O panorama fadista lisboeta era, em finais dos anos 1930, desolador. O fado encontrava-se confinado ao reduto das casas típicas e aos retiros. António Ferro, um intelectual aristocrata, indigitado propagandista do Estado Novo, achava a melopeia lisboeta pouco estimulante, decadente e contrária aos impulsos que o Modernismo, herdado de Marinetti, tentava impor, por arrasto acrítico, à lusa cultura e aos desígnios ideológicos do regime.
Mas o salazarismo não tardou de perceber que o Fado choradinho, desgraçado e saudosista, servia ao povo como expiação de mágoas para, na sua melopeia, estender o manto de triste resignação que o regime, assim que se viu institucionalizado pela Constituição de 1933, tentou imprimir aos cerca- dos quotidianos portugueses. Dizem que serviu, tendo por companhia outros efes de um triunvirato que nos limita e oprime, como diria Álvaro de Campos, para apaziguar revoltas. Certo é, que este Fado do destino marcado conviveu paredes meias com os fados da revolta, crítico e republicano: duas faces de uma realidade da cultura urbana que se entrelaçam e ainda hoje subsistem.
Poetas populares como Gabriel de Oliveira, Carlos Conde, Linhares Barbosa, José Galhardo e o jornalista Norberto de Araújo (este, com particular registo nas marchas populares), não abandonando o convencionalismo redutor de um universo efabulatório herdado do romantismo, fortemente inspirado na mitologia fadista de finais do século XIX, da qual Júlio Dantas foi um dos responsáveis, no ciúme e nas traições amorosas, nos dramas de amor e morte ou nas vivências dos bairros típicos, das hortas saloias e dos retiros, tentavam, trazer para o Fado alguma lisura formal e uma maior exigência de construção poética e melódica.
É neste panorama que emerge o vulcão Amália, cuja voz poderosa e belíssima, transpunha para a canção de Lisboa horizontes melódicos raros, profundos e expressivos. De súbito, a melopeia dos be- cos e vielas de Alfama e da Mouraria, das tascas e colectividades da cidade, metamorfoseava-se, emocionava-se, coloria-se de novos requebros, de cambiantes dramáticos, vibrantes e intensos.
Cedo os compositores e a sensibilidade de Amália perceberam que essa Voz só ganhava asas e plenitude servindo composições mais complexas e outras palavras. É a própria Amália que descobre, por acaso, um poema de Pedro Homem de Melo e transfigura esses versos de desespero íntimo, de uns olhos que se perdem na cidade grande, num fado de enorme êxito. Seguem-se-lhe Sidónio Muralha e Luís de Macedo.
Frederico Valério prolonga-lhe a voz, dá-lhe intensidade melódica e expressividade dramática em fados que rasgavam o figurino tradicional: Só à Noitinha, Ai, Mouraria, Confesso, Boa Nova, Não Sei Porque te Foste Embora. Estes fados canção, escritos para os palcos da revista, onde Amália era já vedeta incontestável, fazem hoje parte do espólio clássico do fado. Mas será com Foi Deus, de Alberto Janes, esse prodígio melódico e estilístico, construído sobre versos que libertavam o fado dos seus limites conceptuais, do torpor fadista de 1950 (embora viajando, sem rupturas absolutas, pela estrutura dos seus referentes imagéticos), que Amália cresce como interprete e a sua voz (as várias vozes que o seu instrumento vocal provou possuir) ganha uma envolvência mais modulada, plena de ressonâncias e de sensibilidade interpretativa, uma ductilidade atravessada pelo trágico. Seguem-se Barco Negro, do filme Amantes do Tejo, que a lança nas ribaltas internacionais e, já nos anos 1960, o encontro fundamental com Alain Oulman, que trazia na bagagem de compositor inspirado alguns nomes cimeiros da lírica portuguesa.
Com Alain, e o mítico álbum Busto, no qual Amália canta esse pungente e libertário Abandono, conhecido como Fado Peniche, com letra de David Mourão-Ferreira, e essa obra modelar que é Com que Voz, Amália transporta-nos para os universos expressivos da nossa poética maior, cantando-nos em melodias que tocavam o erudito (vamos às óperas, diziam os músicos, aquando das sessões de gravação), versos de Camões, Ary dos Santos, Cidália Meireles, Manuel Alegre, João Ruiz de Castelo Branco, Alexandre O’Neill, e de ela própria, com esse magnífico poema que é Estranha Forma de Vida.
Três anos após a publicação de Busto, Alain e Amália regressariam à grande poesia com Fado Português, sobre poema homónimo de José Régio. A colaboração com Alain prosseguiria nos álbuns Cantigas Numa Língua Antiga e Obsessão.
Amália da Piedade Rebordão Rodrigues, nasceu em Lisboa a 1 de Julho de 1920 (foi registada a 23 de Julho) e faleceu a 6 de Outubro de 1999. Do seu espólio musical registam-se mais de 170 álbuns, gravados em 30 países. Vendeu milhões de cópias, cantou nos melhores palcos do mundo.
Poeta, publicou 2 álbuns com os seus versos (Gostava de ser quem era e Lágrima) e reuniu a sua obra poética no livro Versos, publicado pela editora Cotovia, já em 10a. edição.
Através da música de Alain e das palavras dos grandes poetas, Amália transfigura o fado, universaliza-o, dá-lhe estatuto cultural. A partir de 1962, ano da gravação de Busto, o fado deixaria para trás o seu passado sombrio, lacrimejante e formalmente retrógrado e percorreria sem temores a essência da nossa condição: perscrutando-nos a alma, incentivando-nos os sentidos, ensinando-nos o poder das palavras, as referências mais fundas da nossa identidade, mostrando-nos os caminhos do regresso a casa, que sempre lá estiveram, e que ela, com a magia do seu canto, redescobriu: um canto que começava também a revelar ao mundo as fundas raízes da nossa singularidade cultural. Ou seja, libertava-nos por dentro no êxtase maior dessa voz que, dramática e festiva, também nos habitava.