Opinião

Literatura

As palavras das cantigas, de José Carlos Ary dos Santos

Ary é hoje justamente considerado «o grande poeta de Abril», não apenas porque o cantou de formas várias, na canção popular, em rábulas de revista e na poesia erudita, mas igualmente no modo afirmativo, tocante e a roçar o génio, como esses poemas foram construídos e como troavam na sua poderosa voz como alavancas de luta e de inconformismo, de coragem e determinação ideológica.

Fotografia: Avante!

O País que vivemos antes de Abril de 1974 era um território de destroços onde, apesar dos pesares, muitas flores brotavam do calcinado chão. Muitos homens e mulheres viviam cercados nos dias clandestinos, outros encarcerados em prisões infectas, no território continental, nas ilhas e nas colónias. Havia, nesse País fechado, muitos que tentavam, se uma luz surgisse, abrir portas e janelas para que um pequeno raio por elas entrasse. Os poetas, os escritores, os cantores, os trabalhadores do teatro, do cinema, da rádio, construíam formas subtis, escreviam nas entrelinhas, cantavam versos que denunciavam a miséria e o cerco, acrescentavam dicas ácidas às rábulas revisteiras, contornavam com saber e talento o olho vigilante dos censores.

A música teve, como arma de denúncia dessa situação social e política, uma função determinante nesses tempos de grades. A começar pelas Canções Heroicas, de Fernando Lopes-Graça, passando pelas cantigas/baladas de José Afonso, de Luís Cília, Adriano Correia de Oliveira, José Mário Branco, Sérgio Godinho, Manuel Freire e outros, até à nova geração da música popular urbana, com Fernando Tordo, Carlos Mendes, Paulo de Carvalho e um fadista de exceção, Carlos do Carmo. A eles se juntou um poeta de raro virtuosismo e solta imaginação, José Carlos Ary dos Santos. Ary é hoje justamente considerado «o grande poeta de Abril», não apenas porque o cantou de formas várias, na canção popular, em rábulas de revista e na poesia erudita, mas igualmente no modo afirmativo, tocante e a roçar o génio, como esses poemas foram construídos e como troavam na sua poderosa voz como alavancas de luta e de inconformismo, de coragem e determinação ideológica.

Muitas centenas de cantigas escritas por Ary, para muitas vozes, para muitos festivais, com muitos prémios, com o povo a trautear as mais conhecidas como se dele fossem, e eram, da Tourada, à Canção de Madrugar, de Meu Amor, Meu Amor que Amália cantou divinamente, a Estrela da Tarde, dos fados desse álbum mítico que é Um Homem na Cidade, aos versos que descrevem um País que recuperou as formas da alegria, no álbum Um Homem no País, ambos cantados por Carlos do Carmo e pelos quais andam músicos de puríssima fonte, como António Vitorino d’Almeida, Carlos Paredes, Joaquim Luís Gomes, José Mário Branco, Frederico de Brito, Tordo, Zeca Afonso, José Luís Tinoco, e o olhar romântico de Ary se espalha por essas geografias rendido de emoção.

As Palavras das Cantigas, de Ary, editado aquando da passagem dos 80 anos do nascimento do poeta, foi por ele organizado, título a título, cantor/a a cantor/a, numa selecção que perfaz um total de 77 poemas (Ary escrevia “poemas”, não escrevia “letras”, a sua arte estava muito para além dessa mera forma de integrar a canção), ou seja, cerca de um décimo das cantigas que terá escrito para quase todas as grandes vozes, do fado à cantiga popular, da nossa música contemporânea, estão presentes nesta edição, para além de um magnífico Prefácio escrito por Natália Correia e as notas de um percurso escritas e organizadas por Ruben de Carvalho.

José Carlos Ary dos Santos, não foi apenas o “cantor de Abril, o poeta de Lisboa”- É da voz do meu povo uma traineira/que já não pode mais andar à toa/e assento a minha voz na Praça da Ribeira/na praça da canção que tem Lisboa – foi, decisivamente um grande poeta, uma das maiores e plurais vozes da nossa poética contemporânea.

A ler, a reler, sempre. A sua voz está tão junto de nós, que ainda nos magoa de reconhecimento e de saudade.

As Palavras das Cantigas, de José Carlos Ary dos Santos – 6ª. edição/2018, Edições Avante!

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