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Como a política incomoda a Lisboa-branding de Moedas

No final de Fevereiro, o presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, anunciou que ia pedir ao Governo para alterar o chamado “licenciamento zero” para travar a abertura de lojas de souvernirs, para “combater a descaracterização”. Não cabe aqui fazer uma crítica a esse tipo de licenciamento que permite reduzir ao mínimo os procedimentos administrativos para abrir uma loja. Mas interessa-nos pensar a “descaracterização” de Lisboa como bandeira da governação de Moedas para a cidade.

Enquanto expõe a “descaracterização” provocada pelas lojas de bugigangas, de conveniência ou que sirvam sobretudo a actividade turística, e critica o “desequilíbrio destes estabelecimentos face a outro tipo de comércio, mais tradicional e característico da identidade histórica e cultural da cidade” (jornal Público), Moedas não tem qualquer pejo em permitir o licenciamento de mais hotéis. Entre 2009 e 2023 abriram em Lisboa 157 hotéis. Há mais 54 hotéis planeados para a cidade, a somar aos 334 que já existem. Faria sentido perguntar se os hotéis não criam desequilíbrio face a outro tipo de edificado, mais tradicional e característico da identidade histórica e cultural da cidade: aquele no qual possam viver pessoas.

Mas não é isso que interessa a Moedas: Lisboa, com os Novos Tempos do PSD-CDS, herdeira do processo de turistificação e gentrificação do PS de Costa e Medina, é uma cidade que consolidou em permanência uma visão hierárquica, de classe, em que no fundo da pirâmide estão aqueles que importa rasurar da vida na cidade para que ela seja governada em pleno por e para quem pode e queira pagar. Uma cidade mercantilizada e vendida a retalho, desenhada para o luxo e o consumo, de onde todo o “ruído” – trabalho, produção, vizinhança ou acção política – tem de ser eliminado.

Se Moedas não tem pudor em permitir mais um hotel num momento em que assistimos à maior crise de habitação da história da democracia portuguesa, também não teve em vender a cidade aos painéis publicitários e mupis da JC Decaux. Não só transformou Lisboa numa cidade-marketing para os seus agentes imobiliários, como pretende esvaziá-la também da propaganda política.

Já o tinha feito mal tomou posse, em 2022, ao retirar os outdoors de partidos políticos da Praça do Marquês de Pombal. Em Novembro de 2024, mandou substituir um outdoor do Partido Comunista Português no Prior Velho para entregar o espaço à JC Decaux, atentando contra a liberdade de expressão, acção e propaganda política (artigos 37º e 113º da Constituição). Em Dezembro, retirou os outdoors da Iniciativa Liberal, do Chega, do PCP, do Bloco de Esquerda e do PS da Alameda D. Afonso Henriques, invocando a intenção da autarquia de classificar a zona como “Conjunto de Interesse Municipal”.

Para Moedas e os seus apoiantes, a política – o outdoor, a mensagem, o contraditório, o escrutínio, o protesto e a defesa de direitos – é um incómodo que perturba a harmonia da sua Lisboa estilizada, onde a mobilização cívica é substituída por espaços de “dissenso autorizado”, controlados e patrocinados pelo logo da CML. Enquanto isso, questões estruturais – transportes públicos degradados, recolha do lixo ou crise na habitação – são ignoradas, desde que as esplanadas estejam cheias de turistas (ou por quem possa pagar lattes e macchiatos ao preço de Londres e Paris) e os mupis da JC Decaux exibam anúncios impecáveis, nomeadamente, publicidade às próprias decisões do executivo de Moedas para a cidade.

Aqui, gentrificação e “apolitização” são as duas faces da mesma moeda. Por um lado, o paulatino processo de mercantilização da cidade, com a chegada de turismo massivo e de fundos imobiliários alterou as dinâmicas locais, empurrando populações mais desfavorecidas para fora da cidade. Por outro, e em simultâneo, a transformação de Lisboa num conjunto difuso de esplanadas e lojas para turistas (e locais endinheirados) permitiu o esvaziamento das disputas – políticas, sociais e económicas. Se a cidade só serve para consumir, a política torna-se um empecilho “inestético” à paisagem-branding para investidores.

Esta visão de cidade não é neutra. Reflecte um projeto neoliberal que converte espaços públicos em activos financeiros, favorecendo aqueles que podem pagar e sobretudo excluindo os que (já) não podem. Mas também aqueles que, já reféns de uma qualquer “cosmopolitização” da cidade, da qual (ainda?) não foram totalmente expulsos, invocam a “estética” para rasurar a política.

A remoção de outdoors políticos não é sobre estética, mas sobre apagar conflitos e esconder desigualdades, e a substituição destes por milhares de mupis da JC Decaux assim o comprova. A “Lisboa boutique”, idealizada pelas elites culturais e económicas, exclui quem não se enquadra no seu padrão – dos pobres aos partidos políticos que ousam contestá-la e desafiá-la. A crítica a esta gestão urbana não nega a importância do planeamento ou do equilíbrio paisagístico. Questiona, sim, a hipocrisia de higienizar a política enquanto se entrega a cidade ao mercado. Resta uma cidade ornamentada, onde até o dissenso virou produto – desde que pague pelo outdoor.

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