Entrevista

Saúde

“Vulnerabilidade económica é factor de alto risco para a saúde psicológica”

É psicóloga, especialista em psicologia clínica e da saúde. Edite Queiroz trabalha na Ordem dos Psicólogos que, no contexto da pandemia, tem produzido documentos e informações no sentido de apoiar a população e decisores na gestão prática dos diversos desafios associados às consequências da doença, contribuindo para a promoção da saúde psicológica.

Há quem antecipe uma epidemia de doenças mentais devido à pandemia. Que tipo de consequências cognitivas e comportamentais podemos esperar?

A prevalência de doenças psiquiátricas em Portugal é das mais elevadas da Europa (um em cada cinco portugueses tem um problema de saúde psicológica), pelo que, numa situação de incerteza, com efeitos em tantas esferas da vida, e antecipando uma crise social e económica que sobreviverá à pandemia, não será surpreendente o aumento destes problemas, quer na população geral, quer em grupos com vulnerabilidades prévias. A evidência mostra já um aumento generalizado deste tipo de problemas. Falo, por exemplo, de crises de ansiedade, ataques de pânico, exaustão emocional, perturbações de sono, mas poderão aparecer quadros mais graves de stress pós-traumático ou aumento dos números do suicídio. Sabemos que a venda de antidepressivos e ansiolíticos em Portugal disparou logo em Março, uma subida de 28% face ao mesmo período no ano anterior. Existem grupos mais vulneráveis: os idosos, os desempregados, os que têm menos escolaridade, os que vivem em zonas rurais ou os portadores de doenças crónicas ou problemas psicológicos pré-existentes. Os profissionais de saúde estão também muitos expostos, sujeitos a quadros de exaustão que podem levar a um “desgaste empático”. Num país onde quase um milhão de pessoas vive sozinha, o impacto da pandemia na solidão pode também ser enorme. 

Quais são os fatores de risco?

Existem diversos factores associados a uma maior vulnerabilidade psicológica, por exemplo, o nível educacional, viver ou não sozinho, ter ou não problemas prévios de saúde psicológica ou física, ter ou não um trabalho precário. Muitas das medidas que nos foram impostas são, em si mesmas, factores de risco – por exemplo, a quarentena, o isolamento físico, o distanciamento social – na medida em que provocam tristeza, ansiedade, variações de humor, raiva, irritabilidade, solidão e desconexão social e podem conduzir ao aumento dos conflitos, a comportamentos de abuso de álcool e substâncias, violência doméstica, ciberdependências, comportamentos auto-lesivos, etc. Existe também a questão dos lutos, individuais e comunitários, por todas as perdas associadas à pandemia (não me refiro apenas às mortes em concreto, mas à perda de empregos, de segurança económica, de conexões sociais). O dilúvio diário de informação a que somos sujeitos é também um factor de risco. Gera ruído, agrava a ansiedade e o medo, aumenta o sentimento de falta de controlo e diminui a tolerância à frustração e ao stress. Mas a conjuntura global de incerteza e imprevisibilidade constituirá o principal factor de risco para uma verdadeira crise de saúde mental. Para muitos, a pandemia implicou a paragem da actividade profissional, a perda do emprego ou o layoff, enquanto outros continuaram a trabalhar e permaneceram expostos. Ambas as situações são complexas. A generalização do medo da doença e de um futuro incerto agrava ainda desigualdades sociais pré-existentes (por exemplo, no acesso a cuidados de saúde) e a discriminação e estigma para com grupos socialmente excluídos. Acrescem as dúvidas sobre os efeitos colaterais da pandemia, com consequências extensas nos lares, na sociedade e na economia: famílias destruturadas, perda de rendimentos, desemprego, abandono escolar.

Pode o desenvolvimento das crianças ser afetado pelos constrangimentos no seu dia-a-dia?

Os problemas psicológicos das crianças e jovens têm vindo a crescer em Portugal e são os principais preditores de problemas de saúde psicológica na vida adulta. As crianças, tal como os adultos, sentem preocupação, ansiedade e medo (medo de morrer, medo da morte dos pais) e são profundamente afectadas pelo que se está a passar. As medidas que têm vindo a ser implementadas desde o início da pandemia (o encerramento das escolas, a restrição ou inibição dos encontros com amigos e colegas, a educação online, etc.) têm sido altamente disruptivas das rotinas e geradoras de monotonia e desapontamento, stress e ansiedade. É comum identificarmos a escola como a grande promotor do desenvolvimento cognitivo, subvalorizando o seu papel fundamental no desenvolvimento social e emocional. A escola é o local onde as crianças recebem apoios fundamentais para um desenvolvimento pleno. Na altura em que as escolas foram encerradas, um dos maiores problemas prendeu-se com a falta de estrutura, de estímulos e de oportunidades de brincar e de receber apoio essencial para o bem-estar. O isolamento físico torna ainda as crianças mais sedentárias, mais vulneráveis aos efeitos negativos de uma utilização excessiva da tecnologia. Uma combinação de crise de saúde pública, isolamento social e recessão económica pode realmente conduzir a efeitos adversos em termos desenvolvimentais, não só em termos psicológicos, mas também físicos.  

A imposição do estado de emergência com todas as suas restrições afeta de que forma a sociedade?

O estado de emergência tem um efeito transversal profundo, com efeitos práticos imediatos no quotidiano das pessoas e efeitos negativos na saúde psicológica. Por maior disponibilidade que todos tenhamos para aderir às recomendações, o facto é que o estado de emergência suprime a vivência plena de várias dimensões da vida – a socialização, o lazer, o acesso à cultura – e nos coloca num paradigma de paralisação da vida social, remetendo para uma lógica de mera sobrevivência que é contrária ao bem-estar e à saúde psicológica. A restrição das liberdades individuais, muitas vezes em situações em que o racional é difícil de entender porque a comunicação não é a mais adequada, pode ser contraproducente, especialmente num momento em que 60% da população sofre já da chamada fadiga da pandemia, o que implica, entre outras coisas, uma disponibilidade diminuída para seguir recomendações e uma maior propensão para reagir negativamente. É importante que as pessoas se sintam parceiras do Estado no combate à pandemia, ao invés de únicas responsáveis. 

A permanente exposição ao alarmismo mediático potencia a ansiedade e o pânico?

Sem dúvida. Quando somos expostos a tal quantidade e diversidade de informações, facilmente se gera a confusão, o pânico e reacções exacerbadas. Refiro-me a estatísticas sobre o número de infectados e de óbitos ou notícias sobre as dificuldades nos sistemas de saúde ou as vacinas em desenvolvimento, que muitas vezes nos chegam de forma descontextualizada, são contraditórias ou mesmo falsas. É natural que acabemos por cair na tentação de difundir fake news que podem bloquear respostas eficazes ou aumentar comportamentos de risco. Uma comunicação descontextualizada e alarmista contribui para o aumento do estigma e para a fragmentação da sociedade, polariza grupos sociais e incentiva comportamentos cada vez mais extremados. Isto constitui um problema porque a comunicação adequada do risco é, de facto, uma ferramenta essencial no combate à pandemia. Deve ser clara e honesta, e evitar o sensacionalismo a todo o custo. Isto só se consegue comunicando com base na evidência científica, centrando a comunicação nas pessoas, dirigindo informação específica para grupos específicos. A linguagem deve ser simples e factual, mas incluir referências, estratégias, práticas e a acontecimentos positivos (por exemplo, em vez de uma cobertura extensa sobre a morte de uma celebridade por COVID-19, relatar casos recuperados) que possam incentivar a confiança e promover um sentimento de cooperação e esperança. 

O teletrabalho é hoje uma ampla realidade. Que impacto pode ter na vida dos trabalhadores e das famílias? 

A crise pandémica veio agravar a falta de equilíbrio entre vida familiar e profissional, um problema já antes identificado. O teletrabalho não é uma tendência nova, mas a sua generalização quase instantânea e a necessidade de conjugação do trabalho com as tarefas domésticas, o apoio aos filhos e a assistência aos mais velhos são circunstâncias com riscos acrescidos para os trabalhadores, do ponto de vista físico e psicológico. Mesmo em situações ideais, existem desafios complexos para quem trabalha em casa – por exemplo, a sensação de isolamento, a manutenção da motivação, a gestão do tempo, a dificuldade em desconectar. A própria ilusão de uma certa autonomia (por exemplo, na organização dos horários) é uma falácia: aquilo que a evidência nos mostra é que os trabalhadores tendem a trabalhar mais horas em trabalho remoto, e por isso, o horário de trabalho estipulado facilmente resvala para uma espécie de disponibilidade contínua que corresponde a uma invasão do espaço e do tempo privado, social, de lazer. Conheço várias situações em que o trabalhador se manteve a trabalhar estando doente. Em suma, transportar o trabalho para o espaço doméstico pode agravar a exposição a diversos riscos psicossociais, por exemplo, o presentismo ou o burnout.

A OMS oficializou o burnout como doença crónica em 2019. O burnout é um dos grandes problemas da pandemia?

A evidência científica demostra que o esgotamento emocional e psicológico tem um preço elevado, com impacto directo na saúde física e psicológica, no funcionamento individual e social e no desempenho profissional. A pandemia veio agravar o nível de exigência em que a actividade profissional é desenvolvida, particularmente em sectores como a saúde ou a educação, somando desafios pessoais complexos a factores de stress ocupacional pré-existentes. Falo, por exemplo, na sensação de isolamento, na sobrecarga de trabalho, na sensação de ser ultrapassado pelas circunstâncias, aliada a um sentimento de desamparo ou no reconhecimento insuficiente por parte de responsáveis e/ou da comunidade. O bem-estar e a resiliência emocional dos profissionais de saúde e professores são componentes-chave da manutenção de serviços essenciais durante a pandemia, é importante definir estratégias informadas pela evidência científica para prevenir e intervir nos riscos psicossociais associados a estas actividades – por exemplo, aumentar a conscientização sobre burnout no trabalho, garantir a disponibilidade de apoio psicológico a estes profissionais, melhorar as práticas e políticas organizacionais enfatizando a prevenção e tratamento do burnout e promover práticas de atenção e autocuidado, ou seja, acções de promoção da própria saúde e bem-estar.
Isto inclui uma boa alimentação e higiene de sono, reservar tempo para si e para a família, não abdicar de atividades de lazer, etc.

A integração social e o acesso ao emprego são fundamentais para o bem-estar. São adequadas as políticas de saúde pública para paliar os efeitos da pandemia?

A pandemia exacerbou os problemas da estrutura contemporânea de trabalho. Fez disparar os números do desemprego e layoff em todo o mundo, com consequências directas nos rendimentos das famílias, na capacidade de subsistência, na saúde física e psicológica. Esta situação não é apenas terrível para quem perde o trabalho, mas provoca uma enorme insegurança nos que o mantém. Por exemplo, pessoas com trabalho precário são particularmente vulneráveis a problemas económicos, menos capazes de lidar com o desemprego e mais propensos a perder seus empregos durante crises. O aumento da insegurança no emprego é muito problemático. A pandemia veio destacar a precariedade das condições de trabalho de muitos trabalhadores e expor ainda mais a desigualdade de um mercado de trabalho em que as pessoas com mais recursos são mais capazes de resistir a crises. Os trabalhadores mais vulneráveis são aqueles com menor capacidade de lidar com a perda do emprego e a doença. Muitos trabalhadores precários não têm acesso a apoios governamentais ou organizacionais (por exemplo, seguro de saúde), embora sejam os mais expostos ao risco de stress crónico e a condições de trabalho perigosas. Esta situação conduz a taxas mais elevadas de problemas de saúde psicológica e física, que, por sua vez, aumentam a vulnerabilidade à própria COVID-19. É fundamental examinar o que esta crise nos diz sobre o mercado de trabalho, investigar aspectos como a insegurança no trabalho ou o trabalho temporário e desenvolver abordagens para diminuir o trabalho precário.

A injustiça social, a pobreza, o desemprego e a ausência do Estado podem ser fatores de risco?

Todas as crises económicas são seguidas de um aumento da pobreza e das desigualdades, sendo sabido que o stress provocado pela vulnerabilidade económica é factor de alto risco para a saúde psicológica. A pobreza pode actuar como causa ou consequência, já que a ansiedade e depressão se associam a um efeito de deriva social. Mas a COVID-19 faz distinções de classe, do ponto de vista da propagação, das consequências e do estigma. As taxas de disseminação são mais altas em contextos desfavorecidos, com consequências mais graves em grupos sociais minoritários ou socialmente estigmatizados. Idosos, pessoas com deficiência ou doença mental, populações indígenas, refugiados, migrantes, sem-abrigo e minorias étnicas estão entre os grupos de experienciam maior marginalização social e económica. Estão mais dependentes da economia informal, ocupam áreas e territórios desprotegidos, têm menor acesso a serviços sociais e de saúde ou à tecnologia e menores capacidades para lidar com as consequências da crise. Também em Portugal, a propagação da COVID-19 acompanha o mapa das desigualdades. A pobreza ou a exclusão social atinge mais de metade da população desempregada, para quem a ausência de recursos financeiros se traduz em más condições de alojamento, dificuldades de acesso a educação e a cuidados de saúde, circunstâncias agora agravadas pela pandemia. Não é surpreendente que o ressurgimento de focos da doença se verifique nas periferias residenciais mais desfavorecidas das áreas metropolitanas, onde a ausência de possibilidade de teletrabalho ou a necessidade de continuar a trabalhar para garantir a subsistência obrigou a população a sujeitar-se a uma maior exposição à infecção.

Tem havido mais recurso a psicólogos?

Sim, sem surpresas, houve um claro aumento da procura por serviços de psicologia durante a pandemia. Dados os constrangimentos actuais, muitos psicológicos adaptaram rapidamente as suas práticas e passaram a disponibilizar serviços online, o que permitiu que muitas pessoas mantivessem ou passassem a ter acompanhamento psicológico em momentos mais críticos da pandemia. Existem orientações específicas para a intervenção em meio virtual. Mas infelizmente estamos longe de poder dizer que o apoio psicológico tem condições para chegar a todos os que dele necessitam. 

E não devia haver um serviço público maior de acompanhamento psicológico da população nas diferentes vertentes da vida?

Os efeitos psicológicos da pandemia vão continuar a fazer-se sentir e a afectar cada vez mais pessoas. Mas lamentavelmente, apesar do aumento previsível de problemas de saúde psicológica e do aumento da procura que já registamos, o número de psicólogos no Serviço Nacional de Saúde é muito reduzido (menos de três psicólogos para cada 100 mil habitantes). É evidente que os psicólogos, enquanto especialistas no comportamento humano, podem dar um enorme contributo, quer do ponto da prevenção, quer da intervenção ou ainda da difusão da difusão de informação fidedigna e da comunicação de comportamentos pró-sociais e pró-saúde. Entre outros benefícios, o acesso a serviços e cuidados de saúde psicológica pode contribuir para o aumento da literacia em saúde psicológica, para a adopção de comportamentos e estilos de vida saudáveis, para a diminuição dos comportamentos de risco e das desigualdades em saúde e para o aumento da longevidade e da resiliência.  O reforço do número de psicólogos no Serviço Nacional de Saúde, se antes era altamente desejável, agora é urgentíssimo. 

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