Entrevista

Defesa

“Melhor defenderá os direitos de outros aquele que possa usufruir desses direitos”

Depois de uma longa travessia pelo reconhecimento do associativismo socioprofissional no âmbito militar, não esconde que o objetivo da Associação Nacional de Sargentos é ter direito à atividade sindical e representar os seus associados na luta por mais direitos. António Lima Coelho é o presidente desta organização e alerta para o efeito perverso da partidarização das chefias militares.

Qual a importância de os militares estarem organizados em associações socioprofissionais, neste caso, a Associação Nacional de Sargentos?

Logo a seguir ao 25 de Abril, e muito por influência dos nossos camaradas da Marinha, que criaram, na altura, o Clube do Sargento da Armada, e do facto de eles viajarem para outros países, despertou ainda mais a necessidade de ter uma representação, não apenas de âmbito sociocultural. A 1 de abril de 1989, reuniram-se mais de 4200 Sargentos, o que foi um abanão na nossa sociedade, tendo como ordem de trabalhos dois pontos fundamentais: a questão remuneratória, que era um desastre, como é hoje, e a necessidade de ter um estatuto e uma voz representativa. Até 1990, importa dizê-lo, apenas os Oficiais das Forças Armadas tinham estatuto profissional, os Sargentos e as Praças eram enrolados por centenas de normas avulso e não tinham um estatuto profissional. Criou-se a Associação Nacional de Sargentos para que os sargentos tenham uma voz. Durante anos, vivemos a fugir entre os pingos, com associações deontológicas e socioculturais, com base no que a legislação permitia. Depois de várias lutas e processos difíceis, em 2001, finalmente, a lei foi alterada para reconhecer o direito ao associativismo socioprofissional para os militares. É uma lei importante mas, como diz um camarada nosso europeu, presidente da organização europeia de associações e sindicatos militares, da qual também sou dirigente, “é um embrulho bonito mas vazio de conteúdo” porque, efetivamente, sucessivos governos e chefes militares não respeitam minimamente aquela lei. Fazem uns simulacros de audição, que é uma das alíneas da lei, permite-lhes pôr no preâmbulo da lei “ao abrigo da alínea b ou do número 2 da lei orgânica tal, foram ouvidas as associações militares” mas, de facto, não há nenhum processo negocial sério. E isto porquê? Quem é que representa os militares na concertação social? Ninguém.

Portanto, a vossa associação aspira a alargar o âmbito de representação, negociação, e se pode dizer, avançar para o trabalho sindical?

Sem dúvida e não temos que temer as palavras. Em Portugal, de há muitos anos para cá, criou-se, com objetivos, porque isto não é inocente, a ideia de que há palavras que são perigosíssimas, por exemplo, a palavra política. Política é o que fazemos todos os dias, e é o que eu tenho dito muitas vezes aos nossos camaradas: “não tenhamos medo das palavras”. Quando me dizem “ah, eu não me meto nisso que é política”, não, a política é o que fazemos todos os dias. Houve uma vez um ministro que nos disse numa reunião que nós estávamos a fazer política e eu disse-lhe: “pois estamos, nós estamos a fazer política associativa que é aquela para a qual fomos eleitos, o senhor estará a fazer política partidária para a qual foi nomeado, é completamente diferente”. Ora, efetivamente, nós queremos dar esse passo. Há uma outra palavra que no nosso léxico, em português, também ganhou uma carga, infelizmente, muito negativa que é o sindicato, o sindicalismo. Quando fui alvo de vários processos disciplinares e castigos por ser dirigente associativo, às vezes aproximava-me de camaradas meus e diziam “olha, lá vem o sindicalista”, como se isso fosse uma ofensa ou algo pejorativo e eu até lhes dizia “não se acanhem, para mim até é uma honra; se ser sindicalista é cuidar dos vossos e dos meus direitos, então até agradeço que mo chamem”.

Porque é que os governos têm medo que os militares se envolvam em sindicatos?

Porque não querem ver militares com a consciência de serem cidadãos a tempo inteiro, de corpo inteiro. Repare, quais são os pilares do sindicalismo? O direito de representação jurídica dos seus associados, que nós – associação socioprofissional – não temos. Se quisermos apoiar um camarada nosso num processo judicial, a única coisa que podemos fazer é facultar-lhe o contacto de um advogado com quem temos um protocolo e ter daí alguma facilidade. E, por outro lado, a negociação coletiva em sede de concertação social com vínculo, que não temos. Nem nós nem nenhum militar porque, como lhe dizia, os chefes militares nem sequer estão representados na concertação social. E, no limite, o direito à greve que, convenhamos, numas Forças Armadas em tempo operacional, de paz, que não faz sentido nenhum, temos essa consciência, mas há muitos países europeus que o têm. E alguns deles, de modo próprio, abdicaram desse direito e têm a consciência plena do que é o exercício em tempo de paz e o exercício em tempo de guerra. Portanto, essa consciência elevada dos militares, que os militares têm que ter da sua condição, da sua missão, assusta aqueles que não os querem ver como cidadãos a tempo inteiro.

E quais são as principais reivindicações dos militares?

A Associação Nacional de Sargentos, durante muitos anos, procurou não abordar as questões salariais para que não se confundisse com a ideia de que apenas nos movíamos por questões de dinheiro. Isto porque militares e dinheiro é preciso tratar com muito cuidado para que não se crie a ideia de que se trata de mercenarismo. Porque vir desempenhar esta função apenas com o fito do dinheiro que se vai ganhar não é servir o país nas Forças Armadas, isso é ser-se mercenário, e para isso não estamos cá. Ora, perante esta preocupação, durante muito tempo, abordávamos as questões salariais sempre com muito cuidado, sempre pondo a tónica muito maior nas questões do desempenho socioprofissional, as condições laborais, as condições assistenciais, as condições sociais. Infelizmente, desde há 13 anos para cá que não é revisto o regime remuneratório aplicado aos militares e a vida não parou, o agravamento das condições de vida, tudo isso tem vindo a ter a degradação que nós sabemos. Ora, é a altura de haver a coragem política de fazer esta discussão, até para combater aquele drama que estamos a viver, nunca tivemos um número tão baixo de militares como atualmente. E enquanto não houver a coragem política para assumir que é tempo de rever a tabela remuneratória dos militares para lhe dar mais atratividade, para permitir maior recrutamento e retenção, não vamos conseguir inverter isto. 

Outro dos aspetos é a necessidade da revisão dos estatutos militares para que deixem de ser cidadãos menores e passem a ser cidadãos inteiros, integrados nesta sociedade, com as exigências e responsabilidades inerentes à condição militar, até mesmo com as limitações e restrições que a Constituição prevê. Mas, contudo, há quem confunda restrições com proibições, e aqui é que bate o ponto. Porque, repare, nós somos chamados para ir para todo o mundo, defender direitos, defender direitos humanos, defender populações, onde quer que seja. Melhor defenderá os direitos de outros aqueles que possam usufruir desses direitos porque vão com uma consciência completamente diferente. Quando isso não acontece, depois assistimos a coisas como Abu Ghraib ou Haiti e outras violações. Porque um militar mal formado, em termos de cidadania, digo eu, mas que tem na mão os meios letais, vai abusar daqueles que são mais fracos. Um militar bem formado, em termos dos direitos de cidadania, vai levar aos outros, com maior força, a necessidade de respeitar esses mesmos princípios.

Falava dessa linha ténue entre aquilo que é a questão do dinheiro, o mercenarismo. De que forma é que a profissionalização das Forças Armadas, e até o fim do Serviço Militar Obrigatório (SMO) afetou esse seu receio?

Afetou grandemente porque, repare, perdeu-se a noção do que é vir fazer um serviço ao país e aos portugueses. O SMO, e não aqueles disparates que depois se fizeram de quatro meses e coisas do género, carecia de ser todo ele revisto, sem dúvida. É bom que se diga, porque as populações continuam enganadas, o SMO não acabou, está suspenso, podendo ser retomado se as necessidades se verificarem, e é isto que está na lei do serviço militar. Contudo, não é isto que é passado à população e, se um dia formos forçados a retomá-lo, há uma convulsão social porque ninguém vai perceber. E isto é responsabilidade de sucessivos governos que têm passado esta mentira à população. Agora, perdeu-se a noção de fazer um serviço ao país. E eu digo isto muitas vezes “eu estou cá para servir, contudo, sem me servir” porque depois criam-se aqui estas diferenças. Com o fim do SMO perdeu-se essa noção de serviço e, por outro lado, a erradamente chamada profissionalização, que eu considero ofensivo para as gerações de militares que profissionalmente desempenharam as suas funções. Chamar profissionalização agora é tratar mal todos aqueles que há séculos servem Portugal mas enfim, isto é um problema meu. Por outro lado, contrariando o que muita gente vai dizendo, vir para as Forças Armadas ou servir nas Forças Armadas não é uma boa opção de emprego porque isto não é um emprego, isto é um serviço. Servir Portugal nas Forças Armadas não é ter um bom emprego, é um serviço que nem todos os cidadãos poderão desempenhar ao país. 

E isso não é um perigo tendo em conta o cenário internacional que vivemos?

Sem dúvida. Repare, esta questão do desinvestimento nas Forças Armadas, desinvestimento, cortes brutais orçamentais e em pessoal, não é um exclusivo português. Embora muita gente queira dizer “ah os sucessivos governos portugueses é que…”, não, não, não, isto fez parte de um diretório, após a queda do muro de Berlim, houve a ideia de que não era necessário mais investimento nas Forças Armadas porque isto agora vai ficar tudo em paz, só há um bloco e este bloco tomará conta de todos nós, acabou o perigo e etc. E infelizmente não é assim. E muitos países europeus também, e não só, produziram este desinvestimento e estes cortes nas Forças Armadas e, de repente, é o que estamos a ver, andam uns a correr atrás dos outros com exércitos, ou seja, Forças Armadas absolutamente mal equipadas, com mecanismos obsoletos, com falta de recursos humanos. Depois, de que é que adianta haver quem forneça os equipamentos mais sofisticados, se não tivermos recursos humanos preparados, motivados para os operar? Portanto, isto não foi inocente e não é exclusivo português.

E o episódio do navio Mondego é um exemplo disso?

É a pontinha do iceberg de tudo isto. Tenho mantido contacto com estes camaradas e houve uma decisão de não comentar publicamente este caso, até para evitar quaisquer outros quaisquer tipo de juízos, mas aqueles homens não tomaram aquela atitude só porque lhes apeteceu fazer uma birra. Isto decorre de desinvestimento, de há largos anos, nos equipamentos e aquele meio particularmente estava a sofrer situações muito graves dia após dia. Infelizmente, desde há muitos anos para cá, com esta partidarização, com esta influência político-partidária das chefias militares, os medos de incomodar para cima foram sendo cada vez mais frequentes. 

Não é contraditório que haja essa politização, partidarização das chefias militares mas depois não deixem os restantes militares participar ativamente?

Obviamente, é um contrassenso e isto foi obra de sucessivos governos. Quando, na altura do ministro Fernando Nogueira, aquelas alterações todas foram feitas, foi um dos principais motores para a destruição, descaraterização das Forças Armadas. Quando os chefes militares deixaram de ser propostos depois dos seus pares proporem três nomes ao poder político e sem dúvida que a última palavra competiria sempre ao poder político. Mas aquele dos três que fosse escolhido tinha sempre o respaldo dos seus camaradas. Ora, quando isto acabou e os generais e almirantes com condições passaram a ir todos ao casting, a uma reunião com o senhor ministro, e o poder político propõe, ou o Presidente da República, o nome que entende querer, isto tornou os nossos chefes militares menos chefes militares e mais comissários políticos, porque estão ali numa nomeação política para desempenhar aquilo que os políticos querem que desempenhe. Porque um homem nomeado nestas condições tem muito menos condição para dizer “não”.

Não é um perigo para a democracia?

Sem dúvida. E os nossos governantes que, sucessivamente, defenderam e praticaram isto sabem-no muito bem. E, mais do que um perigo para a democracia, é a menorização dos cidadãos militares. Ora, um cidadão, um militar por ser militar não é menos cidadão, pelo contrário, porque, antes de ser militar, já era cidadão. Ninguém nasce militar e, quando se assume esta missão de servir Portugal como militar, a sua condição de cidadania deve ser respeitada ainda mais porque assume outras condições que a maioria dos cidadãos não assume. Ora, não se compreende exatamente esse contrassenso, essa tentativa de menorização dos militares, querendo quase torná-los acéfalos. Aliás, um dos absurdos que existia nos estatutos militares, que só foi alterado agora em 2018, depois de muitas lutas que travámos, era, no caso dos deveres, estar lá incluído o dever de isenção política. É a coisa mais estúpida e absurda em termos dos deveres de isenção porque o ato mais político que todos nós temos é o ato de votar. Ora, a Constituição determina votar, para além de um direito, é um dever cívico. Se nós militares jurámos cumprir e fazer cumprir as leis e guardar a Constituição, como é que podemos pôr em nós uma condição que leva a não respeitar um dever da Constituição? E apresentámos isto à Comissão Nacional de Eleições, aos chefes militares… que era um absurdo porque eu, ao ir votar, corro o risco de estar a incumprir o dever de isenção política porque votar é o ato mais político que temos. Então isto foi alterado e agora consta “dever de isenção político-partidária nos termos da Constituição”, até aí tudo bem, porém, se isto foi alterado nos estatutos militares e é bem verdade, desde 2018, continua a vigorar no Regulamento de Disciplina Militar que é aquele que nos pune. E porque é que continua a vigorar naquele regulamento? Não é por acaso, não foi um esquecimento depois de alterarem o estatuto. É porque aquela ferramenta impõe o medo entre os militares. E militares com medo serão qualquer coisa menos militares.

Temos vindo a assistir a uma radicalização política no país e na Europa, em geral, com o crescimento de populismos e da extrema-direita, e até para tentativas de alterar a nossa Constituição. Como é que os militares olham para isto?

Com muita preocupação, muita, muita preocupação. Aliás, temos feito alguns debates internos porque está em curso a oitava revisão da Constituição e o que é um facto é que, apesar das sete revisões, a Constituição ainda é uma Constituição de Abril, uma Constituição que defende os princípios e os valores de melhores condições para as populações, para o povo português, e foi essa Constituição que nós jurámos. Agora, se a Constituição se vai desvirtuando, a missão dos militares fica cada vez mais difícil porque quando se confundem conceitos como segurança e defesa estamos a dar passos ao contrário naquilo que são os campos tão claros que a Constituição ainda define. Aliás, eu nunca percebi muito bem o contrassenso que continua a ser o incumprimento do artigo 7.º da nossa Constituição. Fala no fim dos blocos militares e nós continuamos a integrar um bloco militar, há aqui qualquer coisa que não bate muito certo em termos constitucionais. Os nossos presidentes, os nossos chefes militares e os nossos políticos juram a Constituição e fazem tábua rasa desse artigo e isso é preocupante.

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