Entrevista

Tiago Mota Saraiva

Tiago Mota Saraiva: “A habitação é o reflexo da luta de classes”

A liberalização do mercado de habitação em Portugal através da lei das rendas, implementada pelo governo anterior, rebentou em pleno processo de turistificação de Lisboa e outras cidades. Tiago Mota Saraiva, arquiteto, é um duro crítico das opções tomadas nas últimas décadas no que diz respeito à política de habitação e apresenta-se como defensor de novas formas de resistência para fazer frente ao poder das imobiliárias e dos grandes grupos financeiros. Acredita na força da organização popular e do cooperativismo. O arquiteto é precisamente cooperante do “Trabalhar com os 99%”, co-fundador do ateliermob, e é membro da Sou Largo, associação cultural.

O que significou este quadro legislativo, muito particular, para a habitação, em Portugal? Permitiu avanços ou foi insuficiente?

Estes últimos quatro anos, tiveram uma questão que eu acho que foi importante. Perceber-se que era inevitável uma alteração drástica de políticas e uma política pública no sentido da construção pública. Ou seja, incentivar a reabilitação pública do património público. Isso alterou-se e foram os primeiros quatro anos em que se começou a ver produção de legislação nesse sentido.

Isso acontece como reação às políticas do governo anterior?

Sim porque a bomba da lei das rendas estalou neste governo. Todas as medidas que se colocam relativamente à habitação demoram algum tempo a chegar ao terreno. Foi o caso. Portanto, houve uma necessidade de resposta tremenda. Daí haver um quadro legislativo em que os municípios ainda têm dificuldade de perceber o que é que está em cima da mesa. Ainda é difícil de mensurar os seus resultados, até porque as próprias políticas estão cá fora, mas é a sua prática que vai ditar o que elas vão ser de facto. Mas são grandes avanços. A lei de bases da habitação é um avanço significativo. É um direito conquistado durante o 25 de Abril que estava atrasado em termos de regulamentação.

Que efeitos práticos é que esta lei terá?

Os efeitos práticos da lei de bases ainda estão por disputar. Ou seja, há muita coisa que tem que ser clarificada. A regulamentação vai ser muito importante. Há coisas que são significativas. Por exemplo, com a lei de bases da habitação um município já não pode fazer um processo de realojamento lidando individualmente com as pessoas. Tem de lidar com a associação de moradores. É obrigatório, havendo uma associação de moradores constituída, que essa associação tome parte. Como é que vai tomar parte, como é que vai ser se se der um parecer desfavorável, o que é que vai acontecer, isso ainda está tudo por saber. A habitação é o reflexo da luta de classes. É onde está neste momento a luta de classes mais efervescente.

Até porque no salário o gasto com a habitação é o que pesa mais.

É a lógica de teres de comprar a tua casa e para isso 90% dos trabalhadores que não tinham condições para comprar casa tiveram de se endividar à banca que conseguiu assim garantir um imposto sobre o rendimento. Imposto que podia ir aumentando ou diminuindo conforme as decisões do BCE.

Um imposto perpétuo…

Sim. Eu tenho um crédito até aos 80 anos. Portanto, esta história da habitação ainda está por contar. Neste momento acho que é uma das áreas onde importa disputar mais, onde está mais clara a luta de classes. As pessoas estão muito mais abertas à radicalização das políticas de habitação do que os governantes pensam.

“Eu tenho um crédito até aos 80 anos. […] Neste momento acho que é uma das áreas onde importa disputar mais, onde está mais clara a luta de classes. Neste momento as pessoas estão muito mais abertas à radicalização das políticas de habitação do que os governantes pensam.”


Que ferramentas aprovadas ao nível da autarquia de Lisboa destaca? Tiveram algum impacto?

Lisboa, Porto e Algarve levaram com um furacão em cima, os alojamentos locais, turistificação… Toda uma pressão brutal em que os próprios municípios não têm capacidade de resposta. Na realidade, os municípios só têm um papel de paliativo, podem dar aspirinas mas não têm a cura. Um município deve ser ator neste processo da construção de habitação nova, é quem sabe mais da realidade do seu território, mas por outro lado um município que decrete que vai acabar com os problemas de habitação no concelho imediatamente é um absorsor de problemas, porque imediatamente começa a absorver as pessoas que não têm casa e vivem em condições indignas noutros municípios.

Portanto, tem que ser uma solução global.

Exatamente. Há políticas estruturais de território que têm de ser estabelecidas.

Há falta de vontade política para tratar da questão da gentrificação ou é, de facto, um compromisso que essas forças têm com as imobiliárias?

Acho que há uma questão que se sente na Assembleia da República. A proposta de lei de bases do PS que dá entrada com a chamada lei de bases da Helena Roseta é muito mais avançada que a lei de bases final. O próprio PS foi retirando componentes importantes que lá estavam. Por outro lado, neste momento as grandes estruturas de capital em Portugal estão a operar com o imobiliário e isso faz com que seja grande a capacidade que têm de produzir estudos a dizer a quadros dirigentes da administração pública que é um caos se fizerem uma pequena alteração ao que seja. Os grandes escritórios de advogados, que fazem as grandes operações financeiras em Lisboa e no Porto, estão neste momento, a dizer que tudo que mexe com a habitação é inconstitucional muito mais que as imobiliárias, que estão mais ou menos paradas… As pessoas estão muito mais disponíveis para falarem da municipalização de fogos. Por exemplo, uma das questões que eu achava fundamental estar na lei de bases e que não passou, tinha a ver com os direitos de preferência dos municípios poderem ser feitos a partir do valor patrimonial e não pelo valor de mercado. Se os municípios vão exercer o direito de preferência pelo valor de mercado vão estar a trabalhar para a bolha especulativa. Claro, pode surgir o argumento de que o proprietário precisa daquele dinheiro, que é um ativo quer vender e que vem o Estado e compra por metade do valor. Mas podemos até aceitar que o valor patrimonial de um edifício que não tenha sido vendido nos últimos dez anos possa continuar a ser avaliado pelo valor de mercado. Contudo, um edifício como os da Fidelidade, por exemplo, que foram vendidos e já estão outra vez à venda, está a alimentar a bolha especulativa. Ou seja, não se está a acrescentar nada ao edifício. Então, o Estado deve poder comprar pelo seu valor patrimonial. Ainda temos vários instrumentos por explorar que neste momento estão a ser usados pela Europa inteira. Berlim propôs um referendo para a municipalização de todos os fogos de entidades que tenham mais de 3 mil fogos dentro da cidade, por exemplo, e as rendas têm agora um teto máximo.

E o congelamento das rendas é uma opção viável?

Eu não defendo o congelamento das rendas. O congelamento bloqueia os valores como estão hoje e mantém o desequilibrios. Eu acho que o Estado deve ser racional e dizer que um T2 em determinada zona não pode custar mais do que tal valor.

A proposta do PS para a renda acessível faz sentido?

Eu acho que havia uma certa aspiração a que todos os senhorios entrassem na renda acessível para beneficiarem dos impostos e assim condicionar o topo da renda, mas não resulta. Nós precisamos de medidas mais robustas e isso na próxima legislatura vai acontecer de certeza.

Há pouco dizia que a luta de classes está muito presente na habitação. Que formas de resistência é que são possíveis hoje, neste contexto?

É preciso termos consciência de que temos a lei toda contra nós. É uma lei que não nos permite fazer muita coisa, isto foi engatilhado para ser assim. Portanto, a primeira coisa que há a fazer é acabar com a lei das rendas. Tem que ser feita uma lei das rendas que seja compatível com a realidade atual. É preciso criar algo que seja socialmente estruturante. Eu acho que falta o que é realmente importante, que se desaprendeu a fazer em Portugal, que é um mercado de habitação não especulativo, o mercado cooperativo. É um mercado onde as pessoas sabem que investem, mas sabem que não estão sujeitas ao valor do mercado, pões lá dinheiro, pagam uma renda que sabem quanto é e quando saem, saem com o dinheiro que puseram para outros entrarem com o mesmo valor. No caso do mercado cooperativo, se houver um grande boom de mercado, a valorização é coletiva, a absorção dessa maisvalia é para a cooperativa ou para o Estado, se for feita pelo setor público.

“É preciso criar algo que seja socialmente estruturante. Eu acho que falta o que é realmente importante, que se desaprendeu a fazer em Portugal, que é um mercado de habitação não especulativo, o mercado cooperativo.”

Como é que se avança com uma proposta dessas numa cidade como Lisboa?

Eu acho que há movimento popular para aí virado e é importante começar não só por manter esse foco de resistência. Ainda que a resistência legal nos seja muito difícil, com uma lei muito mais contrária à resistência do que em Espanha. Cá, se as pessoas resistirem a um despejo, no mês seguinte pagam duas vezes a renda que pagavam antes. Estamos a falar de um cenário que é extremamente difícil, perigoso e preocupante para as pessoas que tentam resistir. Portanto, eu acho que é muito importante trabalhar a outra questão, a exigência do regresso de um movimento cooperativo forte retomando a essência do que é o cooperativismo. Retomando a ideia de que a habitação não é para ser vista como mercadoria, mas antes como um direito básico. Ou seja, a tentativa de organizar esse esforço coletivo é particularmente importante. Senão nós temos resistência, resistência e mais resistência mas a cidade continua a esvaziarse e, amanhã, aquele que está a resistir ali à porta tem que se ir embora da cidade. Esta é uma luta muito difícil.

Para além das pessoas, também desaparecem associações e coletividades.

É enorme a quantidade de despejos de casas que tinham um papel social importantíssimo. Sobretudo, as coletividades e as casas regionais.

O que é que isso significa socialmente?

Significa uma total descaracterização da cidade do séc XX. Há coisas que já não se vão conseguir repor. É uma história do operariado que Lisboa está a destruir sem a escrever e isso preocupa-me.

Artigos Relacionados