Entrevista

Sérgio Dias Branco

“A solidariedade é um instrumento de transformação social”

Pertence à Ordem Dominicana. Professor universitário e membro do Conselho Nacional da CGTP-IN considera que a luta de classes dentro da Igreja é uma evidência. A luta pelas grandes transformações sociais teve e tem a participação dos católicos progressistas que vêem na religião mais um espaço de intervenção.

A pandemia tem graves consequências económicas e sociais. Como podem os católicos intervir neste contexto?

Devem, antes de mais, abrir os olhos. Ver quem está a sofrer mais: os mais idosos e desprotegidos, quem necessita de acompanhamento e assistência, os desempregados, os trabalhadores com vínculos precários. A pandemia aprofundou a natureza exploradora e desigual de uma “economia que mata”, na expressão do Papa Francisco. As medidas implementadas em Portugal não resolveram este desequilíbrio. O lay-off simplificado beneficiou grandes empresas que distribuem dividendos e registaram lucros de milhões de euros nos anos anteriores, em vez de pequenas empresas e dos seus trabalhadores que realmente precisavam desses apoios. É sobre esta realidade que os católicos podem intervir. Os católicos não participam na Missa para receber, mas para dar, para ser enviados ao serviço do próximo e do bem comum. Fazem-no de diversas formas, porque infelizmente não faltam urgências e problemas. É certo que as pessoas precisam de respostas imediatas, por exemplo para se alimentarem. Mas o objectivo deve ser assegurar o que lhes é devido e digno, com justiça social, distribuição da riqueza, e respeito pela sustentabilidade dos recursos naturais.

Certos setores tentaram virar a igreja contra os sindicatos usando como pretexto realização do 1.º de Maio e a não realização do 13 de Maio com a presença de fiéis. Foi uma manobra conseguida?

Foram sectores reduzidíssimos e pouco representativos na Igreja Católica que tentaram criar fissuras sociais e gerar ódios através de polémicas artificiais. Essa instrumentalização política não surtiu efeito, até porque colocou a Igreja de um lado e o resto da sociedade de outro, como se houvesse um ataque à liberdade religiosa. Mas foi a Igreja que decidiu suspender a celebração comunitária das Missas e celebrar o 13 de Maio sem peregrinos, por considerar que o Santuário podia ser um foco de contágio, com a massa de gente que costuma acorrer e sem ter critério comunitário para a limitar. A Conferência Episcopal Portuguesa foi conversando com as autoridades com grande sentido de responsabilidade. Falar do 1.º de Maio como algo “deles”, ao contrário das celebrações religiosas que seriam algo “nosso”, é traçar fronteiras que a vida em sociedade desmente e a Doutrina Social da Igreja contesta. O 1.º de Maio nem sequer é estranho aos católicos, porque é celebrado como o dia de São José Operário. As iniciativas do Dia do Trabalhador foram organizadas pela CGTP-IN, que conta com muitos católicos, em dezenas de localidades, dando voz à luta dos trabalhadores. Foi uma demonstração de civismo, com algo de didático em relação às orientações sociais em defesa da saúde pública, e o exercício que direitos democráticos que se tornaram vitais devido à pandemia.

Católicos progressistas ligados à Acção Católica, à Liga Operária Católica (LOC) e à Juventude Operária Católica (JOC) uniram-se aos comunistas para fundar a Intersindical. Qual é o retrato das organizações e movimentos católicos portugueses na atualidade?

Há movimentos com focos diferentes e um envolvimento intenso da juventude. A JOC é exemplo disso, assumindo um caminho de libertação no mundo do trabalho. No ano passado estive com eles em Coimbra no 1.º de Maio, numa sessão sobre a importância dos sindicatos seguida de participação na manifestação. Tem havido uma presença contínua de quadros sindicais de muito valor nas estruturas da CGTP-IN, vindos da Liga Operária Católica – Movimento de Trabalhadores Cristãos (LOC-MTC, como agora se chama). Há também intervenções concretas de grupos militantes de base sobre problemas laborais em diversas dioceses. Com certeza que haverá mais e melhor a fazer, mas estas são linhas de força.

É possível a convergência entre católicos e organizações progressistas e revolucionárias?

É. Tem sido. Falámos na CGTP-IN, mas o MUD no período fascista é outro exemplo. Na América Latina, em particular, há diversas organizações que correspondem a essa convergência: como os Cristãos pelo Socialismo, com origem no Chile da unidade popular encabeçada por Salvador Allende. Para além dos casos individuais de convergência como o padre catalão Luis Espinal Camps na Bolívia, defensor dos mineiros pobres, ou os frades dominicanos de São Paulo como Frei Betto e Frei Tito, presos e torturados durante a Ditadura Militar no Brasil.

A solidariedade pode ser um instrumento de transformação social?

É um instrumento de transformação social fundamental. A solidariedade entre trabalhadores construída no movimento sindical unitário é uma forma de organização colectiva que mobiliza as pessoas para as lutas justas que lhes dizem respeito, mas também para outras de outros sectores profissionais, e até para questões transversais como o aumento do salário mínimo nacional. Esta solidariedade da classe trabalhadora estende-se além fronteiras e tem uma dimensão internacionalista de defesa da paz e do desarmamento. É uma verdadeira escola da democracia, onde se afirma a dignidade de quem vive do seu trabalho e se conhecem e defendem os seus direitos.

Não houve uma apropriação histórica das classes dominantes da igreja como ferramenta de opressão?

Em muitos momentos, sim. Tal não pode ser desligado do facto de o cristianismo se ter tornado a religião do Império Romano, que tinha primeiramente perseguido e assassinado a comunidade cristã pelo desafio social, político, e religioso que lhe colocou. Essa relação directa com o poder político foi prejudicial para Igreja, desde logo porque lhe retirou independência, submetendo-a em muitos aspectos aos interesses dos senhores da sociedade, dos amos da terra. São lições. No entanto, a Igreja é bem maior do que isso. Sempre que houve essa apropriação, por exemplo na forma de conquistas, genocídio, escravidão, pilhagem de recursos, houve também resistência a essa apropriação dentro da própria Igreja. Basta pensar nos frades dominicanos António de Montesinos e Bartolomeu de las Casas que enfureceram os colonizadores do Império Espanhol no séc. XVI.

Os trabalhadores e os seus movimentos têm algo a aprender com a experiências de católicos progressistas inspirados pela Teologia da Libertação?

A teologia da libertação enfatiza a opção preferencial pelos pobres e oprimidos, a partir do Evangelho. Concretizar essa opção passa por um compromisso concreto de acção transformadora, emancipadora, fundada na justiça e na dignidade. Foi criticada pela associação ao marxismo. Mas como salientou o Papa Francisco na carta dirigida ao frade dominicano Gustavo Gutiérrez, um dos fundadores dessa teologia: é uma forma de interpelar a consciência. Experiências como as Comunidades Eclesiais de Base e o método Ver-Julgar-Agir, utilizado na JOC e na LOC, têm uma grande riqueza na aproximação e acção de pessoas do mesmo bairro que enfrentam problemas semelhantes.

Em 1983, a imagem do Papa João Paulo II a ralhar com Ernesto Cardenal, padre e ministro da Cultura dos sandinistas, que tomaram o poder através de uma revolução quatro anos antes, mostra que também há luta de classes dentro da igreja?

Essa imagem tornou-se icónica. Marcou uma época de grande envolvimento de padres na política, algo que eles viram como uma necessidade. Ernesto Cardenal não foi o único padre com responsabilidades políticas no governo sandinista. Eram quatro. Pediram dispensa e acabaram suspensos por João Paulo II, sanções que foram anuladas pelo Papa Francisco. Foi um período de grande tensão no contexto da Guerra Fria. É certo dizer que há luta de classes dentro da Igreja, na medida em que ela não existe isolada da sociedade e da sua estratificação e divisão em classes. Por um lado, é um erro de análise a visão idealista de algumas pessoas de esquerda que consideram a Igreja como inimiga de classe. Isso demonstra desconhecimento da diversidade no interior da Igreja como comunidade, que sendo una não é uniforme. É preciso ultrapassar essas ideias feitas. Por outro lado, também é preciso não simplificar o legado de João Paulo II, reduzindo-o a esse papel não só em relação às revoluções populares na América Latina mas também no contexto das convulsões nos países socialistas na Europa. Só para dar um exemplo: João Paulo II escreveu uma encíclica em 1981, Laborem Exercens, sobre o trabalho humano. É um dos documentos fundamentais da Doutrina Social da Igreja e tem sido amplamente estudado e utilizado pelos sindicalistas e movimentos operários católicos. Nele se reconhece o conflito entre o capital e o trabalho, se defende o primado do segundo sobre o primeiro, a dignidade do trabalho e os direitos dos trabalhadores.

Quais são os desafios que a igreja enfrenta nos dias de hoje?

No plano internacional, as regiões que podiam ser vistas como mais periféricas como a América Latina, mas principalmente a Ásia e África, ganharam peso. Isto à medida que a religiosidade diminuiu na Europa, muitas vezes substituída por uma espiritualidade vaga e individualista. Há desafios mais internos, como a questão da ordenação das mulheres. Há ainda as chagas dos abusos sexuais de menores e a correção da resposta eclesial, incluindo nela os membros leigos que foram, por vezes, silenciados e ignorados nas denúncias que fizeram. A verdade é que os leigos têm tido um papel mais destacado nas décadas recentes. É algo notório também na Ordem Dominicana, à qual pertenço. O frei Bento Domingues escreveu uma vez que a “Igreja não pode ser auto-referente, deve renascer continuamente para a missão”. Ela permanece, recupera, eventualmente fortalece-se, apenas se não esquecer as suas raízes e a sua missão de anúncio da Boa Nova que salva e liberta. Não é possível viver verdadeiramente a fé cristã sem procurar realizar a fraternidade humana.

O que destacaria deste período do Papa Francisco à frente do Vaticano? Há diferenças assinaláveis? A igreja aproximou-se mais dos problemas sociais?

Não podemos olhar para o Papa como o chefe da Igreja, talvez espelhando uma certa ideia perniciosa de Deus como chefe supremo. A Cidade do Vaticano, com o estatuto legal que adquiriu no século XX como estado, tem um gabinete de governo liderado pelo Papa. Mas na orgânica da Igreja, ele é o bispo de Roma, a Santa Sé, cuja primazia foi clarificada ao longo dos séculos, mas é uma primazia entre pares (primus inter pares), como até os cristãos ortodoxos reconhecem. Roma foi o centro primordial da Igreja primitiva, onde São Pedro e São Paulo foram martirizados. Chamo a atenção para isto porque o papado de Francisco tem sido marcado por uma insistência na colegialidade, nomeadamente através da organização de sínodos de bispos, com participações de padres, religiosos, e leigos sobre diversos temas como a Amazónia, para desbravar novos caminhos para a Igreja e uma ecologia integral. Francisco tem enfatizado os problemas sociais, mas, mais do que isso, os problemas comuns da humanidade. Não é uma novidade, porque esta linha pertence à história da Igreja, mas é certamente uma diferença em relação ao passado recente. A encíclica Laudato Si’ é um contributo teológico-político de grande impacto na Doutrina Social da Igreja, claramente ecologista e progressista. Tem fomentado movimentos e facilitado conversas entre católicos e outras pessoas de esquerda com as mesmas preocupações. O texto faz uma análise estrutural das desigualdades económicas globais e locais e das consequências ambientais de um sistema económico centrado no lucro e não nas pessoas. Defende a água pública. Desmonta o falso “discurso verde” guiado pelos interesses dos monopólios. Clama pelo aprofundamento da democracia, nas suas múltiplas vertentes, contra a submissão do poder político ao poder económico. É sobre o dever de cuidado entre os seres humanos e da humanidade em relação à sua casa comum. No fundo, tem a ver com uma das palavras de eleição de Francisco: misericórdia, solidariedade na dor. Refere-se à relação de Deus connosco. Mas igualmente de cada um de nós com o seu irmão, em especial quem é explorado, empobrecido, descartado como se nada valesse.

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