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Sobre as cooperativas escolares

Através das cooperativas, as crianças e jovens d’A Voz do Operário assumem compromissos perante o colectivo ao qual pertencem, que vão para além do papel individual que têm no grupo.

A Voz do Operário concebe o mundo e o seu desenvolvimento a partir de uma lógica materialista e dialéctica. Significa isto que, no nosso entender, o desenvolvimento de qualquer processo, desde o mais pequeno átomo ao mais complexo sistema, se faz a partir da interacção entre determinado objecto ou ser e tudo aquilo que o rodeia. O materialismo dialético concebe assim a natureza humana numa perspectiva totalizante, em permanente contacto, em que tudo nela se encontra interligado e interdependente. A par desta conexão entre os elementos, está o seu constante movimento, nem sempre regular e em permanente mutação e desenvolvimento. Assim, a compreensão de qualquer fenómeno ou processo, só pode ser feito eficazmente à luz daquilo que o rodeia, não podendo ser tratado isoladamente, de forma abstracta.

Partindo desta premissa, a organização do trabalho nas escolas da Voz do Operário, concebe todos os processos enquanto decorrentes da relação que cada membro de cada comunidade educativa estabelece com todos os elementos que fazem parte da realidade com que contacta. Desde as experiências no seio familiar até à vida dentro do grupo, o movimento contínuo que daí decorre, do qual a criança faz parte, influencia e por eles é influenciada, é a argila que fornece aos adultos os elementos mais importantes para a organização de instrumentos e processos que visam facilitar e maximizar o potencial de desenvolvimento de cada um.

Neste sentido, as cooperativas escolares são, para além do mais antigo, um dos mais ricos e valiosos instrumentos pedagógicos da Voz do Operário. Estabelecidas há várias décadas, as cooperativas são um instrumento privilegiado de transmissão de valores, ideais e princípios face aos quais A Voz do Operário tem a mais absoluta responsabilidade e dever de promover e jamais vulgarizar, deturpar, trair ou abandonar.

Implementadas na Voz do Operário muito antes da Revolução do 25 de abril, as cooperativas escolares visavam a criação de condições de partida para uma experiência social de aprendizagem das suas crianças que contribuísse para o desenvolvimento de uma consciência de classe, essencial para criação de futuros adultos dispostos a lutar por um mundo livre de opressão e exploração. O triunfo da Revolução de Abril abriu portas para o aprofundamento e disseminação destas práticas educativas, passando estas finalmente a coincidir com a realidade emergente no país. Com o retrocesso civilizacional que se seguiu – e que se faz hoje sentir de forma particularmente gravosa nas gerações mais jovens, através da larga disseminação do pensamento único, baseado na competição enquanto característica aparentemente “natural” da espécie, da meritocracia ou da valorização da atitude de submissão perante a hierarquia individual – a importância da disseminação e aplicação dos princípios das cooperativas tem, mais que nunca, um valor ímpar no processo educativo das crianças d’A Voz do Operário.

Porque a gestão de cada cooperativa é feita pelo grupo de crianças que sobre ela exerce controlo, sempre que um ou mais elementos do grupo identificam a necessidade de aquisição de materiais para a concretização de um projecto, de novos materiais para uma das áreas de exploração e trabalho da sala, ou para qualquer outro fim, ela deve ser trazida à discussão colectiva, em concelho de cooperação. Será no conselho que as decisões sobre que rumo se dará à proposta feita serão tomadas, sendo analisadas as condições objectivas existentes para a concretização dessa proposta – a sua pertinência, a prioridade que lhe deve ser dada, o custo associado, entre outros critérios. Para que tal seja possível, é também fundamental a realização de balancetes frequentes, baseados nos registos e análise de entradas e saídas dos valores utilizados, dando os elementos responsáveis por esta tarefa sempre conta de todo o processo ao colectivo.

Através das cooperativas, as crianças e jovens d’A Voz do Operário assumem compromissos perante o colectivo ao qual pertencem, que vão para além do papel individual que têm no grupo. A apropriação de valores como a partilha (do saber, de ideias, de objectivos); o respeito pela opinião do outro (sabendo que, independentemente do grau de concordância, ela terá o mesmo valor de qualquer outra); o dever de cumprimento da orientação definida pelo colectivo (mesmo quando significa uma decisão diferente da da minha preferência); o controlo efectivo sobre os processos de preparação, aquisição, produção e criação de elementos culturais, enriquecedores da vida do grupo; a responsabilidade (de assumir uma posição e uma opinião pessoais perante o grupo e sobre a própria cooperativa); a autonomia (face às tarefas, processos e obstáculos inerentes aos objectivos definidos), é vivida e marcada pela profundidade formativa e transformadora que o espírito e a estrutura da cooperativa incorporam.

Desta forma, e como nenhum outro instrumento pedagógico, a cooperativa releva o sentimento do poder da acção da criança sobre o meio, promovendo a proactividade, a assertividade e o pensamento crítico individual, mediados, sempre, pela vida do grupo, que deverá ser o principal organismo regulador do espaço colectivo.

As cooperativas são um organismo vivo e como tal, devem ser vistas não enquanto um instrumento estanque, pontual, paralelo e separado da vida diária do grupo, mas enquanto elemento transversal e objecto permanente de potencial facilitação da concretização das necessidades e objectivos de cada grupo.

Assim, para qualquer docente n´A Voz do Operário, desenvolver um trabalho pedagógico de fundo deve ter como inerência o trabalho com as cooperativas, enquanto um dos elementos culturais centrais na vida do grupo. O desenvolvimento de uma relação fluida com este instrumento pedagógico, tal como com qualquer outro, só acontece mediante um contacto e experimentação regulares por parte do grupo com este instrumento e com uma ampla e profunda reflexão por parte do adulto, relativamente não só ao papel que a cooperativa desempenha na vida do grupo, mas também ao papel que o adulto está a desempenhar na vida da cooperativa.

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