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Modesto Navarro, – memória e intervenção cívica em “a oitava colina”

A direcção de A Voz do Operário homenageou, no âmbito dos seus 142 anos de existência, o escritor Modesto Navarro. Homenagem inteiramente merecida a um escritor que na sua prosódia teve, também, a cidade de Lisboa como elemento central das suas narrativas, sendo igualmente na sua actividade cívica, em diversos mandatos, deputado municipal e Presidente da Assembleia da edilidade da capital.

Modesto Navarro pertence, por direito próprio, enquanto sócio e Presidente que foi da sua Direcção em períodos complexos, a esta Casa, mas pertence, de igual modo e em sentido ainda mais abrangente, à mais consequente e corajosa parcela da Literatura portuguesa da segunda metade do século vinte, espraiando essa capacidade de análise do país que somos, das suas grandezas e misérias, por estes conturbados anos do século XXI. A memória é sempre um instrumento central da narração, e Modesto Navarro sabe-o. Sabe que a memória serve desígnios de acção e não de reacção, ou seja, a memória ficcionada perderá efeito se utilizada em sentido puramente nostálgico ou saudosista, mas serve enquanto elemento, bagagem para a transmissão de experiências, de denúncias, de anotação dos dias para quem vier e a esses dias, às suas ressonâncias, não quiser fechar portas.

Em A Oitava Colina, a língua de Navarro é grave, por vezes enfática, dado que o autor narra factos que o tempo ainda não lavou, feridas que sangram dado que, 50 anos volvidos sobre “a madrugada que sonhámos”, eis-nos perante as mesmas perplexidades, a mesma arrogância, o mesmo ranço no discurso, segador de direitos, de esperanças, de futuro. Tão axiomático é esse discurso, tão impetuosamente intempestivo e revanchista – usando armas de propaganda que o fascismo de antanho nem sequer sonharia possíveis de utilizar no combate político – que pode, se o não vencermos, conduzir-nos à mesma miséria, ao mesmo estupor, com as adaptações necessárias às novas realidades, gerado ao longo desses sinistros 48 anos de opressão e miséria.

A história, as histórias de A Oitava Colina já as sabemos de livros anteriores; andam dispersas em fragmentos pela extensa bibliografia de Modesto Navarro; viagens em torno da memória, dos afectos, das feridas, do sangue rio que não estanca de que falava o Assis Pacheco. Modesto Navarro regressa a lampejos sensitivos da infância, da adolescência, dos amores, das amizades, das mulheres, dos livros, fazendo-o desta vez com outro apuro narrativo. A língua mais ágil, mais limada, num corpo diegético mais sinfónico – profundo e sem rede. Embora com extremo pudor no modo expositivo, escondendo o rosto sob o manto diáfano de um nome, Rui, que não chega a personagem, que é um esboço sob o qual Navarro, modestamente, se oculta. Há neste texto, uma outra vibração, uma tocante sinceridade expositiva que nos deixa rendidos a essa fala que é a um tempo agreste e sensível, desnudada e solta. Fala que nos reconduz aos ancestrais saberes das suas origens transmontanos: “navegante com torrosas”, ou seja, bacalhau com batatas, dieta de pobre em dias de remedeio; que nos diz dos labirintos da pobreza; Júlia Galrita que cantava para espantar a fome, um grito de socorro, dir-se-ia: se pedir, peço cantado, versos do poeta Aleixo que deste mundo de pobres acossados sabia as andanças feridas e todas genialmente desvendava. Também Modesto viu a fome na soleira e dela dá notícia, como anteriormente o fez Carlos de Oliveira.

Mais do que um romance (e pouco importa se o não for), este livro é um relato sentido, amargo por vezes, pungente, arrebatado, o sincero testemunhar de um percurso de vida. Um longo texto de mais de quinhentas páginas a falar de sonhos, de caminhos atravessados por lutas constantes contra as adversidades dessas infaustas caminhadas, dessa longa viagem pela vida e seus escolhos. A viagem dramática, ingente, do nascer português na primeira metade do século XX e numa das zonas mais ignoradas, pelos poderes e pela fortuna, deste país sofrido e, apesar disso, saber erguer-se do chão e crescer vertical e digno.

Há uma profunda mágoa neste modo de contar, uma revolta em suspensão, talvez saudade, adivinhariam os românticos e os fadistas nesta fala – saudade que, a ser, não é derrotista nem sombria, antes a saudade do futuro de que nos falava José Gomes Ferreira; um realismo romântico bebido em Zola percorre o corpo fabular de A Oitava Colina, invade esta escrita, este caótico processo narrativo em sua dispersão rememorativa.

O cinema, a escrita, o fascínio pelas ruas de Campo de Ourique, “quero morar neste bairro”, os amigos, a imprensa clandestina: o Avante!, O Marinheiro Vermelho. A resistência, a publicidade, as noites de Lisboa, o desassossego e a revolta pinchados nas paredes dos prédios burgueses, o medo, os ouvidos nos teus ouvidos, a revolta a organizar-se, a crescer como cogumelos em campo orvalhado. O sexo a prostituir-se nas ruas, em quartos alugados, a fauna, os frágeis ícones da cidade; Belarmino engraxador/pugilista, vedeta efémera do Cinema Novo que começava a olhar o povo de corpo inteiro e não apenas o estereótipo herdado dos bonecos revisteiros, ou através da doutrina de António Ferro, bebida em Marinetti e Gabrielle D’Annunzio.

Já viajámos de ilhas em ilhas/já mordemos fruta ao relento/repartindo esperanças e mágoas/por tudo o que é vento, uma cantiga de Sérgio Godinho que fala, também ele, na terceira pessoa, neste jeito íntimo de invocar uma geração que andou pela vida com a alma inquieta às costas, de “gente feliz, com lágrimas”, e dos outros que foram à guerra e voltaram, mesmo com uma perna bamba, a perna que se recusou a dançar a polka do tiranete, a entrar no baile mandado do ditador; que trouxe dos montes, de atrás dos montes, essa tribo forjada no ferro ardente dos afectos: a casa velha, o pai austero, a mãe à espera “dos dias mais justos”, na soleira, o irmão caçula que estudou, o Tino que adaptou às imagens em movimento e produziu Até Amanhã, Camaradas, esse épico maior da nossa resistência; o António que nesta crónica dos assentos se diz Rui para disfarçar, escritor a fazer-se pelos caminhos da vida, das aves, a ocultar-se sob nome fictício para lhe ser mais fácil contar-se por intermédia máscara, não que lhe sejam necessárias máscaras inventadas, múltiplas, para sair do casulo, do baú e morrer de cirrose num quarto de Campo de Ourique; que esta vida dá romance, ou não, que importa a forma, mundo de ficções que o real desoculta, dá para ser contada de tão vivida, mesmo que já ande dispersa na vasta obra de Modesto, também ele membro da tribo dos Navarro, dos que foram ao Brasil e voltaram, à guerra e à luta, que torceram o destino a mãos ambas, com a resina toda dos dias aziagos, com as palavras forjadas, tecidas sobre as sombras num desvão de casa a derruir, num jardim de Alhandra, num slogan publicitário, num livro com um buraco rebelde, provocatório e insubmisso na capa, com o riso acirrando o ódio dos abutres, com um filme clandestino vigiado pela GNR, filme de princípio e fim de narrativa, de recomeço, de contagem da vida do centro para a periferia, das grades de Caxias para a colina de Vila Flor, e desta para a de Lourenço Marques, com Mário Barradas e um Brecht inesperado “O Que diz Sim, O que Diz Não”, e ele disse não, “não me leve, comandante”, mas foi e regressou para essa outra colina, a oitava, diz Rui, ou Modesto Navarro, tanto faz, o importante é dizer, é escrever assim com o corpo, a pele, a carne a arder, nu frente aos espelhos da nossa memória colectiva, e ousar dizer-se, ter coragem de se expor assim, descarnado, de voar nesse céu de Lisboa, de Campo de Ourique, a colina da Liberdade, de abrir, como José Casanova, caminho para as aves de arribação, aves que se juntarão a nós nesse voo urgente, “repartindo ao vento pedaços/que hão-de ser de nós”. Um livro A Oitava Colina, que é um registo, a anotação dos dias, para o futuro. Para esse futuro que há-de ser de água limpa como as vidas que se contam nos livros, que assim, do lado esquerdo do peito, nos contam e convocam.

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