de se começar a perceber que a grande forma de produção da cidade está nas questões da habitação. A habitação pública era sobretudo assistencialista, e o urbanismo era o grande centro do dinheiro. Habitação e urbanismo têm de ser cosidos para não entrar no loop valorização, valorização, valorização, depreciação do preço, venda em alta, o susto provocado pela baixa, e queda muito grande. Funciona exatamente como a bolsa.

Essa dinâmica de mercado não resolve o problema da habitação. 

Quem sai do centro também provoca a gentrificação do sítio para onde vai. Chega à periferia com os 200.000 € e faz subir os preços. 

E qual é a solução?

Não há uma solução única. Há que construir habitação pública, construir habitação para renda acessível. Construir os 26 mil fogos e mais, vai ter de se continuar a construir depois de 2026. Há que começar a construir com uma ideia de retirar habitação privada do mercado, ou seja, regular o mercado. A habitação com apoios públicos, com taxas de crédito aceitáveis, para cooperativa, para o setor mutualista, que consigam-se encaixar nas políticas públicas de produção de habitação não especulativa, e que consigam, também eles, criar um mercado. Fala-se muitas vezes de 40% da habitação social que existe em Amesterdão, por exemplo, ou Zurique, que é sobretudo da área cooperativa. É habitação privada. Não é pública, é habitação com apoios públicos e está totalmente impedida de entrar no mercado livre. Portanto, presta uma função social importante. O que for ou tiver financiamento público, na área das cooperativas das IPSS, o que seja, não deve sair do mercado regulado. E as políticas de habitação são sempre de médio e longo alcance. Nunca se conseguem resolver a curto prazo – essas são zonas de emergência.

Terá de existir habitação suficiente para cobrir a carência de habitação e a habitação em péssimas condições

Já foram entregues as estratégias locais de habitação de 230 municípios. Faltarão umas 80. Dos dados destes 230, sabemos que há 80 mil famílias a viverem em condições indignas. Sejam 100 mil, no país todos. Também sabemos que temos umas 600.000 casas em situação de carência e emergência extrema. Segundo os censos, temos 723 mil casas vazias. Não sabemos bem onde estão, mas sabemos que destas 48 mil são em Lisboa. Ou seja, Lisboa tem 15 por cento das suas casas vazias.  Carnide é a freguesia com menos casas vazias, Santa Clara a segunda. Com mais casas vazias é Arroios, 3890, depois Misericórdia, Penha de França e Estrela, 25% das casas vazias está no centro da procura.

Arroios é uma zona que temos a sensação de estar sobrelotada.

Provavelmente Arroios será a freguesia do país com mais casas vazias e onde há maior procura. Um imóvel vazio em Arroios valoriza-se imenso. Isto pode ter a ver com coisas conjunturais: parte significativa dos muitos prédios em Arroios eram detidos pela fidelidade. Houve um processo de venda aos fundos imobiliários que os esvaziaram. 

A questão da habitação divide os partidos portugueses. A direita acha que o direito de propriedade é inatacável e a esquerda defende que o direito à habitação se lhe sobrepõe.

Neste momento, creio que ninguém tenderá a mexer no direito à habitação. É consensual que é um problema. O negacionismo já é muito residual. Tirando de algumas pessoas, de alguns partidos como o Chega.

Como vê as medidas do Plano de Habitação proposto pelo governo?

Ainda estamos para perceber as medidas anunciadas pelo governo. Se for para mobilizar fogos devolutos e vazios para arrendamento, são boas medidas. Se for para regular os aumentos de renda para novos contratos e, finalmente, encontrarmos uma solução para contrariar o mercado ultra especulativo de arrendamento, são boas soluções. Se for para agilizar o processo de licenciamento e tornar os procedimentos administrativos mais céleres, são boas medidas. Se for para fazer borlas fiscais, licenciamentos, a todos aqueles que já beneficiaram com o alojamento local e agora querem entrar no mercado especulativo, é uma má medida. Se for para falar nos devolutos e depois nada concretizar e nada fazer, é uma má medida. Se for para encontrar formas de isenção para os fundos imobiliários, para depois os fundos poderem arrendar por valores astronómicos casas ao Estado, é uma má medida. Há que saber onde queremos ir buscar estes fogos e onde queremos intervir. E há que saber quem anda a especular e a ganhar muito dinheiro com isto. Portanto, tudo vai depender daquilo que forem os diplomas legais, mas também a operacionalização de cada uma destas medidas, operacionalização de cada um destes programas políticos. Porque a questão é política, ou seja, não vamos poder agradar a gregos e a troianos. Neste momento o governo tem de escolher: ou está do lado de quem está a sofrer todos os aumentos, todos os problemas relativamente à falta de casas, ou está do lado de quem anda, andou e continuará a andar a especular.

E à direita?

O PSD apresenta uma solução que aponta para mais construção nos terrenos rurais e não urbanizados. Por exemplo, em Lisboa, se calhar em Monsanto seria um desses sítios. Também para o resto do território. Julgo que a estrutura da proposta que o presidente do PSD apresenta tem a ver com a maior densificação, altura e construção nova.

E quanto à resposta pública?

É muito importante criar movimento de contestação e de alerta para muitas pessoas que não têm voz, cujos problemas não chegam aos programas da comunicação social, e que estão com graves carências.

Tem de haver uma resposta efetiva das pessoas. Reforço muito isto. É muito importante criar movimento de contestação e de alerta para muitas pessoas que não têm voz, cujos problemas não chegam aos programas da comunicação social, e que estão com graves carências. Este problema da habitação é um problema muito silencioso. Por outro lado, é preciso começar cada um de nós a gerar alternativas. E não é cada um para seu lado. Uma construção de resposta de esquerda tem a ver com sairmos da nossa individualização do problema do nosso agregado, para tentarmo-nos safar, e começar a construir respostas comuns. E para isso o Estado também tem de estar a apoiar. Não de nariz empinado, como juiz a avaliar. Tem de estar ao lado das pessoas, ajudar a criar soluções. Foi assim que foram criadas as cooperativas, muitas das soluções das previdências. Mesmo durante o Estado Novo houve este entendimento de que grupos de classe profissional se podiam organizar e para sua auto-defesa, quando não havia segurança social, poderiam construir e, entre pares, dar uma resposta habitacional e de segurança social.

Esses modelos foram desaparecendo.

Foram. E foram todos para o mercado livre. Agora têm de ser tomados e isso depende de nós para além dos ciclos eleitorais.

Há a questão da periferia. Populações com muitas dificuldades, para as quais muitas vezes as soluções de habitação dita guetizada.

Vamos só tratar o tema da habitação no quadro da democracia. Tivemos um grande movimento que durou muito pouco tempo. Foi o das operações SAAL, quando, a seguir ao 25 de Abril, se começaram a construir respostas com as populações, e em grande articulação com o Estado, representado por técnicos no terreno. A ideia era ajudar as pessoas organizadas em movimentos, associações de moradores e cooperativas. Nunca se iniciava um processo sem os moradores estarem organizados. Ganhavam capacidade de protesto, mas também forma jurídica e responsabilidade. Essa foi a primeira opção. Isso derivou depois, nos anos 80, em muitos dos movimentos cooperativos. O SAAL morreu, só durou um ano e meio. Mas é um programa muito marcante a nível nacional e internacional. 

Muito pouco tempo. 

Foi destruído pelo 25 de Novembro e perseguido. É preciso dizer isto. 

Que respostas houve entretanto?

Depois tivemos outra operação, já desenhada no período do cavaquismo:  o PER. Foi o início das PPP [parcerias público-privadas].  A articulação era feita entre o Estado, o empreiteiro e as construtoras. Numa lógica tripartida: uma parte para habitação social, outra condicionada, outra para especulação imobiliária. Muitas vezes a habitação dita social ficava atrás. 

Como?

Ficava sempre nas partes piores, com os piores espaços públicos e resultou neste engarrafamento das pessoas. As políticas eram muito tratadas entre os municípios e os empreiteiros e são muito poucos os bons exemplos de projetos interessantes do governo do Estado, e são muitos os casos de bairros que criaram um problema com que estamos a tentar lidar. São bairros onde, por exemplo, os espaços do habitat, o espaço público, são tremendamente desastrosos. Ficam longe dos equipamentos públicos, longe de tudo, longe das cidades, longe da urbanidade.

Tem a ver com um esquema de fazer cidade, empurrar as pessoas para as periferias. É preciso avaliar o que se está a fazer agora. Para mim é particularmente importante o entendimento da Lei de Bases da Habitação, que foi um avanço histórico, que define que a casa não é só aquilo que está para dentro da porta da rua. São também os espaços coletivos e públicos.

Espaços importantes 

Isso faz parte do habitar. Deve produzir-se habitação para se produzir cidade. Acho que temos condições para fazer coisas novas. Mas receio que estejamos muito na filosofia PER. É preciso fazer, fazer, fazer, e há pouco cuidado com o que se faz. 

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