“A nossa luta é pela libertação da comunidade em geral”

Jakilson Pereira é um dos dirigentes do Moinho da Juventude, associação comunitária da Cova da Moura que trabalha com a população. Abandonado durante anos pela autarquia e pelo Estado, este bairro da Amadora enfrenta a falta de investimento público. É uma luta de quem aqui vive e trabalha pelo direito a existir para lá do estigma alimentado pelo assédio mediático e policial.

Em que medida é que teres nascido em Cabo Verde te fez ganhar consciência social e política?

A consciência política ganhei-a porque sempre vivi muito a questão da luta de libertação. Era uma coisa de que sempre se falava entre os meus familiares, até porque tive alguns deles envolvidos nessa luta. Tinham ligação ao PAIGC e traziam informações do Senegal para Cabo Verde. Tive também um avô que foi cercado pela polícia política e teve de se esconder antes de fugir do país.

E como é que chegas a Portugal?

Eu vim para Portugal com os meus familiares mas não fiquei em Lisboa. Ainda regressei a Cabo Verde e acabei por voltar para Lisboa para ficar com o irmão do meu pai, já na Cova da Moura. Entretanto, licenciei-me em Educação Social porque, na altura, a minha ideia era fazer pedagogia mas depois o Eduardo aconselhou-me este curso, que tinha muita influência no Brasil por causa do Paulo Freire.

Falas do Eduardo Pontes, o fundador do Moinho da Juventude?

Sim, sim. Naquele tempo, eu ia para lá. Estava sempre com ele na biblioteca.

Achas que foi uma figura importante para ti, para a tua formação?

Foi uma figura importante porque, mesmo sobre a história de Cabo Verde, aprendi muito com ele. Lembro-me do livro Bastidores da Luta pela Independência. E ele fez parte do Centro de Intervenção para o Desenvolvimento Amílcar Cabral e tinha muito contacto com as pessoas do movimento [de libertação]. 

Como é que se deu o processo de fundação do Moinho da Juventude?

O Moinho da Juventude foi fundado pelos moradores. Há quem diga que foi por causa de um chafariz na parte de baixo da Cova. As pessoas juntavam-se e ali começaram algumas discussões sobre as condições de vida e fizeram um abaixo-assinado para terem uma rede de esgotos. Depois disso, juntou-se o sindicato das empregadas domésticas, que acabou por se diluir no tempo, mas acabaram por fundar o Moinho da Juventude que funcionava primeiro no sótão do Eduardo, depois foram para a Associação de Moradores e, mais tarde, vão para o primeiro edifício do Moinho.

Jakilson Pereira em frente a um dos espaços do Moinho da Juventude.

Hoje em dia, qual é que é o papel da associação no bairro?

A associação tem um papel muito importante e está junto das pessoas. Muitas vezes, quando acontece qualquer coisa no bairro, as pessoas vêm ter connosco e há uma relação de confiança. E a associação é uma associação da comunidade, para defender os interesses da comunidade. 

Como é que se explica a estigmatização que existe em relação a este bairro?

Eu acho que a estigmatização tem muito a ver com uma propaganda mediática que tinha de ser feita para nos expropriar daqui, para aqui ser construído um condomínio de luxo. Isso chegou até a ter projeto na Câmara Municipal. Na altura, os bairros à volta de Lisboa estavam a ser demolidos porque se criou um estigma no espaço geográfico. O problema não é o espaço, o problema que existe é que há muitas pessoas a viverem em condições precárias, muitas pessoas a quem a sua força de trabalho não é reconhecida, trabalham e continuam pobres. E há ainda o problema dos mais jovens, das pessoas que saem para trabalhar e que, com o dinheiro que ganhavam, não conseguiram colocar as crianças na creche. O Moinho conseguiu preencher essa lacuna no bairro. Hoje, temos uma boa estrutura de ATL, de creche, que acaba por dar um bom suporte às famílias, sendo que os jovens estão a ser mais acompanhados.

Achas que isso ajudou a combater essa imagem que existe do bairro?

Até certo ponto mas não no geral. Muitas vezes, há quem tente apresentar a Cova da Moura como se não fizesse parte do espaço geográfico português. A excecionalidade é utilizada de várias formas, entre elas o abuso de autoridade. Várias vezes, por exemplo, entre os agentes policiais, há jovens que vêm do norte, com toda aquela propaganda contra o bairro, vêm aqui sem nos conhecerem, já mentalizados para um cenário de guerra. Já conheci alguns que me falaram da ideia errada que tinham. Uma vez, estávamos na rua e estava uma miúda que era agente recém-formada e estava a tremer com uma arma. É uma coisa bastante perigosa porque, se acontece qualquer coisa, se um miúdo começar a correr ela pode disparar. E essa estigmatização criou-se e alimentou-se durante muitos anos.

Nós sabemos também que houve, claramente, nas esquadras da Amadora, a criação de uma rede de extrema-direita. Avisámos durante muitos anos. Tínhamos vídeos dos agentes com tatuagens de suásticas e foi-se alertando. O próprio relatório do SIS reconhecia isso. Chegámos a ver aqui agentes à noite a correr armados, a torturar pessoas, coisas horríveis.

Ouve-se muito falar da violência policial mas, para além disso, de que forma é que o racismo e a discriminação se refletem nas políticas públicas que há em relação ao bairro? 

Isso é visível, por exemplo, no único edifício público existente, que é a escola. E foi construída por volta de 1988. E depois vê-se nas ruas, vê-se na higiene urbana. Por exemplo, durante a campanha para as eleições autárquicas, alcatroaram as ruas à volta da Cova. O alcatrão termina na entrada do bairro.

Mural dedicado a Amílcar Cabral, histórico combatente pela libertação da Guiné e Cabo Verde.

A Cova da Moura não conta para a autarquia?

Não. As nossas ruas não são alcatroadas há muito. Nós temos aqui, para limpeza do bairro, duas pessoas. Nós estamos a falar de um bairro que tem à volta de 7 mil habitantes. É desumano pedir a duas pessoas que façam essa limpeza urbana. O bairro tem uma dimensão que justifica ter uma equipa de limpeza e não estou a pedir que as pessoas da Associação de Moradores deixem de fazer aquele trabalho, que é um trabalho meritório e com muito esforço, mas devíamos ter mais por parte da higiene urbana.

Mas essas duas únicas pessoas são da Comissão de Moradores?

Sim, isto é, através de um protocolo que com a Câmara, em que o valor que recebem é o salário mínimo para fazer a limpeza. Aliás, eu acho desumano pedir para eles fazerem mais, devia haver mais investimento. Há coisas inacreditáveis. Toda a gente ouviu em Portugal, na época, falar da iniciativa Bairros Críticos, destinada ao Bairro do Lagarteiro, ao Vale da Amoreira e à Cova da Moura. Todo esse investimento de que se falou na altura, que envolveu muito dinheiro, não foi aplicado na Cova da Moura. Fizeram um polidesportivo, que para nós foi um investimento completamente exagerado quando nós tínhamos mais necessidades do que aquele equipamento. Depois, usaram o dinheiro para obras de construção do Jardim dos Aromas, fora do bairro, na Buraca.

Para além da intervenção que fazes dentro do bairro, através do Moinho da Juventude, também fazes rap. 

Sim, ainda faço rap mas estou mais enferrujado. O rap foi uma boa via de emancipação, uma coisa boa que aconteceu na minha vida. No movimento, éramos muito influenciados pelos Panteras Negras e, mais tarde, fundámos a Plataforma Gueto porque entendíamos que o rap, por si só, não chegava para consciencializar e denunciar. Depois, quando houve o “Arrastão”, achámos que devíamos ter uma voz, passar informação de bairro para bairro, e criámos um jornal, o Gueto: olhos, ouvidos e vozes. Foi um sucesso. Nós íamos entregar o jornal e as pessoas sentiam-se orgulhosas e diziam “o nosso jornal, é o nosso jornal”. Mas até isso a polícia perseguiu. Um dia, bloquearam a estrada e vieram ter connosco: “Ó chefe, olhe os gajos da violência policial”. Vieram dizer-nos que a violência policial não existia, para não nos metermos nisso. Houve um que disse que tínhamos muita sorte, que ainda íamos dormir a casa naquela noite.

Estúdio de gravação na Cova da Moura.

Portanto, houve uma reação da polícia ao jornal.

Houve períodos bem complicados. Nunca nenhum cidadão comum me levou a tribunal mas a polícia levou-me quatro vezes com invenções de que os tinha agredido. Eles ficaram furiosos com o jornal. Sabiam que nós não estávamos a cometer nenhum crime e não tinham como nos meter dentro. Uma vez levaram-me para a esquadra, de noite, à espera que alguém denunciasse um roubo. Passado uma hora, apareceu uma senhora a dizer que tinha sido roubada e levaram-me para que ela me visse e disseram-lhe: “É ele, é ele, nós apanhámo-lo”. E a senhora disse que não, que não tinha sido eu. Já me agrediram, já me partiram o nariz, houve episódios muito maus.

Sentes que isso aconteceu porque tens sido um ativista em defesa dos direitos contra o racismo e contra a discriminação?

Isto na altura não foi só comigo, foi com todo aquele grupo. Lembro-me que quando decidimos fazer uma manifestação contra a morte do Kuku [jovem morto pela polícia no Bairro da Quinta da Lage], escolhemos não dormir no bairro. Durante uma semana perseguiram-nos para nos pressionarem. Através do rap e da plataforma denunciávamos a violência policial e os abusos. Todos nós passámos por prisão arbitrária. Depois dos sequestros e tortura em 2015 [caso que se tornou mediatico e que levou à condenação de oito agentes], houve uma diminuição mas ainda acontecem abusos. Já aconteceu de nos pedirem a identificação e ao mostrarmos o cartão de cidadão partiam-no.

A polícia?

Sim, diziam “essa merda não tem valor, até os cães podem ter isso”. E partiam o cartão.

Videoclip da canção Rap de Protesto, de Hezbo MC, nome artístico de Jakilson Pereira.

Entretanto, foste candidato pela CDU e foste eleito para a Assembleia de Freguesia das Águas Livres. Por que aderiste ao PCP?

Tem a ver muito a ver com a forma de trabalho e também com a linha ideológica marxista-leninista. Dentro da Plataforma Gueto, nós defendíamos princípios comunistas, só que não estávamos – falo por mim – em partido nenhum. Observava a forma como os partidos trabalhavam e havia nalguns a sensação de aproveitamento político de determinadas temáticas. E isso levou-me a analisar o trabalho de base que o PCP tem naquilo em que se envolve e o compromisso com as pessoas, isso foi uma das coisas que levou a aderir. Há um conjunto de militantes do PCP que estão em diferentes lutas mas não se querem expor e não são paternalistas.

Mas há quem diga que o PCP tem posições racistas.

Sobre essa questão, recordo que muitos movimentos de libertação, durante a guerra, disseram ter recebido muito apoio do PCP. Muita gente para conseguir chegar à Argélia ou a Conacri teve a ajuda do PCP. Há uma grande contradição hoje em dia. Há pessoas que dizem ser ativistas mas só existem nas redes sociais. Não conhecem os bairros, não conhecem as comunidades racializadas e intitulam-se porta-vozes. O PCP não instrumentaliza a luta para tirar daí proveitos. Há um falso movimento, há uma elite que utiliza a luta para fazer pressão para obter benefícios próprios, obter cargos. É uma instrumentalização da luta para obter benefícios individuais. E depois há uma grande rutura naquilo que é o pensamento da luta anti-racista. A nossa luta é pela libertação da comunidade em geral. Nós não vamos aos patrões e ao governo dizer “nós somos negros formados, esta sociedade deve dar-nos condições para nós, negros formados, termos o nosso escravo negro para nos servir”. Esta gente não quer saber das condições em que a comunidade vive, em que vivem as nossas crianças, a luta deles não é essa. Eu pergunto sempre, porque é que não estão preocupados com a luta das trabalhadoras da limpeza, que representam uma grande parte da comunidade? Ou com os trabalhadores das obras? Os Guaidó anti-racistas estão na moda e afirmam-se representantes das comunidades sem as consultar, sem as conhecer.

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