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Ana Sezudo

“O governo tem uma visão muito marcada pelo assistencialismo”

Foram marginalizados durante séculos. Durante o fascismo eram encerrados em asilos e apartados da sociedade. Se a revolução permitiu que as pessoas com deficiência conquistassem importantes avanços, 45 anos depois, são um setor da população que permanece invisibilizado e discriminado. Ana Sezudo é presidente da maior organização de pessoas com deficiência. Fundada em 1972, a Associação Portuguesa de Deficientes é o rosto dos que lutam por um país que seja para todos.

Este continua a não ser um país para pessoas com deficiência?

Não é de modo algum. Basta olhar à nossa volta para nos apercebemos dos imensos obstáculos que se colocam às pessoas com mobilidade reduzida e do muito pouco que é feito para assegurar que estas possam aceder aos equipamentos, bens e serviços que existem na sociedade portuguesa. Não me refiro somente a pessoas com deficiência motora, mas também aos cegos, aos surdos e pessoas com deficiência intelectual.

Qual é o balanço que a APD faz desta legislatura?

O governo tem uma visão ainda muito marcada pelo assistencialismo. As duas grandes medidas que foram adotadas revelam bem isso. A Prestação Social para a Inclusão, não obstante a sua grande importância para as pessoas, que até à sua criação e estando desempregadas não tinham qualquer outra prestação social, é isso mesmo: uma prestação social.
Lamentamos que questões impactantes como a acessibilidade, a educação, o emprego não tenham merecido a necessária atenção. O diploma sobre a educação tem falhas graves que merecem uma reflexão profunda, nomeadamente atribuir às escolas competências para decidir em quase tudo o que se relaciona com os apoios a prestar aos alunos com Necessidade Educativas Especiais, incluindo a alteração dos técnicos para a composição das equipas multidisciplinares, já reduzida a um mínimo intolerável e ao determinar que todos os apoios a prestar tenham como base os recursos disponíveis em cada escola.
Notamos no entanto que ao nível da Assembleia da República houve um aumento considerável de propostas e iniciativas para as quais as organizações de pessoas com deficiência foram chamadas a pronunciar-se como foi o caso da transferência de competências para as autarquias, das políticas de habitação e de educação.

Como avaliam a implementação dos
boletins de voto em braile para cegos?

Entendemos que foi um passo importante para os cegos, uma vez que puderam votar sem acompanhamento. Todavia, existem sempre aspetos a melhorar. Foram reportadas algumas dificuldades na utilização dos boletins porque os elementos que faziam parte das mesas de voto, por vezes colocavam o boletim de voto ao contrário na matriz o que causou alguma confusão aos eleitores.

O que há a fazer para atrair mais pessoas com deficiência para as urnas?

Quase tudo. Desde as campanhas eleitorais que deviam ser acessíveis para cegos, surdos e pessoas com deficiência intelectual, até à possibilidade de as pessoas com mobilidade reduzida poderem deslocar-se na via pública e em transportes públicos adaptados, bem como aceder às assembleias de voto e às urnas de voto. Muitas pessoas podem querer votar mas o problema começa muitas vezes na própria habitação que não é acessível. São tantos os obstáculos para que as pessoas com deficiência possam exercer o seu direito de voto que é um ato de coragem fazê-lo nas atuais circunstâncias. Daí a pouca participação nos atos eleitorais.

Como tem sido a relação do Estado português com as organizações das pessoas com deficiência? Tem havido apoios financeiros?

Em primeiro lugar o governo, contrariamente à Assembleia da República, em matéria de participação das organizações representativas das pessoas com deficiência na definição, acompanhamento e monitorização das políticas de deficiência criou um órgão de consulta que pela periodicidade das reuniões e pelas competências que lhe foram atribuídas não corresponde às exigências que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência impõe. A Comissão de Políticas de Inclusão das Pessoas com Deficiência que integra o Conselho Nacional para as Políticas de Solidariedade e Segurança Social reuniu duas vezes para eleger os membros do Conselho e pouco mais. Não foi chamada a pronunciar-se sobre medidas que foram tomadas ou que estão em discussão, daí a pouca importância de que se reveste para as organizações.
Em termos financeiros a Associação Portuguesa de Deficientes tem sido subfinanciada e, no presente ano, sofreu um corte de 17.820,98 euros face ao ano passado, o que vai ter consequências graves no funcionamento da APD. Foi solicitada uma audiência ao Ministro do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social que remeteu o assunto para a Secretária de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência que não tem competência para decidir numa matéria como é o financiamento.

O que significou para as pessoas com deficiência o modelo de vida independente com assistentes pessoais?

O modelo de apoio à vida independente é uma forma de assegurar o apoio de uma terceira pessoa através de um centro de vida independente. O que se denomina por assistente pessoal, segundo o modelo de vida independente criado pelas organizações de pessoas com deficiência é uma coisa muito distinta do que foi adotado no nosso país, já que os assistentes pessoais são contratados e pagos pelas próprias pessoas com deficiência, e no caso de Portugal são pelos centros de vida independente. Por outro lado a vida independente não se restringe à existência de assistentes pessoais, passa também pela criação de condições de acesso físico, à educação, ao emprego, à cultura, etc.

Quais são os principais obstáculos para que uma pessoa com deficiência possa ter uma vida economicamente independente?

Desde logo, os problemas de integração nas creches e jardins-de-infância que condicionam a socialização e a aprendizagem. Depois, uma escola que não dá resposta às necessidades dos alunos com deficiência em termos de adaptação física e pedagógica, facto que limita o acesso a uma educação de qualidade e se vai refletir no percurso educativo dos alunos com deficiência. Por fim, a dificuldade em aceder a um emprego pelas questões de acesso já identificadas mas também pelos preconceitos que ainda existem na sociedade e nos empregadores.

O que mais pode ser feito para reduzir a enorme taxa de desemprego entre pessoas com deficiência?

Educação de qualidade, eliminação dos obstáculos no meio edificado, na via pública e nos transportes e no local de emprego. Sensibilização da sociedade em geral e dos empregadores em particular para as capacidades e potencialidades das pessoas com deficiência de modo a que a ideia pré-existente dos custos que as empresas têm que despender para adaptar o local e o posto de trabalho são elevados. Nalguns casos esta adaptação pode ter de ser apoiada pelo Estado, mas na esmagadora maioria dos casos os custos são muito reduzidos.

No dia-a-dia, são muitas as barreiras
arquitetónicas que vemos nas cidades. O parlamento comprometeu-se três vezes com eliminar esses obstáculos físicos das nossas cidades. Como é que se falha três vezes prazos que tinham a duração de uma década?

De facto, temos legislação, normas técnicas elaboradas e o Estado não as cumpre. Começa desde logo pela responsabilidade da fiscalização que compete quer à administração central, quer à administração local que pouco se vêem a dar cumprimento e a efetivar a fiscalização e aplicação das normas técnicas ao meio envolvente, tal como define o diploma em vigor. Acho que neste momento podemos dizer que o principal obstáculo é a falta de vontade política.

Por vezes, assistimos à imposição cultural de modelos de beleza nas telenovelas, filmes, anúncios e desfiles de moda. Como é que seria possível desconstruir esta realidade que mostra ser tão redutora?

Não será fácil inverter os padrões que as grandes marcas impõem todos os dias e que as telenovelas ou filmes adotam, ainda mais quando hoje a informação tem tantos canais de divulgação à sua disposição. Achamos que a educação para a diversidade e para a importância e beleza da diversidade tem de começar na escola. Os canais públicos devem também ter um importante papel a desempenhar em vez de se travestirem de canais privados para chamar audiências.

Há quem entenda que no direito à
sexualidade se possa explorar a ideia de “assistentes sexuais” pagos para satisfazer pessoas com deficiência que não tenham capacidade de o fazer. O que pensa disto?

Este é um tema bastante controverso e que exige uma discussão aprofundada entre as pessoas com deficiência. No entanto, o que podemos dizer é que provavelmente as dificuldades sentidas pelas pessoas com deficiência nesta área das suas vidas, será mais uma consequência de vivermos numa sociedade que ainda não compreende nem entende a diferença e a diversidade como fatores positivos para o seu crescimento e desenvolvimento.

Durante o fascismo, as pessoas com
deficiência eram apartadas da sociedade mas, de vez em quando, ainda se assiste a notícias que dão conta de famílias que encerram os seus filhos, pais, etc. Por que ainda acontece isso?

Porque há um atraso cultural imenso no nosso país. O fascismo deixou marcas que ainda persistem e vão continuar a manter-se se não houver uma política educativa e cultural que ponha termo aos estereótipos e preconceitos. Também há um egoísmo crescente na atual sociedade acrescido de dificuldades económicas que muitas vezes impedem a contratação de uma terceira pessoa para acompanhar as pessoas idosas. Falta também um modelo de vida independente que permita aos pais terem uma vida produtiva enquanto o seu filho tem o acompanhamento devido.

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