Voz

50 anos do 25 de Abril

A Voz que faz Abril

A “Onde estavas no 25 de Abril?”, A Voz do Operário poderá sempre responder: a construí-lo. Brindamos aos 50 anos do ponto mais alto da nossa história numa retrospetiva em que não é clara a separação entre o caminho d’A Voz do Operário e o “D” de “Desenvolvimento” que Abril preconizou – que honra.

Porquê cultura?

A ideia de cultura tem sido confundida com duas acepções que devemos questionar e rebater. A primeira, enquanto sinónimo de expressões culturais, tipicamente as de “alta cultura”. A segunda, cultura enquanto sistema de produção, constituído por três vértices, que se relacionam e interdependem, sem, no entanto, se misturarem: produtores (criadores, artistas), consumidores (espectadores/visitantes) e produto (a “obra”). 

Entre as várias problemáticas que daqui resultam, poderíamos destacar as decorrências produzidas pelo hiato entre o acto de pensar/produzir/criar e o acto de usufruir/ver: o espectador é, assim, o resultado último desta triangulação, mediado por uma atitude tipicamente pouco mais que passiva, onde, também por isso, arte e entretenimento já pouco diferem. 

Creio que é no combate a estas duas acepções e na criação de uma relação alternativa – emancipatória, diríamos – que a Voz do Operário tem vindo a conduzir a sua intervenção cultural. Em primeiro, porque nos é intuitivo perceber cultura enquanto qualquer resultado do que é produzido e significado pelo Homem. Assim, interessa-nos que cá tenham lugar o maior número de expressões, com as suas complexidades destapadas. A título de exemplo: quando passámos a organizar (2018) uma gala dedicada ao fado, invocámos a sua génese popular, não por mero fetiche mas, pelo contrário, por ligação à vida; faz-nos tanto ou mais sentido galardoar grandes nomes, como reconhecer as colectividades, a partir das quais uma expressão ancestral não cristaliza e se reinventa, como resultado único possível do que é o produzir cultura.

A segunda, não dissociável da anterior, é a necessidade de contribuir para a diluição de fronteiras entre quem faz e quem vê; por compreendermos que só pertence à cultura o que é transformado pela vida, por nós.

Será por isso oportuno invocar dois sócios honorários d’A Voz do Operário que deram sentido, com a sua obra e reflexões ao que tentámos aqui expor: Siza Vieira (2024), no seu discurso de aceitação do título de sócio honorário diz ” A Voz do Operário compreendeu que a beleza não é luxo. É a síntese que inclui com harmonia todos os contributos próprios do serviço que é a Arquitectura: a beleza para todos (…)” e acrescenta. “Se a beleza da Arquitectura não consegue existir para todos não consegue existir para nenhum.”. 
Vamos um pouco mais atrás, a Manuel Gusmão (2015), que intitulou o seu discurso “Como as Artes nos tornam Humanos”. Entre muitas ideias preciosas, diz-nos: “(…) a democratização da cultura não é tanto a democratização do acesso à fruição cultural mas sim um processo de democratização estrategicamente orientado por um objectivo principal, que é a democratização do acesso à criação cultural.” Como também aí nos lembrou, não há “impossibilidades reais numa dada relação entre um humano e uma obra de arte. As dificuldades, por vezes inultrapassáveis são imputáveis a razões económicas, sociais, políticas e culturais. Essas razões são consequências de um sistema de injustiça generalizada que é o da exploração do homem pelo homem.”

A Revolução de Abril foi um momento fundacional para a popularização destas reflexões, para o rompimento de falsas dicotomias, de resgate das várias dimensões da vida para quem a vida produz – o povo. A forma como perspectivamos e vivemos a cultura é, pois, uma forma de combater um sistema injusto.

Porquê educação?

Por vezes, os temas que parecem ser os mais fáceis de abordar, pelo óbvio que comportam, tornam-se, pela mesma razão, os mais desafiantes. Escrever sobre a importância de Abril, nas escolas d’A Voz do Operário, parece daqueles temas que quase não é preciso referir. Porque Abril está subjacente a tudo o que fazemos e tudo o que fazemos tem Abril no horizonte. Mas de tudo o que se fez, quase tudo continua por fazer e talvez por isso importe voltar a dizê-lo em voz alta.

É provável que não haja aqui o distanciamento necessário, mas arrisco a dizer que será na área da Educação que Abril se vive de forma mais profunda, consequente e intensa, na nossa instituição. Nas escolas da Voz do Operário, de forma mais ou menos consciente para adultos e crianças, Abril continua a ser construído, todos os dias. Mas, que significa então “Abril” e porque o afirmamos como nosso, em cada escola? 

Abril é representativo de um momento concreto na nossa história, onde a mudança de paradigma, de facto, aconteceu. A transição de um sistema, em que a concentração e o controlo dos meios de produção e os processos e instrumentos de criação estavam nas mãos de uma pequena minoria, para um sistema onde o acesso, a participação, o controlo, a decisão, passaram, pelo menos durante algum tempo, a pertencer a quem efectivamente produzia e trabalhava. O avanço, num processo revolucionário como aquele que o nosso povo fez nascer em Abril de 74, desenvolveu-se por vezes de forma extraordinariamente rápida, outras, de forma desajeitadamente (porque experimental) lenta. E, ainda assim, nunca antes ou depois, o nosso país se desenvolveu de forma tão profunda, totalizante e abrangente. Todos os que antes não ousavam sequer pensar em dizer, podiam agora participar e decidir. Passámos de uma lógica de existir para servir um interesse que em nada se ligava a nós, para passar a fazer parte de um todo que se iniciava e terminava em cada um, fazendo-nos parte intrínseca do todo. Já antes de Abril, A Voz do Operário se pautava por marcar a diferença que urgia. Por representar, desde sempre, as dores de parto, que só o nascimento da revolução poderia pôr termo.

Nas nossas escolas, essa transformação do paradigma político e social que se viveu em Abril, foi a alavanca fundamental para a mudança de práticas educativas e pedagógicas que viriam a redefinir a relação com as muitas crianças que connosco já faziam vida. Da lógica da Instrução e Beneficência que deu nome aos que viam como fundamental a escolarização dos filhos da classe operária, passámos para uma lógica de materialização do trabalho educativo dos filhos dos trabalhadores, baseado na cooperação e no diálogo, como forma predominante de aprender e ensinar.

A transição de que falamos começou por assumir o materialismo dialético enquanto base filosófica de onde parte toda a reflexão e práticas que lhe sucedem. Deixámos de basear a relação educativa na mera transmissão da ideia abstrata de determinado objecto, que se quer aprendido e posteriormente aplicado na prática, para passar a uma lógica que parte da vivência prática e concreta, da matéria que se assume como ponto de partida, para um progressivo movimento de criação de conceitos e ideias.

Esta perspectiva tornou obrigatório passar a diferenciar o trabalho pedagógico com as crianças n’ A Voz do Operário, de forma a integrar, na vida do colectivo, a experiência concreta de cada um, em benefício de todos. O Professor, antes dono do grupo, passou a desempenhar outro papel, o de membro do grupo com mais responsabilidades e experiência. Foi possível assim caminhar no sentido de ver a organização do trabalho com as diferentes idades numa lógica profundamente inovadora no nosso país. Desde a necessidade de termos as famílias a participar na vida das escolas, trazendo consigo conhecimento e experiência fundamentais para melhor conhecermos as diferentes realidades que caracterizam as respectivas comunidades, passando pela existência de conselhos de cooperação a partir do pré-escolar, onde as crianças discutem juntas a melhor forma de organizar o trabalho em sala, passando pela experiência de acampamento em que o trabalho de campo é o motor de infinitos projectos de aprendizagem, são exemplos centrais de uma organização que foi e é a materialização da mudança de paradigma que Abril nos trouxe.

Apesar do que acima afirmamos, A Voz do Operário não é uma bolha à margem da realidade do país. O impacto dos retrocessos mencionados e que há anos o povo vem sentindo, sentem-se também no seio da nossa Instituição. Os desafios que encontramos são hoje tão grandes como poucas vezes terão sido. Desafios que só a visão clara de que só a reafirmação e o aprofundamento dos nossos princípios poderão garantir o caminho que, cada vez mais, se exige de todos nós. Para já, o momento será de resistência. Mas essa, faz parte da nossa identidade há 141 anos.

Porquê ação social?

O Departamento de Ação Social nasceu com A Voz do Operário. Revisitar a sua história implica conhecer a atenção dada às necessidades da população trabalhadora, seja na assistência funerária presente na origem da instituição, seja no balneário público inaugurado em meados do século XX, em resposta às parcas condições habitacionais a que o fascismo nos habituou. O Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL) lançado em 1974 herdou um país que, não obstante as habitações em falta, possuía 60% das mesmas sem rede de esgotos, ou 67% sem instalações sanitárias. A assistência na gravidez e a garantia de enxovais para recém-nascidos facilmente nos soaria a uma medida da atualidade, mas ainda não tínhamos chegado à década de 30 do século passado e já A Voz do Operário anunciava a sua ação quanto à saúde materno-infantil. A separação entre um dos três D’s de Abril e a ação social n’A Voz não é clara porque comungam de uma mesma origem: a intervenção do povo e dos trabalhadores na construção de melhores condições de vida.

Em Abril de 74 sonhou-se um desenvolvimento comunitário aprofundado, a partir do qual o assistencialismo que marcava as respostas sociais desse lugar a uma intervenção emancipatória que incluísse e autonomizasse todas as pessoas, grupos e comunidades. A Revolução abriu as portas à democracia, trouxe progresso social e liberdade. As palavras não estão gastas, como no poema, porque se inundam de significado: são as marcas profundas dos valores de Abril que nos permitem continuar a intervir, mesmo que no contexto neoliberal que caracteriza o mundo.

Não existimos isolados. O tempo e o espaço que habitamos carregam-se de desafios: falta-nos a paz, o pão, a habitação, a saúde e a educação. É por isso que, nas atuais respostas de ação social que asseguramos, ainda procuramos muitas (demasiadas) vezes garantir as condições de sobrevivência de quem a nós recorre, ao mesmo tempo que tentamos co-construir caminhos de capacitação.

Seja na garantia de uma refeição completa e equilibrada no nosso Refeitório Social, na prestação de cuidados diários do Serviço de Apoio Domiciliário, ou na intervenção sociocultural do Centro de Convívio, A Voz do Operário constitui-se como elemento significativo da rede social de cada um que nos procura e que lhe pertence. O papel que se assume ultrapassa diariamente aqueles que são os seus objetivos mais evidentes, acima de tudo, desenvolvem-se redes de apoio, seja ele de caráter instrumental ou emocional: desde o aconselhamento relativo a processos de despejo habitacional à leitura de correspondência, passando por todas as formas em que apoio psicossocial se pode desenhar.

A importância da participação social é amplificada quando nos referimos à população idosa mais desprotegida socioeconomicamente. A solidão e o isolamento social afeta com maior nitidez aqueles que, devido à falta de recursos financeiros, se encontram mais afastados da participação plena na sociedade. É com este propósito que as nossas respostas sociais assumem o papel crucial de promoção de oportunidades iguais entre todas as pessoas, atenuando o sentimento de solidão e potenciando o bem-estar daqueles que se encontram mais vulneráveis.

Abril concretizou-se na Constituição da República Portuguesa e é a partir dela que definimos a nossa ação, no contributo para a proteção de todos os cidadãos «na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho» (Artigo 63.º).

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