Entrevista

Sociedade

Sandra Benfica: “O preconceito é um instrumento”

No dia 8 de Março, assinala-se o Dia Internacional da Mulher. Apesar dos avanços conquistados, subsistem muitas formas de discriminação. Sandra Benfica é dirigente do Movimento Democrático de Mulheres e considera que é através da luta que se defendem, se garantem e se cumprem os direitos das mulheres.

Estamos em 2021 e as mulheres continuam a ser discriminadas. É apenas fruto de preconceitos sociais ou esses preconceitos são consequência de uma discriminação que é instrumental para o sistema em que vivemos?

Se existe preconceito? Existe, como é evidente. Mas o preconceito não é a raiz dos problemas da discriminação das mulheres. Se quiser, o preconceito é um instrumento e é também uma consequência, da discriminação que é estrutural, da desigualdade que é estrutural. Os problemas fundamentais das mulheres prendem-se ao nível da desigualdade estrutural que existe na sociedade e decorre, naturalmente, daquilo que é a valorização do papel das mulheres na sociedade. E esse papel, particularmente ao nível do trabalho, do seu papel no trabalho, e também nas suas diferentes condições, nomeadamente também a valorização, ou a desvalorização, que se faz da maternidade. E, portanto, depois existe um conjunto de consequências mas algumas não são consequências, algumas são até muletas que servem, necessariamente, para garantir que as mulheres ficam confinadas nesse estatuto que, naquele período e naquele momento muito em concreto, interessa ou não ao capital. 

Podemos então dizer que a discriminação sobre as mulheres é estrutural?

É tão estrutural como a discriminação que existe sobre tantos outros grupos. Repare, quando se diz que a desigualdade entre países ricos e entre países pobres se vai acentuando, naturalmente que também entre homens e mulheres se vai acentuando, de acordo com aquilo que são os objetivos do sistema económico. As mulheres não são uma coisa, como costumam ser tratadas, como um grupo à parte, remetidas para o interno feminino. As mulheres são mais de 50% da população, as mulheres contribuem para o desenvolvimento do país, as mulheres, por exemplo, no quadro desta pandemia, estão na linha da frente e que ninguém venha dizer o contrário. São elas que estão nas linhas avançadas, são elas que estão na saúde, são elas que estão na educação, são elas que estão nos cuidados, são elas que estão na maior parte dos serviços que são considerados absolutamente essenciais e, no entanto, são elas que continuam a ter os salários mais baixos, são elas que continuam a ser discriminadas de uma forma absolutamente aviltante.

É isso que explica a discriminação salarial?

Claro, evidente. Aquilo que nos roubam do nosso salário não vai para o salário dos homens [trabalhadores].

Há quem entenda que haver mais mulheres em cargos de chefia ou em cargos de administração de grandes empresas permitiria esbater essa desigualdade.

Bom, se nós formos ver em algumas empresas, cujos cargos de topo são ocupados por mulheres, e se formos analisar se isso fez aumentar ou diminuir, neste caso, a discriminação salarial, por exemplo, ou as discriminações indiretas que vezam sobre as mulheres, eu acho que não há nenhuma evidência nesse sentido. Naturalmente que o MDM sempre se bateu, e bate-se, para que não haja nenhuma discriminação no acesso das mulheres, por exemplo, à carreira, como é óbvio. Mas nós não vemos a participação das mulheres apenas num âmbito de representação política, e neste caso representação política, por exemplo, na Assembleia da República ou nas autarquias, ou nas chefias das multinacionais. A nossa questão de princípio prende-se com a possibilidade, para já, de não haver nenhuma forma institucional de discriminação, como existia de proibição concreta da participação das mulheres em vários espaços da vida, mas a participação das mulheres não se esgota nisto. 

As mulheres para participarem precisam de ter condições sociais e económicas para o fazer. Portanto, não nos opomos a uma ideia de que as mulheres têm que ocupar lugares de topo, desde logo na administração pública, mas o que nos preocupa é por que é que as mulheres não os ocupam. E não os ocupam porque há atrasos muito substanciais naquilo que é a capacidade das mulheres progredirem na carreira. Mas vamos lá ver, há quanto tempo é que as carreiras estão congeladas? O problema do congelamento das carreiras é um obstáculo muito sério para que as mulheres possam ocupar lugares de topo e, portanto, isto tem que entrar na esfera daquilo que é a discussão desta matéria, não pode ser um ato isolado.

Mas existem desigualdades, também, dentro das paredes de casa.

Claro, não negamos, é uma evidência. Portanto, as mulheres continuam a ser discriminadas não apenas no quadro do trabalho mas no quadro também da família e no quadro da sociedade.

Que consequências é que a pandemia trouxe para a realidade das mulheres? 

Para já, creio que é preciso reconhecer que vivemos tempos muito difíceis, que têm um impacto profundo, a vários níveis, na vida das pessoas. E todos nós enfrentámos profundas tensões, muitas perdas, e muitas delas dolorosas, debatemo-nos, muitas vezes, com a impossibilidade de conciliar aquilo que é a vida profissional com a vida familiar, com a vida pessoal… Porque as mulheres também têm vida pessoal, têm direito ao lazer. É verdade que usam pouco, têm pouco usufruto desse direito. 

É verdade que enfrentamos uma pandemia, é verdade que ela tem que ser enfrentada mas é verdade também que tem tido um impacto terrível e profundamente desproporcional na vida das mulheres. A economia continua a funcionar, com muitas dificuldades, com grandes perdas como nós sabemos, e que terá seguramente, num futuro próximo, consequências muito mais dramáticas do que já tem na realidade ou que já tem hoje, mas as mulheres continuam a trabalhar. E continuam a trabalhar em números elevadíssimos. São elas que estão, como dizia, que estão na linha da frente. Se formos aos hospitais, quem são as pessoas que estão a trabalhar, na maioria? É um setor de mulheres, no essencial. E não estou só a falar das médicas e das enfermeiras. Quem é que mantém os supermercados a funcionar? São, no essencial, as mulheres. Quem é que mantém a educação, no essencial, a funcionar? São as mulheres.

As que estão em teletrabalho estão com uma sobrecarga familiar brutal, estão a trabalhar muito mais horas, estão permanentemente ligadas. Recebemos algumas denúncias, por exemplo de mulheres muito jovens, mães com os filhos em casa, que trabalham, por exemplo, na teleassistência e que estão permanentemente com as crianças aos gritos e não conseguem, de forma alguma, garantir nem o bem-estar da criança, nem acompanhar a escola em casa, nem efetuar o seu trabalho. Quantas delas não estão a assumir também o cuidado dos seus ascendentes, das pessoas mais idosas, acompanhando os seus pais. Há de facto uma sobrecarga muito grande sobre estas mulheres. 

Existem diferentes realidades entre as próprias mulheres. O MDM tem trabalho sobre isso?

No que diz respeito às mulheres com deficiência, há várias realidades porque há muitos tipos de deficiências. Há mulheres que têm deficiência e que trabalham, há mulheres que são mães de pessoas com deficiência e que não deixam de também estar no quadro desta realidade e, portanto, preocupa-nos muito o pouco conhecimento. Ou seja, as mulheres imigrantes, as mulheres com deficiência, são as mais invisíveis de todas nós e, portanto, nós não conhecemos, neste momento, a extensão do impacto que isto está a ter nas suas vidas. Mas dou um exemplo muito concreto: as mulheres ciganas: o MDM, neste momento, está a desenvolver com a AMUCIP [Associação para o Desenvolvimento das Mulheres Ciganas Portuguesas] um projeto de educação, no município do Seixal. Trata-se de um projeto de educação formal e informal de mulheres ciganas. Esta era uma oportunidade que estas mulheres estavam a ter de elevar a sua formação e até da sua participação, era um espaço, muito importante. As coisas estão mais ou menos interrompidas… Estamos a encontrar soluções mas não são as mesmas soluções que permitiriam às mulheres desenvolverem a atividade que estava projetada com elas. 

A mediatização do discurso da extrema-direita contra as mulheres e contra as camadas da população que se estava a referir é uma coisa que vos preocupa? 

Claro que sim. Até porque essa faz parte da nossa matriz. O MDM nasce durante o fascismo, não é? Como costumamos dizer, é herdeiro do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas. E, portanto, sabemos bem o que é que o fascismo tem como consequência negativa na vida das mulheres e naquilo que é a definição do estatuto social das mulheres nesse regime. Sabemos bem o que é que o 25 de Abril nos permitiu. O 25 de Abril permitiu às mulheres portuguesas um estatuto de igualdade que não existia e que nunca teve possibilidade de existir durante o fascismo. Portanto, a matriz do MDM é profundamente antifascista. E nós estamos a assistir a um processo — que não dizemos que é novo, por cá sempre andou — mas neste momento salta das pedras, perdeu toda a vergonha, procura muscular, integra-se em estruturas importantes da sociedade e vai ganhando, naturalmente, eu não diria força, mas expressão à medida em que também muita comunicação social o leva ao colo. Se vir bem, em 2015 – é preciso ter cuidado porque eu não quero chamar fascistas a estes senhores porque não é disso que se trata – na altura da intervenção da troika, a última lei a ser aprovada pelo governo de Passos Coelho, às sete da tarde, no último momento da legislatura, foi a lei que retirou — momentaneamente mas retirou — às mulheres o direito à interrupção voluntária da gravidez, tal como nós lutámos durante tantos anos para ter. E, portanto, esta direita nunca aceitou e nunca perdoou aquilo que foram as conquistas das mulheres.

Algo curioso, é o facto de a prostituição ter sido amplamente tolerada durante o fascismo e, simultaneamente, haver grupos que defendem que a prostituição é uma forma de trabalho e que deve ser liberalizada. Como é que isto é compatível?

Não é compatível, como é óbvio.

Prostituição não é trabalho?

Não, prostituição não é trabalho, embora o neoliberalismo nos queira fazer acreditar que tudo em que existe uma troca de dinheiro entre as pessoas se transformou em trabalho. Ora, eu creio que também se fez um longo percurso da expressão de luta dos trabalhadores para que existisse uma definição muito clara daquilo que é trabalho. E não é preciso ir muito longe, basta usar aquilo que é a própria definição da Organização Internacional do Trabalho para sabermos que, naturalmente, a prostituição não é um trabalho, nem decente nem digno para ninguém. 

O patriarcado é um dos pilares da prostituição?

A prostituição é um sistema, não é? E, como sistema, pelo menos intervêm aqui três aspetos muito importantes, ou digamos, indispensáveis. Uma pessoa que é prostituída – e o MDM não utiliza a expressão prostituta nem prostituto –, existe um proxeneta, ou vários proxenetas, e existe, naturalmente, aquilo que são os prostituidores. Portanto, naturalmente que o papel do consumidor de prostituição é muito relevante e é muito importante. Por falar do confinamento, em março do ano passado, quando começou, em Espanha, uma das medidas tomada pelos canais de televisão foi abrir os canais pagos de pornografia para o consumo generalizado da população.

Ou seja, a prostituição, desde a década de 90, que se alterou radicalmente. Deixou de ser uma coisa que existia de recurso de algumas pessoas para se transformar, de facto, numa indústria. Hoje, é uma indústria. Se uma mulher rende a cada proxeneta na Europa cerca de 110 mil euros anuais, ou se esta indústria anualmente tem cerca de 183 mil milhões de euros de lucros, portanto, nós não estamos aqui a falar de uma brincadeira. Massificou-se, ampliou-se e diversificou-se também nos meios, nas plataformas em que é praticada e veio para ficar. Portanto, no nosso país o enquadramento legal, que é um enquadramento de inspiração abolicionista e não há nenhuma pessoa que seja prostituída e que seja penalizada legalmente pelo facto de o fazer, o que é de facto penalizado é o lenocínio. Tampouco o cliente é penalizado.

As pessoas prostituídas, de facto, são pessoas que estão numa situação de grande vulnerabilidade, de grande violência, de ausência total de direitos e tem sido usado este argumento que é verdadeiro para, de uma forma aviltante, levar a água ao moinho de quem defende a legalização. O que aconteceu muito recentemente e que, de certa forma, nos ajuda a clarificar tem a ver com o facto de ter entrado uma petição na Assembleia da República levada a cabo por uma proxeneta. E o que pretende é a legalização, a despenalização ou descriminalização, se quiseres, do lenocínio, ou seja, dar mãos livres aos proxenetas.

As mulheres não nascem com nenhum botão nem com nenhum gene especial que é acionado em algum momento da sua vida para o desejo de fazer uma carreira na prostituição. O que leva as mulheres à prostituição são, no essencial, questões económicas, são questões de grande violência. É um problema muito concreto que seria resolvido, seguramente, se as mulheres tivessem oportunidades decentes para os resolver sem recurso à prostituição.

Qual é a importância de celebrar o 8 de Março?

Nós costumamos dizer que o 8 de Março não é um dia qualquer porque é um dia que se reveste de atualidade. Se nós olharmos para aquilo que eram as reivindicações de há cento e tal anos, elas continuam atuais. E, portanto, o 8 de Março é um dia que lembra quão frágil, desigual e injusto é, ainda, o estatuto das mulheres na sociedade. Para nós é um dia de luta para denunciar as causas e as consequências dessa desigualdade nas nossas vidas e, sobretudo, para apontar caminhos e para fazer exigências. E é também um dia de profunda solidariedade com as mulheres do Saara Ocidental que continuam agora em guerra novamente, a lutar pela autodeterminação, pela independência dos seus povos e dos seus países, com as mulheres da Palestina, com as mulheres que na Polónia continuam a lutar pelo direito à interrupção voluntária da gravidez, por todas as expressões de luta e de resistência das mulheres. Não apenas no que toca aos seus direitos próprios mas também com a luta que desenvolvem, com o contributo que dão para o desenvolvimento dos seus países e para a autodeterminação e independência dos seus povos. Temos conseguido mostrar que é pelo caminho da luta, uma luta que seja organizada, com objetivos muito concretos, que se defende, se garante e se cumprem os direitos das mulheres. Há situações de absoluto terrorismo. Por exemplo, nós tivemos contacto com uma jovem que, numa situação precária, engravidou e lhe foi dito “que pena teres engravidado agora no momento em que te íamos renovar o contrato”. E ela teve de fazer uma opção muito difícil porque tinha outro bebé em casa. E depois de ter tomado essa decisão difícil não lhe renovaram o contrato. E se isto não é violência, é o quê? A violência não é apenas aquela que acontece no contexto de intimidade, entre uma e outra pessoa. Isto é violência institucional, é terrorismo e é muito daquilo que as mulheres estão a viver.

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