Aos 37 anos, foi escolhida para dirigir o Museu do Aljube – Resistência e Liberdade, um ano após ter deixado a Assembleia da República, onde foi deputada do PCP por 10 anos. Defende que o museu deve ser um espaço de preservação e construção da memória democrática, imprescindível face às tentativas de branqueamento do fascismo e fala da importância da mobilização social e participação das pessoas para a defesa dos direitos e da liberdade.
Agora que acaba de cumprir um ano à frente do museu, que balanço faz da sua experiência?
Sou suspeita, mas faço um balanço francamente positivo, tendo em conta a dinâmica do museu, num contexto em que tivemos períodos encerrados ao público, por força do confinamento. Quer ao nível das minhas expetativas, face ao que tinha perspetivado sobre a importância da valorização do museu, da valorização da mensagem da resistência à ditadura e do universo da resistência e da luta pela liberdade, pelo que foi possível fazer — de certa forma, reinventarmo-nos — quer ao nível da programação, da relação e do trabalho com as escolas, da própria dinâmica da equipa do museu e do que tivemos de criar em termos de trabalho, o balanço é francamente positivo. E é-o também face ao número de visitantes, à atividade regular do museu e à programação realizada. Foi possível chegar a novos públicos que nunca tinham visitado o museu, quer através da ligação com escolas e associações da cidade e da área metropolitana, quer através de visita livre e outras parcerias que desenvolvemos, com o Teatro Nacional D. Maria II, Atelier-Museu Júlio Pomar, Teatro São Luiz e Doclisboa. Temos sentido muita disponibilidade [dos visitantes] para conhecerem e regressarem para outras atividades do museu, por exemplo, a partir das exposições temporárias.
Da programação e das exposições que foram realizando e do contacto com as histórias de resistência, houve alguma coisa que a tivesse surpreendido?
Ao longo deste ano, confirmei uma perceção que tinha, de que o que para nós é adquirido como um conhecimento consensual e generalizado sobre a luta do combate à ditadura, não é assim, nem de perto, nem de longe, para toda a gente. E é uma perspetiva transgeracional, não é só da geração mais jovem dos mais velhos. A equipa e os mediadores que fazem as visitas orientadas ao museu partilham que, muitas vezes, quando estão a falar com pessoas mais velhas, estas desabafam que nunca tinham ouvido falar de determinado acontecimento. É preciso percebermos que, infelizmente, os impactos muito profundos de 48 anos de ditadura ainda limitam muito a própria memória da resistência e da luta pela liberdade. E claro que isso pode ser mais evidente em gerações que não viveram esse período, mas também em gerações que o viveram. Daí a importância da partilha de informações, experiências, testemunhos orais, que são a grande parte do espólio do museu.
Considero importante valorizarmos experiências de partilha e resistência mais organizadas do ponto de vista político, mas também experiências mais comuns, de muitos milhares de “anónimos” que participaram na luta contra a ditadura, muitas vezes sem ter a perceção de que muitos outros o faziam também, de forma mais organizada ou dirigida.
Para mim é muito evidente, ao fim de um ano de mandato, que a missão deste museu faz todo o sentido. É cada vez mais necessária e oportuna, pela preservação da memória, pela construção da memória democrática, mas também face às tentativas de branqueamento do fascismo que vivemos nos dias de hoje e, portanto, pela importância de denunciar efetivamente o que significou a ditadura no nosso país.
Porquê esta exposição, inédita, dedicada às Três Marias?
Queria muito trabalhar este tema. As questões das mulheres e das resistências tinha sido uma das linhas do meu projeto [de candidatura]. Quando comecei a pensar no ponto de partida à abordagem sobre as mulheres e a investigar, apercebi-me que em 2021 se cumpriam 50 anos do início da escrita das Novas Cartas. Comecei a conversar com algumas pessoas, algumas mulheres, não apenas da minha idade mas até mais velhas, e percebi que não há um grande conhecimento sobre a história das Novas Cartas Portuguesas e das Três Marias, daí a importância de a contar. As Três Marias surgem num contexto, mas antes destas Três existiram outras Marias, e depois existiram outras. De certa forma, trata-se de perceber que falar desta forma de resistência, através da literatura que elas desenvolveram, aconteceu enquanto muitas outras mulheres estavam a lutar por muitos outros direitos. E cruzar as histórias dessa forma tem esse interesse, de perceber que as lutas não eram isoladas, mesmo que tenham origens diferentes, percursos diferentes, mesmo que nalgum momento não sejam conhecidas por umas e por outras, mas são histórias que, de facto, quanto ao objetivo da luta pela liberdade, pela queda do regime e pelos direitos democráticos, pelos direitos das mulheres, tinham esse objetivo comum.
E o que é que dizem aqueles que foram aqui presos e torturados? O que é que sentem num museu que tenta resgatar a sua própria história e, simultaneamente, manter viva a memória de um período que tantas vezes se tenta apagar?
Da minha experiência, acho que existe uma grande humildade por parte de quem resistiu à ditadura e lutou pela liberdade. Se nós hoje estamos aqui neste museu, que foi uma prisão, a falar sobre estas questões, se existiu o 25 de Abril, devemo-lo a milhares de mulheres e homens que lutaram por isso de forma muito dedicada. Mas, regra geral, diria que quem o fez o assume de forma muito humilde, às vezes até como se fosse uma inevitabilidade ter lutado contra o fascismo. E não é assim, porque nem todos lutaram. O mínimo que podemos fazer é agradecer-lhes, homenageá-los e continuar a preservar a sua memória. É um compromisso, um dever deste museu. Acho que são experiências muito dolorosas, muito duras, sejam de familiares, filhos, sejam dos próprios resistentes. São experiências de muito sofrimento e muitas vezes são relativizadas porque são entendidas como “tinha de ser assim, não tínhamos alternativa”.Cabe a este museu dizer “claro que sim e somos gratos por isso” e, ao mesmo tempo, explicar que cada pessoa que resistiu tem uma experiência única de resistência, a forma como lidou com a tortura, com os contextos familiares, como tinha mais ou menos apoio. Cada história, por si, tem um valor próprio muito grande, seja o percurso de alguém mais organizado do ponto de vista político, ou alguém mais “anónimo”.
As crianças d’A Voz do Operário fazem parte deste circuito de visitas coletivas. Que papel pode ter um museu como o Aljube na formação da consciência dos mais jovens?
Todos os espaços de cultura devem ter uma ligação privilegiada com as escolas porque é através das escolas que chega o que chamo de público adotivo, que, muitas vezes, se não for através da escola, não tem acesso a espaços públicos de cultura e essa relação pode ser fundamental como política de formação de público: alguém que vem com a escola e gosta pode voltar, mais tarde, com os pais, amigos, familiares.
A ligação dos museus, e deste museu em particular, com a missão de educação para os direitos humanos, com a missão de valorização da história da resistência à ditadura, tem esse valor acrescido. Claro que com linguagens diferentes, em função de cada ciclo de ensino e do projeto pedagógico de cada escola. Mas o que é muito evidente é que a temática da liberdade, da luta pela liberdade, pode ser abordada desde o pré-escolar até ao ensino superior. Quando reabrimos, em abril, tivemos as crianças d’A Voz do Operário e foi muito interessante perceber, como disseram alguns mediadores da visita, que alguns alunos do primeiro ciclo tinham mais informação e referências sobre o museu do que vemos em algumas visitas com adultos. Acho que isso tem muito a ver com a forma como o Movimento da Escola Moderna trabalha o pré-visita e o pós-visita. A visita não é um ponto final, é um ponto de partida. É muito interessante perceber como não haver uma lógica expositiva mas uma lógica em que a visita é construída com eles e é partilhada faz toda a diferença na abordagem.
Queremos, no próximo ano letivo, continuar a desenvolver projetos com a A Voz do Operário e esperamos conseguir fazê-lo.
Hoje, com o crescimento da extrema-direita, vivemos num contexto em que existe uma batalha cada vez maior pelo relato histórico. Sente que este museu pode dar um contributo para o combate ao fascismo?
Acho que este museu dá esse contributo desde que foi fundado, em 2015. De resto, houve testemunhos que foram recolhidos logo nesse ano, e ainda bem que o foram porque muitas dessas pessoas, infelizmente, já faleceram. A decisão da criação deste museu e as primeiras decisões que se tomaram foram muito acertadas, nesse sentido. Este museu tem um compromisso democrático e isso não é coisa pouca, sobretudo se pensarmos que a maior parte dos museus, que são espaços de memória e de educação para os direitos humanos, não são frequentes na Europa. Em Espanha, ainda não foi possível constituir um museu com estas características. A memória é sempre um espaço de disputa. Por isso é que é fundamental a defesa e a preservação da memória democrática. Se não se contar, se não se partilhar, se não se instruir a memória a partir do que foram as experiências da resistência à ditadura e da defesa da liberdade e da democracia, este é um espaço que será ocupado no sentido inverso.
Há similitudes entre o discurso do fascismo em Portugal, que se pode observar nas paredes do museu, com estas novas organizações de extrema-direita?
Há dias, descobri na Feira da Ladra um livro de instrução primária em que, entre várias coisas, explicava a figura de Salazar e a necessidade do seu aparecimento e a forma como viria equilibrar as contas públicas e combater a corrupção. É muito arrepiante pensar que aquilo que ouvimos hoje é um discurso que já foi utilizado para legitimar uma ditadura. E isso significa que temos de desmontar esse discurso e perceber que esse discurso já teve um resultado: 48 anos de atraso profundo, de repressão, de violência num país, com impactos que hoje continuamos a sentir. Se de alguma coisa nos serve é para aprender com estratégias que já foram usadas no passado, não no sentido da emancipação mas da opressão e repressão. Uma forma central de combater o recrudescimento, a proliferação de movimentos dessa natureza, tem de ser através da educação e da cultura. Quanto mais pessoas visitarem este museu, quanto mais pessoas ouvirem testemunhos dos resistentes antifascistas, menos espaço há para que o discurso do ódio, da opressão, da exploração e da repressão ganhe espaço.
E, por isso a educação e a cultura têm aqui um papel fundamental, a educação para os direitos humanos, a cultura da resistência, a partilha desse universo é fundamental.
Estamos a dois anos dos cinquenta anos do 25 de Abril e teremos condições de fazer um balanço. Apesar de todas as dificuldades e do tanto que ainda há para fazer, muito foi feito e o país conseguiu avançar de forma extraordinária. Claro que poderíamos ter avançado muito mais, mas não é comparável. Acho que a qualquer tipo de ameaças, sejam mais ou menos institucionalizadas, é fundamental responder com a preservação e partilha da memória democrática.
Estão a preparar algum tipo de programação para os 50 anos do 25 de Abril?
O Museu do Aljube quer assinalar os 50 anos do 25 de Abril e queremos começar a fazê-lo já no próximo ano. Vai ser um momento fundamental de intervenção, partilha, de maior conhecimento sobre o 25 de Abril. Este museu explica que houve 48 anos de caminho até ao 25 de Abril. Existiram 48 anos de ditadura, mas também 48 anos de resistência. Devemos assinalar os 50 anos de 25 de Abril no sentido de gratidão para com quem resistiu e lutou pela liberdade, mas também enquanto inspiração para continuarmos a resistir, a lutar, porque nada está ganho para todo o sempre e é fundamental perceber que em todos os momentos históricos, a mobilização social e a participação das pessoas é que garante a defesa dos direitos e da liberdade.
E por isso é importante, no que está programado, ligar as questões da resistência às resistências de hoje: em torno das questões mais gerais da participação estudantil — para o ano fazem 60 anos da crise académica de 62 — em torno das lutas ambientais, das questões lgbtiq+, das questões das mulheres, do colonialismo e do anti-racismo.