Entrevista

Conceição Matos

“Faria tudo outra vez”

Cresceu numa família operária e cedo aderiu à luta contra o regime fascista. Na clandestinidade, foi uma das muitas que desafiaram a repressão nos subterrâneos da liberdade. Foi Marília, Maria Helena e Benvinda. Passou pela prisão duas vezes, foi interrogada pela PIDE e torturada. É por esta trajetória de vida que A Voz do Operário decidiu homenagear Conceição Matos.

Cresceu no Barreiro e começou a trabalhar imediatamente depois da quarta classe. O que fazia?

Eu morava no bairro operário das Palmeiras. Comecei na costura. Sobretudo, as coisas mais simples e que davam às aprendizes. Depois da quarta classe andei a ajudar pessoas que vendiam peixe a tomar nota das vendas. Mais tarde, trabalhei a espaldar cortiça, que é um trabalho muito difícil. Hoje deve ser feito com máquinas mas naquela altura não. Também trabalhei seis meses na fábrica da CUF. A minha família toda trabalhou ali.

E como é que era trabalhar tão cedo? As crianças tinham noção de que não deviam estar a trabalhar, que deviam antes estar a aprender, a brincar, a ser crianças?

Eu tive muita pena de não poder estudar, mas era impossivel e, portanto, tentava ajudar os meus pais. Claro, nós brincávamos, a primeira boneca que tive fui eu que a fiz com trapos. Brincava com os outros miúdos, mas é verdade que havia algumas vizinhas que não trabalhavam porque os pais não passavam tantas dificuldades. A mim calhou-me assim.

Lembro-me, por exemplo, de ser miúda e vivermos no centro do Barreiro. Havia um vizinho ao lado que era sapateiro, que nos dava restos de pão, sobrava-lhe pão que não comia e dava-nos. Quando fomos para as Palmeiras, eu atravessava o bairro todo, a ponte, para ir à vila buscar os restos do pão para a minha mãe depois fazer açorda ou qualquer coisa porque tínhamos realmente muitas dificuldades.

O seu irmão foi preso quando tinha 18 anos. Porquê?

Foi preso porque era do MUD Juvenil [Movimento de Unidade Democrática]. Foi preso muito novo, mas antes de ser preso eu comecei a querer participar e foi ele que acabou por me levar. Fui atrás dele, foi a minha influência. Íamos fazer pichagens nas paredes e distribuir propaganda. Há uma história engraçada. O meu irmão é mais velho do que eu dois anos. Então o que é que nós fazíamos? Juntávamos papéis muito pequenos e muito finos nos bolsos e tínhamos de ver onde parava a GNR porque andavam sempre a bater o Barreiro de dois em dois. Então, subíamos de noite a uma ponte no Bairro das Palmeiras e víamos a GNR ao longe mas não nos conseguiam apanhar. Atirávamos os papéis mas eram tantos que era impossível apanharem todos. De manhã os trabalhadores iam para a fábrica da CUF e a grande maioria passava por ali.

Depois da prisão do meu irmão, a GNR assaltou a casa da minha mãe e encontraram uma carta no quarto da minha irmã. Levaram-na para o posto da GNR. Havia um posto dentro da CUF onde a PIDE fazia os interrogatórios.

O meu irmão foi preso duas vezes e esteve nessa condição cerca de cinco anos. Preso duas vezes, como eu, e casou-se na prisão do Aljube. Eu casei-me na prisão de Peniche.

E como é que entra para o PCP?

O meu irmão entrou para o partido na prisão, através do Aboim Inglez [destacado dirigente do PCP]. Eles estavam juntos. O meu irmão apanhou 18 meses de prisão mas aplicaram-lhe as medidas de segurança e, portanto, esteve quatro anos e meio preso, dessa vez. Quando passou ao regime normal, estava com o Chico Miguel, o José Magro, etc.

Quando ele sai, passei a ter uma atividade maior no partido mas, mesmo antes, já distribuía o Avante!. Depois, para além do Avante!, tinha encontros no cemitério, imensas tarefas, e como foi na altura da guerra colonial começámos a fazer pichagens nos muros, por exemplo, contra a reabertura do Tarrafal.

Depois entra na clandestinidade.

Sim, em 1963, já com o Domingos Abrantes. Fomos montar uma casa juntos.

E já o conhecia?

Quando ia ver o meu irmão, vi o Domingos algumas vezes. Estiveram presos juntos. Muitas vezes eu estava com a família dele cá fora, mas não nos conhecíamos. Lembro-me que antes disso também o tinha visto porque o Domingos tinha sido controleiro no MUD Juvenil e veio assistir a um jogo de futebol no Barreiro.

E quais foram as suas primeiras tarefas no partido?

Eu ainda estive um anos sem estar na clandestinidade. Tinha encontros e tínhamos sinais. Por exemplo, às vezes eu tinha um pedaço de jornal e a outra pessoa tinha outro pedaço e juntavam-se as duas peças. Mas primeiro tinha de fazer uma pergunta disparatada como “onde é que fica a rua não sei quantos?” e eu tinha de dar uma resposta combinada. Depois, na clandestinidade fazia muitas coisas.

Era preciso ter técnica, porque no fundo é a arte do disfarce, estar preparado ante o imprevisto?

Sim, tinha de usar um nome falso. Fui Marília, Maria Helena, Benvinda. Fiz contratos de gás e luz com um nome falso. E depois, fazia muitas coisas. Batia textos à máquina e vigiava, o que era fundamental. E até há uma história da vizinha do lado nos convidar para o casamento de um filho. Por acaso, fui eu que respondi e respondi logo “olhe, não podemos porque nesse dia precisamente faz anos o irmão do meu marido e estamos comprometidos, temos mesmo que ir”. Passado uns dias, pede-nos a mesa emprestada e as cadeiras e nós ficámos aflitos, porque eles não conheciam a casa, conheciam só a entrada que estava sempre arranjada. O resto da casa eram só coisas do ferro velho.

Foi presa numa casa no Montijo.

Sim, fui presa quando estava sozinha. O Domingos foi preso depois mas eu não sabia. Só soube que tinha sido preso passado quase dois meses. Eu estava em casa e eram quatro e trinta da madrugada. Bateram à porta e eu não abri. O Domingos chegava nessa noite. Estava há uma semana fora de casa já, e eu tinha os papéis comigo no quarto para queimar, para o caso de alguma eventualidade, juntamente com uma caixa de fósforos e um frasco de álcool. Não abri a porta, despejei o álcool sobre os papéis e queimei-os.

Eles arrombaram a porta com um pé de cabra e entraram aos gritos: “mãos ao ar, mãos ao ar”. Encostaram-me pistolas no peito e ameaçaram-me de morte. Eram uns quantos GNR e uma brigada de pides. Começaram a perguntar “onde é que está o gajo? quem é que fez isto?”.

Foi interrogada e torturada. Como é que olha, hoje, para as forças da extrema direita que tentam reabilitar o regime fascista?

Com muita apreensão porque se me perguntar se valeu a pena lutar, se valeram os sacrifícios, sem dúvida. Como é que é possível esta gente poder fazer isto? Acho que é uma afronta muito grande contra toda esta gente que lutou. Por isso é que eu acho que é muito importante ir às escolas. Estas novas gerações precisam mesmo de saber para poderem lutar e para poderem defender essa liberdade que foi conquistada com tanto sacrifício, tantos mortos.

A Conceição e o Domingos casaram-se na prisão.

Sim, em Peniche. Eles sabiam que nós vivíamos juntos mas nunca pudemos trocar correspondência. O Domingos estava no mesmo processo que eu e fui a julgamento e não o trouxeram. Não o podia ver.

Considera que, no fundo, o vosso amor é à prova de prisões, à prova de grades?

Exatamente, eu acho que isso ajudou a cimentar a nossa relação, essa experiência dura que vivemos, a confiança que ele tinha em mim e a confiança que eu tinha nele. Passámos por coisas muito complicadas e conseguimos, com a luta, superar montes delas.

Do outro lado de fora da prisão, também fiz parte da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos.

Sim, denunciávamos a situação que viviam os presos e ajudávamos as famílias dos presos. Do lado de fora, também estive na primeira reunião do Movimento Democrático de Mulheres, pouco antes de ser presa pela segunda vez. Quando saí, dois meses depois, soube pelo taxista que era Marcelo e não Salazar que estava à frente do regime. A queda da cadeira tinha sido durante a minha prisão.

Houve alguma coisa que a tenha surpreendido, algum gesto de solidariedade em tempos de chumbo?

Quando foi o julgamento da casa do Montijo, a minha mãe contou-me que o senhorio nos foi defender. A PIDE pô-lo como testemunha de acusação e ele afirmou que tínhamos sido os melhores inquilinos que tinha tido.

Depois da segunda prisão, foi com o Domingos para Paris.

Nós não sabíamos que íamos para Paris, só soubemos na altura, em 1973. O Partido decidiu que dessa vez não ficávamos cá e fomos para Paris, mas na clandestinidade à mesma.

E como soube do 25 de Abril?

Tinha um encontro com um camarada que começou a gritar “Maria, Maria, caiu o Marcelo!” E eu fiquei, “mas então o outro caiu, agora cai este?” Ele respondeu-me que havia uma grande confusão. Já não tratámos do que tínhamos a tratar e fui comprar um gravador para registar tudo o que estava a dar para o Domingos estar a par de tudo aquilo quando chegasse. Depois começo a ouvir o Zeca Afonso…

Que lhe tinha dedicado uma canção…

Sim, foi durante a minha segunda prisão. Eu conhecia muito bem o Zeca, éramos amigos. Ele ia a casa de pessoas lá do Barreiro, por exemplo, do Daniel Cabrita, do meu irmão, e, portanto, tornámo-nos muito amigos. Quando saí da prisão, ofereceu-me a letra e foi aí que soube que tinha feito a canção [Na Rua António Maria]. Depois dedicou uma canção ao meu irmão [Por trás daquela janela], também na segunda prisão.

Dias depois do 25 de Abril, vocês regressam a Lisboa com Álvaro Cunhal.

Nós estávamos num ponto de apoio nos arredores de Paris e veio um camarada dizer-nos que íamos acompanhar o Álvaro e assistir ao 1.º de Maio. O Álvaro vinha no meio dos dois e no avião ia o José Mário Branco, o Luís Cília. Foi uma grande festa. Muita alegria e muitas canções durante a viagem.

Tinha sido anunciado que o Álvaro ia chegar e quando chegámos havia uma multidão à nossa espera. Ainda hoje não esqueço, falamos tantas vezes nisso, aquela alegria, aquele povo. Foi um dos dias mais felizes da minha vida.

Sentiu, naquele dia, que tinham valido todos os sacrifícios?

Todos. Uma coisa fantástica ver aquele povo. Veio o Jaime Neves receber o Álvaro Cunhal e levaram-no para uma sala onde estava o Mário Soares. Nessa altura, eu estava num carro com camaradas e vejo passar a minha cunhada, a mulher do meu irmão. Estavam ali todos. Quando ela me vê, desata a correr e até fiquei com medo que lhe fosse dar alguma coisa. Foi uma grande surpresa. Nós estávamos na clandestinidade, não sabiam onde andávamos.

E como foi viver o processo revolucionário?

Depois, fomos para a António Serpa, que foi a primeira sede do partido depois do 25 de Abril, e tínhamos muito trabalho. Chegámos a comprar uma cama daquelas que se fecham porque havia dias em que não conseguíamos ir a casa. Foi um período de muito trabalho. As inscrições no partido eram muitas.


O PCP faz cem anos e a Conceição viveu uma boa parte dessa história. Como é que olha para o presente?


O Partido tem futuro, não há dúvida. Eu costumo dizer que sou do Partido há muitos anos e hei de continuar até morrer, porque o Partido continua partido de luta, um partido que está à altura de defender o projeto que tem, a luta pelos direitos dos trabalhadores, o direito das mulheres, o direito ao trabalho.


E o que significa esta homenagem d’A Voz do Operário?


Ao princípio, custou-me a aceitar porque acho que há tanta gente para além de mim. Mas a verdade é que também era indelicado da minha parte dizer que não, significa muito, tenho orgulho em ter sido resistente. Agradeço muito à Voz do Operário por se ter lembrado de mim por ser resistente, porque há muita gente que podia estar no meu lugar, que podia ser condecorada. Houve homens e mulheres que lutaram a vida inteira, muitos nem viram o que nós vimos, o 25 de Abril. A Voz faz um excelente trabalho com as escolas. No fundo, luta contra o fascismo.

Hoje, quando olha para trás, para a sua vida, acha que valeu a pena todo o esforço e todos os sacrifícios?


Sim, e digo-lhe mais. Pensando na vida que tivemos, qualquer um de nós, se tivesse de voltar atrás, percorreríamos o mesmo caminho, sem qualquer dúvida.

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