Entrevista

Saúde Mental

“Muitos problemas mentais decorrem de fatores sociais”

O psiquiatra José Manuel Jara é uma das vozes mais respeitadas quando se trata de abordar a questão da saúde mental. Foi diretor de serviço no Hospital Júlio de Matos e é um dos fundadores da Associação de Apoio aos Doentes Depressivos e Bipolares. Para além de autor de vários livros de psiquiatria, é membro do Conselho de Ética da Ordem dos Médicos.

Durante o fascismo as pessoas com deficiência eram encerradas em asilos. Como vivia quem tinha doenças mentais graves?


No período do fascismo e já no século XIX construíram-se instituições para doentes mentais e deficientes. Essas instituições, asilos, manicómios, depois hospitais psiquiátricos, eram comuns a todos os países do mundo. Em Portugal o seu número, capacidade e condições de assistência forma sempre insuficientes, e centralizados em Lisboa, Porto e Coimbra. Para além do Estado, as Ordens Hospitaleiras contribuíram para a assistência aos doentes mentais. Só a partir dos anos 60 do século passado se inicia a descentralização com a criação de Centros de Saúde Mental distritais e mais tarde de serviços de psiquiatria em hospitais gerais.

Hoje, a situação mudou mas está muito aquém do necessário. Mais de metade das 7032 crianças e jovens que viviam em instituições de acolhimento em 2018 tinham expressões e sintomas relacionados com problemas de saúde mental. A doença mental ainda é sinónimo de marginalização?


As carências educativas, as famílias disfuncionais e com meios escassos geram muitas vezes perturbações mentais no desenvolvimento da personalidade da criança e do jovem, concorrendo para o recurso a instituições de acolhimento. A qualidade funcional das instituições é muito importante para a saúde mental das crianças. De notar que as famílias de acolhimento diminuíram nos últimos anos.

A integração social e o acesso ao emprego são fundamentais para a recuperação de quem sofre algum tipo de doença mental?

As doenças mentais mais graves geram dificuldades adaptativas e de integração social. Para melhorar a saúde mental dos doentes é fundamental o diagnóstico precoce e o tratamento médico-psiquiátrico continuado e um apoio psicossocial que permita a sua recuperação, habilitação e integração social. O doente deve ser um cidadão ativo, com um trabalho de acordo com as suas capacidades. Neste domínio o nosso país tem muitas insuficiências.

Uma em cada quatro pessoas no mundo tem algum tipo de doença mental relacionada com as condições de trabalho ou estudo, diz a OMS. Lembro os 35 suicídios de funcionários da France Telecom durante o processo de privatização e reestruturação. Por cá, os suicídios aumentaram durante o período da troika. Há uma relação entre capitalismo e o crescimento das doenças mentais?

Uma sociedade desenvolvida tecnologicamente e economicamente, num modo de produção capitalista, não resolve os problemas de equidade, justiça social e humanização na vida quotidiana. A competição sem limites, a precarização dos vínculos laborais, a exploração do trabalhador com vista ao lucro concorrencial máximo, conduz a desgastes físicos e mentais, que contribuem para doenças. No período recente da crise, imposta pela troika, agravaram-se os problemas mentais por fatores sociais e económicos, verificando-se uma maior incidência de suicídios e de atos de violência.
Muitos problemas mentais decorrem de fatores sociais e psicossociais, muitas vezes no local de trabalho. O ser humano é um ser eminentemente social. O isolamento social, o desemprego, o desajustamento à profissão e a carência em necessidades básicas, repercutem na saúde mental global, aumentando a prevalência de depressões, estados ansiosos e, nalguns casos, ao recurso a substâncias nocivas que geram graves dependências, de álcool e de drogas.

12% das doenças em todo o mundo são do foro mental, valor que sobe para os 23% nos países desenvolvidos. A que se pode dever esta diferença?

As estatísticas de doenças psíquicas não são exatas. Nos países menos desenvolvidos há falhas no registo epidemiológico, maiores que nos países mais desenvolvidos. Por isso, essas discrepâncias não são fidedignas. Nos países menos desenvolvidos há fatores patogénicos relacionados com a saúde materno-infantil, a nutrição, o défice de assistência médica, e a pobreza, que contribuem para doenças e deficiências, tanto físicas como mentais. Nos países mais desenvolvidos, devido a exigências competitivas e concorrenciais, pode haver um stress suplementar, com desgaste psicossomático que contribui para prejudicar a saúde mental, aumentando a prevalência de estados depressivos e ansiosos.

Quais são as camadas da população mais vulneráveis à doença mental? E os estratos de idade? Porquê?

A questão da saúde mental coloca-se desde o berço até à senescência. Uma boa saúde materno-infantil e familiar condiciona favoravelmente toda a vida. A adolescência corresponde a uma época decisiva para a maturação da personalidade. Os hábitos e os estilos de vida saudáveis são determinantes para o futuro da pessoa, em termos de capacitação, de autonomia e felicidade. Algumas doenças mentais, como a esquizofrenia, a doença bipolar, as depressões graves recorrentes e algumas perturbações ansiosas, têm maior incidência na juventude, começando aí a doença. O uso de substâncias nocivas que atuam no cérebro e geram dependências inicia-se a maioria das vezes na juventude, dando relevo ao fator preventivos educativo e sociocultural para sua prevenção, em que o papel do Estado e da sociedade é muito importante.
Nos idosos, os fatores de saúde física geral, a par dos fatores familiares e sociais são importantes para a saúde mental. Uma sociedade justa e igualitária deve valorizar as pessoas depois de se afastarem da vida laboral ativa, quando são idosas. A pessoa não é uma mercadoria cuja cotação resulta da produtividade. No idoso sobrevêm as doenças neuropsiquiátricas mais prevalentes na senescência como as demências.

Prevê-se que cresça o número de casos de doenças mentais entre os portugueses mas, por exemplo, o governo encabeçado por José Sócrates decidiu encerrar o Hospital Miguel Bombarda. As políticas neoliberais têm afetado a resposta do Serviço Nacional de Saúde a este problema?


A «Saúde Mental» tem sido sempre identificada como o parente pobre da saúde. No nosso país o financiamento e investimento nos serviços de psiquiatria e saúde mental foram sempre baixos, tanto antes como depois do 25 de Abril, correspondente a cerca de 3% do Orçamento da Saúde. Em vez de preservar e melhorar serviços existentes e criar novos serviços descentralizados, optou-se no período da Ministra Leonor Beleza e depois, também com os governos Sócrates, em atirar as culpas das insuficiências para os hospitais psiquiátricos e o chamado “institucionalismo”, que em Portugal foi sempre modesto. Manifestamente, havia interesses especulativos em relação aos terrenos, onde estão sediados o Hospital Júlio de Matos e o Miguel Bombarda. As épocas sucedem-se, as instituições renovam-se, algumas podem e devem ser extintas. Mas o essencial é que se criem novos recursos, tanto em serviços hospitalares de hospitais gerais com dimensões e recursos humanos, como em serviços na comunidade, domiciliares, residenciais e reabilitativos, em cuidados continuados, de que as carências continuam a ser chocantes. Não faltam promessas e leis, faltam os orçamentos e a execução.

Há assimetrias no acesso a cuidados em Portugal?


As assimetrias continuam no nosso país. Tem havido alguns progressos, mas irregulares, na implementação de serviços de psiquiatria e saúde mental em distritos periféricos. Há serviços com um número razoável de profissionais, médicos especialistas, enfermeiros de saúde mental, psicólogos, assistentes sociais e outros, com ratios adequados à população a assistir, e outros serviços com grave escassez de recursos e meios.

Muitas vezes a doença mental representa processos dolorosos também para familiares. Que dificuldades enfrenta quem convive diariamente com estes casos?

A doença mental grave, especialmente quando tem uma evolução crónica, resulta num desgaste importante para a família, A sobrecarga pode prejudicar a saúde mental dos familiares, que são muitas vezes cuidadores informais. As associações de familiares de doentes mentais do nosso país têm reivindicado apoios que continuam a faltar. Se o doente for bem tratado medicamente e psicologicamente, integrado em fóruns sócio-ocupacionais e valorizado num emprego protegido, a família no seu todo também tem a ganhar.

Os Programas Nacionais para a Saúde Mental têm sido suficientes?

O Plano Nacional de Saúde Mental tem estado seriamente retardado na sua aplicação. Só foi rápido no encerramento de hospitais psiquiátricos, pois essa medida reduziu gastos. Quando a Resolução do Conselho de Ministros do governo Sócrates pôs em 2007, no pódio, a «saúde mental», começou a crise da troika. Pode dizer-se que houve uma forte componente de demagogia social nas promessas feitas então. Hoje o Plano Nacional continua parado ou quase, volvidas duas décadas.


A medicalização dos problemas sociais representa lucros estratosféricos para os grandes grupos farmacêuticos, que beneficiam da desintegração dos tecidos comunitários e familiares. Acha que por vezes a solução para alguns dos problemas pode ser mais social do que médica?

Os medicamentos psiquiátricos são indispensáveis para o tratamento e prevenção das doenças mentais mais graves. A sua utilização deve corresponder às mesmas regras científicas e éticas das outras especialidades médicas. Há por vezes uma confusão que não distingue os medicamentos para o cérebro (antipsicóticos, antidepressivos, estabilizadores do humor e ansiolíticos), confundindo-os com drogas. A garantia do acesso aos medicamentos psiquiátricos em Portugal foi objeto de grandes lutas de familiares de doentes, de utentes e de profissionais da saúde mental, já no fim do milénio. Mas é verdade que a boa prática médica não se pode basear só na medicação, abrangendo terapêuticas psicológicas e intervenções sociais e culturais, cuja relevância é sempre importante para a saúde mental dos doentes.


De que estratégia necessita o país para enfrentar de forma decisiva a questão da saúde mental?

O país precisa de uma prática política para a saúde mental, de que às palavras correspondam ações. Que algumas leis sejam executadas, criando-se serviços e dotando-os de meios humanos para melhorar a saúde mental em todo o país, tanto a nível hospitalar, como nas prestações de proximidade, e em instituições de integração sócio-ocupacional e de acolhimento. Tem de haver meios financeiros, cuja falta é clamorosa.

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