Os mais pequenos ficam sempre em último: A diversidade em debate (Parte 1)

Por força das circunstâncias sou frequentador assíduo de parques infantis. Numa das minhas recentes incursões assisti a duas crianças a ultrapassarem outras duas na fila para o escorrega. Questionadas sobre o assunto responderam tranquilamente: Os mais pequenos ficam sempre para o fim. A sabedoria popular ensina-nos que o barómetro de desenvolvimento de uma sociedade é a forma como lida com os mais desprotegidos e como potencia o seu desenvolvimento. Iniciamos assim com duas interrogações (que não pretendemos responder): Que sociedade é esta que estamos a construir e de que forma a escola contribui para esta construção?

Sem mais demora que o tempo urge, importa construirmos a consciência coletiva de que a escola da atualidade é a escola de massas herdada da revolução industrial do séc. XVIII. Com o objetivo de promover a mudança é fundamental reconhecermos certos princípios, considerados como verdades absolutas, que respondendo a uma lógica de produção, definem a organização escolar. São vários os princípios espelhados na literatura que retratam esta organização. Três são particularmente importantes para a compreensão da organização da escola atual: a) O princípio da organização do trabalho. Como em qualquer fábrica os dias na escola estão segmentados em blocos de tempo, guiados por um manual de instruções, com intervalos pré-definidos para o ócio e para o descanso. Ao toque da campainha todos os alunos mudam de tarefa e, frequentemente, de sala. À medida que a exigência aumenta, os professores tornam-se especialistas em determinados assuntos e, ao longo do dia, vão andando de turma em turma e de sala em sala. b) O princípio da conformidade. À semelhança da produção industrial, em que o objetivo é produzir versões idênticas do mesmo produto, também a educação de massas foi concebida com o objetivo de formatar os alunos com determinados requisitos/capacidades. Os alunos que não demonstram as capacidades pré-definidas são rejeitados pelo sistema. Esta é a lógica do ensino-teste para garantir a uniformidade/conformidade dos alunos. A escola desenvolveu uma tendência para avaliar os alunos de acordo com um padrão único de habilidades e todos os alunos que não cumpram esse padrão são considerados incapazes ou como tendo dificuldades; c) O princípio da linearidade. À semelhança das etapas da produção industrial também a educação de massas foi desenhada como uma série de etapas sequenciais em que um teste valida a etapa atual e dá acesso à etapa seguinte. Tipicamente os alunos são divididos em grupos com idades idênticas, progridem em classes definidas pela data de nascimento onde os alunos mais velhos são os que têm mais poder (de intimidação).

É à luz destes princípios que percebemos a ingenuidade das crianças na sua afirmação. Aproveitando os 50 anos da morte de António Sérgio deixamos uma referência a um pequeno texto de uma atualidade desconcertante: “Quanto a mim parece-me que os males de que nos queixamos são fatalíssima consequência da estrutura da sociedade, – e que só portanto terão remédio se nos metermos firmemente a transformar essa estrutura, o que não é possível com pregações, nem com política de autoritarismo, nem com reformas só pedagógicas, – mas com reformas sociais e pedagógicas concatenadas, entrelaçadas como fios de um tecido único, as quais preparem o nosso povo para o uso razoável da liberdade e para empreender por si mesmo a sua emancipação social-económica”. 

Neste contexto, os grupos homogéneos utilizando a idade como fator agregador, começam a ser cada vez mais questionados. Agrupar as crianças pela faixa etária é assumir que o mais importante que as crianças têm em comum é a sua data de nascimento. Estes grupos conduzem frequentemente à criação de subgrupos e à colagem de etiquetas em determinados alunos. Subtilmente o hábito leva a que os alunos se identifiquem com estes rótulos e construam a sua identidade ao redor da etiqueta. Surgem assim os grupos de alunos que têm um ritmo de trabalho lento ou demasiado rápido, aqueles que estão atrasados nas aprendizagens, os tímidos ou ainda aqueles que não acompanham os pares da mesma idade. Através da criação bem-intencionada de todos estes grupos, a escola demite-se de uma das suas funções, a de favorecer todas as formas possíveis de desenvolvimento recíproco pela diferença.

  Todos os alunos têm o direito, e a necessidade, de ver considerada a sua individualidade e, em simultâneo, de trabalhar com outros alunos com sensibilidades, estratégias de aprendizagens e níveis de desenvolvimento diferentes, com o objetivo de se enriquecer o coletivo pela diferença. 

  O caminho é o de celebrar a diversidade. Os talentos individuais assumem muitas formas e devem ser promovidos igualmente de maneiras diversas. Na prática, importa perceber que todos as crianças são diferentes, aprendem de maneira diferente, a um ritmo diferente que se diferencia ainda de acordo com o trabalho/conteúdo/atividade que se está a desenvolver. Por exemplo, uma criança pode estar no mesmo nível ou num nível mais avançado de desenvolvimento em determinadas atividades e com um nível de desenvolvimento menor em outras, comparativamente a uma criança mais nova ou da mesma idade. Na sociedade, separar as pessoas segundo o critério da idade para a constituição de grupos de trabalho é uma forma de segregação que só acontece nas escolas. 

É esta confrontação sistemática com a diferença que conduz ao que chamamos de conflito sociocognitivo e que é o motor do desenvolvimento e das aprendizagens. Para os mais novos, é uma oportunidade de aprender com os mais crescidos, para estes últimos, é uma oportunidade de saber respeitar o próximo, reforçar as suas aprendizagens, criar um espirito de entreajuda e, pela sua mão, guiar os mais novos na apropriação dos instrumentos e modos de relação socioculturais. Os mais novos jamais poderão ficar para o fim.  

Artigos Relacionados