Entrevista

ANNA KUZNETSOVA

“Batalhões nazis aterrorizaram a população”

Anna Kuznetsova tem 25 anos e é professora de russo numa escola técnica em Donetsk, onde vive desde sempre. Prefere não dar a cara porque teme represálias contra familiares que estão do outro lado da linha da frente, na parte da região separatista de Donbass sob controlo das tropas ucranianas. São oito anos de uma guerra civil que se internacionalizou com a entrada da Rússia no conflito.

Anna prefere não dar a cara porque teme represálias contra familiares que estão do outro lado da linha da frente. / Ilustração: Maria Lis

Por que razão decidiu Donbass insurgir-se contra o governo de Kiev em 2014?

Em Donetsk e Lugansk, como noutras cidades da Ucrânia, o povo revoltou-se em 2014 como resposta ao golpe neoliberal de extrema-direita, mais conhecido como Euromaidan. Este golpe ficou conhecido por ter sido liderado pelo governo dos Estados Unidos. Até 2014, a Ucrânia era um país bastante democrático, tão democrático como um Estado burguês pode ser. As pessoas, especialmente nas regiões pró-russas, compreenderam o que o novo governo estava a trazer: reformas neoliberais, nacionalismo ucraniano extremista e uma revisão da história.

Estes protestos tinham um caráter popular. Muitas pessoas ficaram em choque com os acontecimentos em Odessa a 2 de maio de 2014, quando militantes de extrema-direita, apoiados pela polícia, mataram 50 pessoas. Muitos deles foram queimados vivos na Casa dos Sindicatos, e aqueles que tentaram fugir do edifício em chamas foram espancados até à morte.

Os protestos contra o golpe foram brutalmente reprimidos. O terror começou na Ucrânia. Culminou numa guerra civil contra as proclamadas Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk.

Como testemunha desses acontecimentos, eu diria que a maioria das pessoas aqui presentes apoiou a ideia de independência. Entre aqueles que não apoiaram a revolta encontravam-se sobretudo homens de negócios, membros da classe média e alguns intelectuais. Ou seja, o apoio à secessão da Ucrânia veio principalmente da base social, da classe trabalhadora.

Por vezes, vejo que na imprensa ocidental estes acontecimentos são apresentados como um conflito étnico entre russos e ucranianos. Do meu ponto de vista, isto não é verdade. Donbass é etnicamente muito diverso. Por exemplo, eu sou descendente de russos, ucranianos e bielorrussos que vieram após a Segunda Guerra Mundial para reconstruir a região. Este conflito foi sobretudo ideológico. As pessoas não queriam admitir a dependência da NATO e dos Estados Unidos, não queriam as reformas ultraliberais que estavam realmente a acontecer na Ucrânia, não queriam a opressão da língua russa e não queriam a glorificação dos colaboradores nazis ucranianos. Existe aqui uma grande simpatia pelo passado soviético. Penso que esta é a componente mais importante da identidade de Donbass.

A 26 de maio de 2014, a aviação militar ucraniana começou a bombardear Donbass com aviões. Houve as primeiras baixas civis. Antes disso, o exército ucraniano começou a reprimir os motins noutras cidades de Donbass. O Estado ucraniano não chamou guerra civil à guerra civil durante todos estes oito anos. Chama-lhe operação antiterrorista, embora tenham sido o exército ucraniano e os batalhões neonazis que foram lançados para reprimir as regiões rebeldes que se comportaram como terroristas: bombardeando bairros residenciais, destruindo infraestruturas, privando as pessoas de direitos civis e intimidando a população.

Porque pensa que a Rússia define o regime da Ucrânia como regime nazi?

Esta interpretação está próxima da verdade. A Ucrânia estabeleceu um regime de direita semelhante aos da América Latina no século passado. Foi um processo de fascização. As autoridades utilizaram a extrema-direita para suprimir os opositores políticos. Houve uma revisão da história a nível estatal. Os colaboradores nazis ucranianos são considerados heróis. Os neonazis criaram organizações para crianças.

Em Donbass, os batalhões nazis desencadearam o terror contra a população local. Organizações internacionais de direitos humanos documentaram os crimes de unidades como Azov, Aidar, Donbass e Tornado, que torturaram residentes locais, levaram a cabo execuções extrajudiciais, extorquiram propriedades e cometeram violência sexual.

Apesar dos acordos de paz, assinados em Minsk, a Ucrânia continuou a bombardear-vos como dizem os russos.

Sim, é verdade. As zonas da linha da frente são particularmente afectadas. Agora os bombardeamentos continuam. Vi que os meios de comunicação ocidentais por vezes colocam fotografias de Donetsk como se fossem da Ucrânia.

E é verdade que o vosso presidente, Zakharchenko, da autoproclamada República Popular de Donetsk, também ele membro das conversações de paz, foi morto por uma bomba colocada pela Ucrânia num café?

Confio nas informações oficiais do nosso Ministério da Segurança do Estado.

O que é que acha que as populações de Donbass pensam sobre a intervenção militar russa?

Tenho a impressão de que o nosso povo simpatiza com os civis que foram mantidos reféns pelo regime de Kiev, mas deseja uma rápida derrota do regime odiado de Kiev. Agrada-me que o nosso povo seja, na sua maioria, desprovido de ódio pelos ucranianos.

A Rússia usa a palavra genocídio para definir o que estava a acontecer em Donbass. Acha que se tratou de um genocídio?

Parece-me que se trata de uma disputa terminológica. Penso que é melhor chamar-lhe terror. Mas isto não diminui a criminalidade dos actos do governo ucraniano.

Donbass, território rebelde

Até 2013, viviam na região de Donetsk 4.43 milhões de pessoas, o que constituía 10% da população total da Ucrânia. Era não só a zona mais populosa e densamente povoada do país como era um dos principais bastiões económicos do país com importantes cidades industriais.

De acordo com o Observatório da Transição de Regiões Intensivas em Carvão, a produção industrial em Donetsk permanece elevada, apesar de nos últimos quatro anos (2017 em comparação com 2013) o volume da produção industrial na região ter diminuído 2,4 vezes. Em 2016, a região de Donetsk ocupava a segunda posição entre 24 regiões da Ucrânia pela quota de produtos industriais vendidos no volume total de vendas na Ucrânia. No que diz respeito à estrutura setorial, a região é aquela que tem a parte predominante de especialização mineira e metalúrgica: as indústrias dominantes são a metalúrgica (47,1%) e a mineira (15,2%), que surgiu como resultado da orientação histórica da economia do país para a exploração extensiva dos recursos naturais durante a União Soviética.

De acordo com dados oficiais de 2016, com a guerra civil, a quota do setor terciário na região diminuiu significativamente (de 50% para 40,0%, em 2016), principalmente devido à redução dos volumes de comércio, despesas para a educação e serviços de saúde. A indústria emprega quase 45,0% da população ativa da região, 18,4% dedicam-se ao trabalho em apoio social, educação e saúde, outros 10,1% trabalham na administração pública e 7,3% no setor dos transportes.

Já a indústria mineira emprega cerca de 25,5% da população ativa, sobretudo na extração de carvão, e a metalurgia tem também um peso importante na economia da região. É este o contexto estratégico que faz de Donbass uma zona de importância económica. A norte do Oblast de Donetsk, encontra-se Lugansk, que, em 2004, tinha quase 2.5 milhões de habitantes. Com a mesma estrutura económica, a extração mineira era uma das principais atividades. Foram estas regiões que se autoproclamaram independentes em 2014.

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